Um Mundo Dominado pelas Trevas (p.3)

− O que quer dizer com "conheci a Cuca"? Meu Deus, você foi um curupira? – perguntou Miguel apavorado.

− Eu nunca fui um curupira, Miguel! Mas a Cuca já foi uma saci...− nessa hora as lágrimas começaram a aparecer no rosto dele e não obtiveram mais resposta alguma do professor.

A cabeça de Abigail começou a girar. Era difícil acreditar que aquela invasão fosse verdade. A ficha ainda não tinha caído completamente. Ela não conseguiu pensar e fazer mais nada além de pedir licença e se recolher em um canto. Se a invasão começou no castelo, significava que seus pais e Iaci foram pegos de surpresa antes de todos. Será que conseguiram fugir? Ela ficou deitada refletindo tudo por horas. Aquela sua decisão de enfrentar a Cuca, foi tomada depois de muito refletir, desde que seu pai dera a notícia que Saci tinha sido tomada. Era a única saída que ela achava para salvar o seu povo. Se a Cuca estava em Saci era porque planejava invadir Isla, isso já era certo, mas ela não achava que seria tão cedo. Achava que seus pais ainda estariam seguros até o final do ano. E agora que invadiram o reino dos céus, não existia alternativa, senão pará-la antes que o mundo perecesse por completo.

Miguel e Elisa ainda tentaram extrair, do professor, mais alguma informação, mas de nada adiantou. No dia seguinte, todos acordaram cedo e sem dizer uma única palavra, comeram e arrumaram as mochilas, se preparando para continuar a viagem, quando Miguel quebrou o silêncio.

− Já vi que essa viagem vai ser difícil! – sussurrou.

− É, você não sabe o quanto − dissera Elisa.

− Para qual direção estamos indo? − perguntou Miguel.

− Para o oeste, vamos para a floresta Amazônica. Peguei alguns craks hoje de manhã, vão nos servir de alimento por uns três dias − respondeu Álvaro − Já não sou mais professor de vocês, estão sabendo quase tudo que eu sei. Essa é a terceira e última tarefa. Nós teremos que chegar sãos e salvos no refúgio.

– Essa sua profissão, professor, é muito perigosa – comentou Miguel – se arriscar assim todos os anos. Qual o motivo disso tudo?

– Não encaro isso como uma profissão, Miguel, e sim como uma missão. Estou preparando jovens sacis para aumentarem suas chances de sobrevivência nesse mundo caótico. Mas nem sempre me arrisco todos os anos. Não são todos que decidem se tornar guerreiros. Às vezes voltava para Isla a partir da segunda etapa.

− Bem...então vamos! − interrompeu Elisa e no minuto seguinte já estavam pulando de galho em galho pela floresta, transformados em micos. Suas mochilas já não apareciam mais.

Passaram o dia inteiro viajando. Por vezes tinham que parar e se esconder, pois havia bandos de gargos por toda parte, ou Miguel precisava descansar. Era incrível ver como aqueles seres monstruosos passavam entre as árvores e não derrubavam nenhuma. Quando já estava escurecendo, Álvaro pediu para pararem para acampar.

Não beberam nada o dia inteiro e comeram apenas algumas frutinhas que encontraram no caminho. Apesar de todo o treinamento e o aumento de poder, não era aconselhável permanecer na aparência de micos por muito tempo, para pouparem energia para alguma eventualidade e por causa disso, tiveram de montar abrigos em duas árvores. Miguel e Álvaro foram para o abrigo menor e Elisa e Abigail para o outro ligeiramente maior.

− Professor? − chamou Miguel.

− Eu não sou mais seu professor, mas diga, o que foi? − perguntou.

− É a força do hábito − desculpou-se − Por que temos de fazer essa viagem? Quero dizer, não seria mais fácil se nos mandassem direto do planeta Paquevilin para a Amazônia? Como fizemos na Gruta dos Lotís?

− Hum − ele coçou o queixo, pegou um pedaço de comida e disse − Quantos sacis tinham naquela gruta dos Lotís?

− Muitos, talvez uns 150, mas o que isso tem a ver?

− Imagine que uns 90 vão querer ter empregos seguros e felizes em Isla, e não precisarão vir para cá. Mas agora pense nos 60 que não quiseram isso? Seriam mais ou menos uns 20 portais num único dia aparecendo naquela região, isso sem falar dos portais que muitos guerreiros fazem para transitar perto de lá. Mas mesmo se mudarmos a data, 20 portais a mais num mês ou num ano aparecendo em uma única região já seria o suficiente para qualquer curupira nos achar não?

– O senhor não acha que o traidor possa ter dito ao inimigo onde são os refúgios? – indagou temeroso.

− É, pode ser. Mas são inúmeros refúgios espalhados pela Terra e constantemente muda-se de local. Quando estivermos próximo da Floresta Amazônia, teremos de utilizar nossos braceletes, para que nossos companheiros nos achem primeiro.

– Não seria melhor se fossem em locais mais distantes? Se a Terra está tão perigosa, por que então não fugimos para outro planeta? Ou, talvez, outra dimensão?

– Você não lembra que Isla estava em outra dimensão? Nem por isso ficamos salvos. Da mesma forma se formos para outros planetas. Aquele lugar em que portamos em Paquevilin já era um refúgio. Embora os refúgios em outros planetas sejam mais seguros, a guerra está aqui. Esse é o nosso planeta. O nosso lar. Muitos sacis realmente abandonaram esse planeta e estão vivendo completamente alienados do nosso mundo em outros lugares, mas boa parte pensa que ainda existem esperanças para os que sofrem aqui, que muitas vezes podem ser familiares e amigos queridos.

– Acho que estou entendendo o que quer dizer.

− Se querem ser guerreiros precisam se acostumar com o ambiente. A guerra é aqui. E por que você acha que até agora a Cuca só está tentando conquistar a Terra? − o professor pegou um grande pedaço de carne de crak e ficou mastigando, esperando que Miguel respondesse, mas como ele nada disse, continuou − Isso não é óbvio? Porque os sacis são a sua barreira e também pelo ódio insano que ela tem dos humanos.

− Mas a Cuca não tinha um castelo em outra dimensão antes de se mudar para Saci?

− Tinha, mas ela mesma tinha criado essa outra dimensão sozinha e, apesar de poderosa, tudo lá devia ser muito instável. Para se criar uma dimensão, é preciso realmente muito poder, mas não só isso. Também é preciso haver uma grande razão e bons sentimentos para que essa outra dimensão seja ideal para se viver. Sem falar que na história, só a Cuca se propôs a criar um mundo sozinha. Pelo menos, é isso que eu penso − ele tornou a pegar outro pedaço de carne.

− Será que a bruxa conseguiu invadir mais alguma outra dimensão? − ao olhar Álvaro comer, a barriga de Miguel começou a roncar. Ele, então pegou uma manga de dentro da mochila e começou a chupar.

− Eu espero que não. Para entrar em outra dimensão através de portais é preciso se ter uma chave específica, ou pode terminar se perdendo num espaço interdimensional, extremamente perigoso para qualquer ser vivo e até mesmo objetos inanimados. Os sacis ou outras criaturas com poderes semelhantes garantiram há muito tempo a proteção de todas as outras dimensões através de chaves. Poderia ser qualquer objeto, no nosso caso do reino de Isla, a rainha está em posse da chave. É ela quem permite, através dos nossos braceletes, a passagem para as dimensões que os sacis possuem acesso.

− Se a rainha detém a chave de outras dimensões, ela também detém a chave de Isla, não? – perguntou Miguel.

– Sei onde está querendo chegar. É uma possibilidade, mas não acredito que Iaci tenha nos traído, ponho minha mão no fogo por ela. Essa chave pode ter sido roubada ou destruída. Ninguém a não ser quem já tomou posse do trono sabe qual é a chave, onde está e como ativa. Acredito que o traidor possa estar entre os conselheiros.

– E as chaves para as outras dimensões? Será que também foram destruídas?

– Não sei. Talvez tenhamos alguma ideia quando chegarmos ao refúgio − Miguel começou a bocejar, o professor então se calou e ficou de guarda. Ele seria o primeiro a ficar de vigia, não podia se dar ao luxo de dormir também naquela hora.

Estava fazendo muito frio de noite e havia animais circulando por toda a parte. Quem ficava de vigia, deveria ficar sempre atento caso algum ser perigoso os encontrasse resolvessem atacá-los.

Foi num dia particularmente frio que acordaram e tomaram um café bem reforçado. Os dias que se seguiram mostraram ser extremamente cansativos, ficava cada vez mais frequente as vezes em que tinham que se esconder para não serem vistos. Em pouco tempo já tinham saído da floresta e se encontravam na Caatinga. Uma região quente e quase aberta. Com poucos lugares para se esconder. Contudo, havia poucos seres vivos transitando nessa região.

Precisaram se transformar em vários animais como cobras, tatus e quando percebiam que não havia viva alma por perto, se transformavam em falcões, cobrindo assim grandes distâncias. Por vezes passavam por desertos, mas também encontraram vegetações próprias da região. Arranjar água não era mais um grande problema, desde que aprenderam materialização. Conseguiam retirar a água do subsolo para enxerem suas garrafas.

A primeira vez que Abigail viu os tão comentados escravos, ficou horrorizada. Os humanos escravizados não pareciam ser mais humanos. Pareciam corpos ressecados que voltaram a vida. A pele era acinzentada, com sangue seco nos rostos (como se antes tivessem escorrido sangue pelo nariz, olhos, orelhas e boca), vestiam trapos sujos e rasgados, isso quando não estavam completamente nus. Os olhos eram totalmente negros e vazios, andavam com muita agilidade, apesar de parecerem desengonçados.

− Não existe nenhuma forma de ajudá-los? – comentou Elisa de vigia enquanto seus amigos escavavam um buraco no chão, para se acomodarem durante a noite. Segundo o professor era a melhor forma de se esconderem em terrenos abertos como os que estavam. Enquanto isso, um grupo de escravos passava com arco e flecha ao longe (procuravam animais com olhos amarelos, na esperança de matar qualquer saci desavisado).

− Tem um jeito de fazê-los voltarem ao normal, mas se fizermos isso como vamos levá-los daqui em segurança e não denunciarmos nossa posição? Lembre-se que existem curupiras vagando por aqui também! − Álvaro mal tinha acabado de falar isso, quando, diante dos seus olhos, um rato que passava perto se transformou numa onça de olhos amarelos e olhava furiosamente para eles. Infelizmente, Elisa não o viu se aproximar.

Não tiveram tempo mostrarem alguma reação, quando a onça rugiu, chamando a atenção dos escravos ao longe e avançou. A única saída agora era lutar com aquele animal. Álvaro, que antes estava como um tatu gigante, transformou-se em leão e avançou para a onça juntamente com Miguel que mudou para um tigre.

Os dois golpearam a onça com tanta força e rapidez que em menos de um segundo, a coitada estava inconsciente no chão. A onça foi lentamente mudando de forma. Ela parecia com os sacis, mas trajava roupas pretas, sujas e esfarrapadas. Era um homem magro, moreno, com cabelos longos e pretos. De repente um pequeno arco de madeira se materializou no chão em frente ao rapaz e o leão Álvaro pisou, partindo-o em dois. O arco soltou uma fumaça cinza e logo em seguida virou pó.

Abigail se transformou numa grande muralha de pedra separando o grupo dos escravos, que antes estavam atirando flechas constantemente, mas estas apenas se chocavam na muralha recém formada, não produzindo nenhum efeito. Laica estava escondida na árvore distante e observava tudo ao longe.

Enquanto isso, Miguel e Elisa estavam olhando ao redor para ver se avistavam mais algum inimigo. Elisa viu uma ave voando para o norte. Ela tinha certeza que era outro curupira para dar o alerta e procurar reforços. Porém não tinha mais como alcançá-lo.

− Precisamos sair daqui! − alertou Elisa. Mas, mal acabou de falar e, vindos do norte, era possível avistar dúzias de escravos e curupiras.

− Vão embora! Sigam sempre para o oeste, não desistam e vão chegar perto do refúgio! Confio em vocês! Faça como eu lhe expliquei Miguel, e cedo ou tarde os sacis encontrarão vocês! − ordenou Álvaro − Eu vou ficar aqui para atrasá-los.

− Não! − berrou Elisa.

− Não vamos deixar o senhor aqui! Nós vamos lutar! − decidiu Miguel.

− Vão embora! Eu estou mandando! – todos correram em direção a uma mata. O professor ateou fogo nela formando uma barreira entre ele e os garotos. Abigail, Miguel e Elisa não tiveram alternativa senão fugirem, por enquanto.

A maneira mais segura de fugirem sem serem notados seria transformando-se em vento. Sabiam que assim não poderiam cobrir grandes distâncias, mas despistariam por tempo suficiente antes de voltarem ao normal. Eles foram para o mais longe que puderam. Apesar de não poder enxergar, Laica conseguiu segui-los, pois Abigail ficava sussurrando seu nome para que a seguisse. Ainda conseguiram ver de longe o professor lutar bravamente e derrotar muitos curupiras antes de cair por conta de uma flechada na perna e ser capturado.

Eles se esconderam atrás de uma árvore na forma de esquilos e ficaram olhando para onde estavam levando Álvaro. Pareciam estar voltando para o norte. Com um número imenso de criaturas, deveria haver alguma espécie de vila ou acampamento por perto. Supuseram os três.

− Anda gente! Temos que continuar! − dissera Elisa entre lágrimas.

− Não vamos não! Ele ainda está vivo! Eu não vou abandoná-lo! −cortou Abigail − Vamos tentar, Lisa! Se vocês não quiserem ir, não vou obrigá-los, mas eu vou!

− Vamos seguir aquele grupo então! – interveio Miguel − Você vem com a gente ou prefere ir sozinha para o oeste, Lisa? − Miguel encarou com seus olhinhos de esquilo para ela.

− É claro que não vou só! Mas ainda acho isso uma loucura – respondera a amiga.

− Laica, fique o mais distante da gente que você conseguir, está bem? Não quero que corra perigo − ordenou Abigail e Laica concordou − Eles vão se arrepender de terem nos atacado! − ela então deu um sorriso para seus amigos. Virou as costas e bateu as asas de abelhas recém-nascidas de suas costas.

Os dois também se transformaram e começaram a seguir a tropa silenciosamente para o sul. Iriam resgatar o mentor que deu a vida para salvá-los.

🐇Acabou esse primeiro arco da nossa história. Espero que tenham se divertido lendo tanto quanto eu de escrevê-lo.
E meus agradecimentos mais sinceros à todos que me acompanharam até aqui. 😍😘😘😘
Nos vemos no próximo livro! 😊

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