Capítulo VIII
Erguendo lentamente a cabeça ela o viu, tão bonito quanto que tinha imaginado em seus sonhos acordada. O homem em sua frente a fitava com olhos sorridentes, tão lindo e jovial, parecia 'uma visão celeste'. "Puta merda! É o vizinho do 202", pensou ela com uma expressão de surpresa que era impossível esconder. — Apesar de não conhecer todos os vizinhos do prédio, não era difícil deduzir quem ele era.
Se sentindo completamente desalinhada, pois de fato estava, sorrio em contraste a sua vergonha, passou a mão pelos cabelos os jogando para trás e então o encarou novamente com um olhar amistoso e sorriso discreto. Ele se aproximou um pouco mais da escadaria com um celular em mãos. Trajava uma camisa verde musgo com uma jaqueta de couro preta e uma calça jeans caqui escuro. Tinha olhos azuis claros, gentis e serenos que brilhavam com uma luz própria, cabelos loiros acastanhados e uma barba rala que o deixava mais bonito ainda, era alto com 1,83m, possuindo um corpo forte e acentuado, tudo em seu corpo parecia estar no lugar certo. Educadamente, mais uma vez ele a saudou e perguntou como ela estava, — até parecia que havia algo escrito na testa dela dizendo, sinalizando de que ela não se encontrava bem —. Diante dele, Grace perdeu as palavras por só conseguir admirá-lo, aquela beleza ofuscava seus pensamentos, estava de fato encantada pelo rapaz. Em um 'sim, me sinto bem', ela deixou escapar um suspiro um tanto que... diferente.
— O que faz aqui fora, se posso perguntar? — Perguntou ele guardando o celular no bolso da jaqueta e observando a forma que ela estava sentada, parecendo exausta.
— Eu estou... — Iniciou ela sem saber o que realmente falar, apenas tinha sido vencida pelo cansaço e desabou onde deu, mas era algo que não poderia ser dito, poderia soar estranho, então só se esquivou. — Eu estou observando a tarde cair e...
— E...? — Incentivou ele com uma expressão de prossiga no rosto levemente marcado pelas cores do entardecer.
— E talvez só esperando o tempo passar mesmo. — Respondeu ela por fim forçando um sorriso.
— Entendi. Bom, isso parece bem legal. É a pintura mais perfeita que existe. — Disse ele observando o céu. — Isso me faz pensar que você tem um bom gosto para artes.
— É, talvez. — Sorrio ela ainda o admirando.
— Nossa! Desculpe a grosseria, eu sou Christopher Robert... do 202. —Ele se apresentou num tom descontraído, o que agora arrancou um sorriso aberto e sincero dela. — Mas pode me chamar de Chris.
— Eu sou Grace, Grace Peterson. — Disse ela ainda com o sorriso enfeitando seu rosto pequeno.
— Ahh! Você é a Grace do 204! — Falou ele com uma certa surpresa na voz.
Ela o encarou confusa, não compreendendo aquela exclamação tão expressiva.
— Muito prazer, Grace. — Ele se recompôs depois de perceber a confusão estampada na cara da jovem. — A sua avó falou tanto de você e sua mãe que...
— Falou? — Perguntou ela o interrompendo de repente com uma expressão um tanto que engraçada.
— Sim. A alguns dias atrás eu a encontrei na lavanderia. Então eu a ajudei com uma cesta superpesada. — Ele gesticulava de forma exagerada. — Ela é uma pessoa muito simpática, gosta de conversar e sabe puxar assunto, e logo nós estávamos numa conversa bem descontraída que até esquecemos as roupas. — Falava ele ainda de um jeito tão descontraído que era como se estivesse com um conhecido de muitos verões. — Ela falou de você com tamanho orgulho. Falou bastante de você e de sua mãe com um carinho muito grande. E agora sinto que já as conheço. — Ele soltou uma gargalhada contida ao final da última frase.
Ela não sabia o que falar depois daquela confissão, sentiu um misto de vergonha e contentamento. Apesar de não ser de sangue, ela também considerava muito a idosa como uma avó, mesmo a sua avó materna ainda estando viva.
— Ela é uma pessoa maravilhosa. — Disse a menina por fim com um olhar genuinamente puro que expressava toda a sua gratidão por aquela existência significativa em sua vida.
Ela se levantou se sentindo melhor, a conversa leve e descontraída ajudou a dissipar certos monstros que se aproximavam sorrateiramente momentos atrás, ao sacudir a poeira da calça sua bolsa caiu e sua muleta quase rolou, sem pensar duas vezes, ele se agachou e pegou antes dela o fazer, fazendo-a ficar vermelha.
— Vai subir agora? — Perguntou indicando com o dedo, ela assentiu. — Eu levo as suas coisas. — Disse ele de forma educada abrindo a porta da entrada com um sorriso amigável.
— Obrigada. — Agradeceu ela passando por ele completamente ruborizada.
No elevador, Grace tentou puxar assunto sobre o trabalho dele e coisas que ele gostava, não era muito boa em fazer isso, porém queria ser mais ousada, uma vez na vida ser um pouco mais extrovertida, talvez atrevida e menos ela mesma. Logo a conversa se tornou bem descontraída, ele era uma pessoa extrovertida o que a fez se sentir bem à vontade. O homem a acompanhou até a porta, onde se despediram com um "até mais breve", bem amigável e ela amou isso. Ele era, bom, segundo ela toda aquela redundância que a Sra. Marta havia comentado. Se sentiu apaixonada e com certeza ele estaria em seus sonhos naquela noite, já estava empolgada pela hora de dormir e criar suas fanfic mental.
Ao entrar, encontrou a idosa na cozinha, parecia bem distraída com o que fazia, "ela sente orgulho de mim". Olhando-a daquela forma sentiu um sentimento muito forte de carinho e se encontrava muito feliz por tê-la. Depois de anunciar sua presença, subiu para o quarto, se livrou das peças de roupas sujas, vestiu algo confortável e foi adiantar suas lições de casa, segundo sua mãe, 'sua primeira e única responsabilidade era a escola até então'.
Reunidas para o jantar, ela contou para a Sra. Marta e sua mãe que tinha conhecido naquela tarde o vizinho simpático do 202, o que rendeu uma conversa um tanto animada acerca disso ou o que pareceu ser.
— Eu o vi no domingo... — Comentou a Irina enquanto se servia de mais batatas grelhadas com alecrim. — E realmente é muito bonito, as solteiras deliram. — Ela soltou um riso com a última parte.
— Eu o achei muito simpático. — Disse Grace corada.
— Ele faz lembrar o rapaz do Capitão América...
— Ahh!! Fala sério, mãe! — Exclamou a jovem parando com o garfo perto da boca, interrompendo a mãe. — Ninguém se parece com ele. O Capitão América é único. Ele é simplesmente perfeito.
— Você fala isso porque é fã. — Comentou a Irina, enquanto repousava o copo sobre a mesa.
— Eu também acho um pouco parecido. — Comentou por alto a Sra. Marta que até então estava em silêncio apenas apreciando sua refeição, Grace olhou para ela desacreditada.
— Eu acho que ele não está mais solteiro. — Disse a Irina com um tom malicioso se direcionando para Sra. Marta.
— Como assim?! — Disse Grace se virando abruptamente para a mãe. — Por que diz isso? — Sua curiosidade exagerada transpareceu em sua voz o que fez sua mãe a olhar estranho.
— No domingo, quando eu estava chegando, eu o vi com uma moça, e muito bonita por sinal. — Disse a Irina acrescentando uma ênfase no final. — Muito longe de ser irmã ou algo do tipo.
— Que pena... — disse a Sra. Marta baixinho, parecia ter dito mais para si mesma.
Irina e Grace se viraram para a idosa ao som daquelas palavras um tanto inesperadas. Ela olhou de uma para a outra sem entender aqueles olhares se tornando semicerrados.
— Por que, que pena? — Perguntou a menina inquisidora.
— Por nada, ora essa. — Disse ela se voltando para a sua refeição. — Pensei alto.
Aquele comentário fez mãe e filha olharem entre se intrigadas e pensando algumas coisas fora do comum, — bom, Grace pensou. O restante do jantar percorreu sem mais comentários sobre aquele assunto, pegando o rumo de fofocas e críticas. Algumas horas passadas depois da refeição, a Sra. Martins acompanhou a Sra. Marta até a sua casa, do outro lado da rua. No caminho elas conversaram sobre Grace, a Sra. Evans quem puxou o assunto acerca da menina. Relatou de como a jovem se encontrava mais estranha por esses meses, contou dos pesadelos que a fazia despertar assustada e perder o sono nas madrugadas, de como sempre parecia estar triste e abatida, como se estivesse perdendo o brilho. A Irina tomou aquilo como uma preocupação de avó, contudo, ficou bem pensativa sobre tudo que havia ouvido, chegando ao seu coração uma pontada de preocupação. A noite estava húmida, não se encontrava frio, porém um vento gélido, vindo de algum lugar a fez se arrepiar e abraçar seu próprio corpo na tentativa de se aquecer ou reprimir a sensação ruim que tinha sentido naquele momento.
Ao retornar, encontrou a filha na sala vendo tv. Foi até a cozinha, parecia extremamente cansada, sua face era de sono e exaustão, queria muito a cama e um sono profundo, mas precisava de algumas horas a mais com a filha, não sabia quando mais teria esse tempo e sentia que precisava conversar com ela. Retornou à sala com duas xícaras de café puro, se sentou na outra poltrona, recolhendo os pés para cima, o frio da noite a perseguiu até em casa. Grace estava deitada com a perna esquerda apoiada na cabeceira do sofá, consertou a postura quando sua mãe depositou a xícara na mesinha ao lado, assistia a um programa policial de suspense. A Irina iniciou a conversa de forma descontraída, bem leve até o ponto que queria chegar, tendo a total atenção da jovem.
— Sabe Grace, eu sei que esses últimos anos foram e tem sido bem difícil, as escolas novas, climas diferentes, foram difíceis para mim também ter carga horaria superior, escritório mais distante, ficar longe por vários dias... semanas, exaustivo. Eu entendo que surgem momentos de saudades, frustrações, decepções e raivas... eu entendo. — Dizia ela alisando a borda da xícara quente, por alguns instantes seus olhos se perderam em algum passado desenhado no chão, pois o fitava pensativa como que estava revendo as cenas. — E eu entendo essa última que aconteceu que se eu pudesse arrebentaria a raça daquelas cretinas desgraçadas. — Ela apertou o objeto nas mãos com raiva sentindo a pele queimar com a temperatura.
Grace fez uma careta, erguendo uma das sobrancelhas e inclinando um pouco a cabeça para o lado em reação as palavras de sua mãe que logo depois pigarreou desconcertada se desculpando pelo linguajar. A jovem pegou o seu café provando um pouco, estava forte. Irina jogou suas madeixas onduladas e curtas para trás enquanto reorganizava sua linha de raciocínio que havia perdido em um momento de raiva.
— Enfim... a escola me ligou contando o que você fez e que como mais um ato de rebeldia não compareceu a detenção... — Reiniciou a Irina dessa vez de forma direta.
— Como assim, cara! — Exclamou a jovem interrompendo a mãe, muito confusa do que ouvia, não se lembrava de ter feito nada de errado.
A Sra. Martins fechou os olhos lentamente, inspirou fundo antes de reabri-los, depositou a xícara na mesa de centro, Grace fez o mesmo com o seu café, sabia que sua mãe estava buscando paciência, autocontrole para não ser indelicada ou dizer algo errado, ela não gostava de ser interrompida.
— Meu amor, eu entendo claramente que, o que aconteceu não foi justo, isso é óbvio. — Dizia a Irina com uma voz aveludada. — Mas você não pode agir de forma rebelde por causa das atitudes erradas dos outros e atacar seus colegas que não te fizeram nada. Não deve tratar os outros de forma má só porque alguns fizeram isso. Não seja como eles, se transforme em algo melhor por não fazer a mesma sujeira que eles fazem. — Ela pegou a xícara de café outra vez. — É mais fácil defender o justo do que o errado. Se você agir corretamente as pessoas sempre irão acreditar em você e agir ao seu favor...
— Mãe... — Grace interrompeu a mãe outra vez o que a fez respirar mais fundo. — Eu não sei o que a escola te disse, mas eu não fiz nada de errado. — Dizia ela com um semblante de confusão e medo, suas mãos suavam frias. — Eu não xinguei ou agredi meus colegas, eu não faltei com respeito aos meus professores. Eu não fiz nada de errado. — Suas últimas palavras saíram quase como num sussurro.
— Sabe Grace... — Falou a Irina de forma exausta, repousando a xícara na mesa, se remexeu na poltrona tirando os pés de cima. — Eu acredito que a destreza de proferir a mentira é maior do que a de dizer a verdade.
Grace parecia triste ao ouvir aquelas palavras, "ela não acredita em mim". Sua mãe se levantou fitando seus olhos tristes, se sentou ao seu lado pegando a xícara já vazia de suas mãos.
— Eu não estou duvidando de você. — Disse ela alisando os cabelos da filha com ternura. — Mas a escola me contou que você fez uma brincadeira de mal gosto com uma colega na aula de biologia, o que gerou pânico e desordem. Eu apenas quero que você seja franca comigo e me diga a verdade sempre, por mais horrível que ela seja, por mais difícil que pareça, para que eu possa te defender sempre e qualquer coisa que esteja te incomodando, você pode me contar... tudo. Eu estou aqui para você.
Grace deu um sorriso torto, mas de espírito quente, se sentiu aliviada, amada. A calma que a sua mãe passava a deixava mais à vontade, ela sempre tentava manter uma boa conduta perante os olhos dela, porém acreditava que também estava envolvido no bom comportamento não levar problemas para a sua mãe, pois já possuía muitos com o trabalho e chefes exigentes, então guardava para se mesma ou tentava resolver por si só, mas aquele tinha chegado até ela de forma distorcida.
— Então, vai me contar o que realmente aconteceu? — Incentivou a Irina, pegando-a de seus pensamentos.
— Okay, mas a culpa não foi minha. Tudo aconteceu na aula de biologia, a Alice Miller pegou uma amostra do laboratório e... — Falava enquanto brincava com seus dedos nervosos. — E ela jogou um Verme na minha cabeça, eu desesperada joguei para longe, o que acabou caindo na minha colega ao lado... Sr. Hanks apareceu e só viu a parte em que eu joguei e o pânico estava feito.
— Eu entendi. — Disse a Irina se encostando no espaldar do sofá pensativa, absorvendo o que tinha ouvido e tentando achar uma associação com o que a Sra. Marta havia dito.
— E hoje... — Iniciou mais uma vez a jovem hesitante, sua mãe a olhou séria. — Bom, hoje ela jogou tripa de sapo em mim.
— Nossa! Que menina nojenta!! — Exclamou a Irina retorcendo o semblante com nojo. — Onde está o professor nessas horas? — Parecia revoltada.
— Ou adiantado demais ou atrasado demais. — Respondeu Grace debochada.
— Eu entendi. Eu vou lá resolver isso. — Disse ela com a voz clara enraivecida. — Eu estava pensando em mudar você de escola. — Se virou para a filha como se buscasse uma aprovação não dita.
— Quase no final do ano letivo? De novo? — Se expressou a jovem forçando uma retórica. — Mãe, não tem... — As palavras pareciam machucá-la. — É por isso que certas coisas acontecem, eu sempre sou a novata que entra no meio do ano, que se muda abruptamente de um lugar para o outro como uma mala sempre feita, uma adolescente sem amigos. — Ela riu a sua última frase, passou a mão pelos cabelos bagunçando-os, sua mãe a observava com atenção. — Eu vou sobreviver nessa, assim como nas outras. — Completou com um suspiro longo.
Irina mediu as palavras da filha, sabia que havia muito mais por trás daquelas simples frases, mas não quis perlongar sobre aquele assunto. Sentiu uma pontada de culpa por muitas das coisas que aconteceram, e até daquelas que desconhecia. Estava tudo tão errado e a culpa era sua, sentia isso no fundo de sua mente, estava negligenciando seu bem mais precioso que dinheiro nenhum poderia comprar, perdendo momentos que trabalho ou promoção alguma poderia reparar. A vida não volta depois de perdida. Fechou os olhos sentindo a boca amargar e o coração apertar. Puxou a filha para um abraço em seu colo, deixando a jovem sem reação.
— As coisas têm que mudar. — Disse a Irina ainda pensativa agarrando a filha que mais parecia uma boneca em seus braços. — As coisas vão começar a mudar. — Ela sussurrou. — Quando o ano acabar, você irá para outra escola melhor, iniciará o ano do começo...
Grace ficou rendida nos braços de sua mãe sem entender tanto as palavras como a reação dela. Mas se sentiu agradecida, porém, se tudo se resumisse só na escola, todos os seus problemas estariam resolvidos, todavia, como dizer que monstros habitavam a sua mente? Como explicar aquilo que nem ela mesma conseguia entender? Como abrir o coração numa conversa franca sem o medo do julgamento e de ser tachada de Deus sabe lá o que? "Algumas coisas devem permanecer secretas, mesmo que depois isso o consuma, já que ninguém entende, ninguém pode ver". Uma hora depois, ambas foram dormir.
Na manhã seguinte, cumpriu com o que havia dito. Ela foi pessoalmente até a escola conversar com a direção, como o protocolo exigiam provas dos acontecimentos, o David MacAdans e a Lilly Stewart foram chamados e confirmaram a versão de Grace sobre os ocorridos, e como foram dentro do prédio escolar, a Alice ganhou algumas semanas em detenção, o que segundo a Grace, só pioraria as coisas, ela já temia o que estava por vir.
No horário do almoço, tentou ao máximo ser invisível, sabia que viria retaliação da parte da colega, a Alice era movida pelo espírito da vingança. As vezes Grace se pegava pensando no que a fez ser tão má assim, tão rancorosa, o porquê de fazer aquelas coisas. Grace pegou seu lanche e se encaminhou para a quadra, iria comer embaixo das arquibancadas, mas ao chegar lá deu de cara com alguém já ocupando o seu lugar.
O Ethan se encontrava bem relaxado sentado no gramado parcialmente seco, estava com fones de ouvido, de início não percebeu a presença da outra, e ao perceber, a fitou sério, era difícil saber o que ele estava pensando. Desconfortável, Grace deu meia volta nos calcanhares saindo bem irritada, por segundo ela o seu lugar ter sido ocupado. Almoçaria em outro lugar. Se encaminhou para o estacionamento julgando que conseguiria comer em paz. Havia uma área com algumas árvores de porte médio, com uma estrutura de madeira ao redor, ela costumava se sentar no batente e aproveitar a sombra fresca das plantas, contudo, sempre um e outro aparecia para importuná-la.
Iniciando o horário para a aula de filosofia, se dirigiu para a turma, era o momento de apresentar o trabalho que fez com a Mei. Tudo ocorreu bem durante a apresentação, tiveram uma avaliação bem significativa, o que deixou a Liu Mei animada com o resultado. Mas de todo esse trabalho que julgou chato, ela tirou uma lição para si, uma opinião própria sobre aquilo. Todos somos ambiciosos, com sonhos, medos e dores, não há apenas uma máquina, por muito mais que pareça, buscando sempre o além do que já tem, preencher um vazio, expectativa jogada ou apenas o desejo de ter sempre o melhor. Desejamos sempre ter o melhor nesse mundo de competições, onde sai vencendo o que vender a vida mais perfeita nas redes sociais, quem tem o carro melhor, quem viaja mais, quem pode ostentar o perfeito da existência, o inquebrável, não há pessoas quebradas nesse mundo perfeito das redes. Há aqueles que estão como intrusos nessa competição, usando essa corrida ambição como que apenas colocando um curativo em suas feridas, não enxergando o quão inflamadas estão ficando combatendo dor com dor. Sua mãe nunca mais foi a mesma depois do divórcio, parecia que alguma coisa nela tinha se perdido, a dor da traição apagou algo dentro dela e a outra metade divagava ao passado. Para silenciar esses monstros internos, se jogava por inteiro ao trabalho, um intruso ambicioso, sendo isso o preenchimento da lacuna do que foi perdido, combatendo sua angústia e frustração com o seu trabalho 'perfeito'. "Talvez... eu não devesse ter existido. Eu sou uma memória, uma lembrança amarga do seu passado triste que sempre a abraça arrancando lágrimas silenciosas, como os monstros que me cercam".
Na aula de Literatura os pensamentos de Shakespeare foram discutidos, destrinchando todos os pormenores, havia muitas mensagens subliminares por trás de suas obras, já dizia a Sra. Kristen. — 'O que levou a Ofélia a loucura e assim ao suicídio? Teria ela realmente enlouquecido e tirado a própria vida?' —.
— Esse é um assunto que divide opiniões e que gera uma gama de discussões frente aos fatos. — Se pronunciou a Agatha erguendo a voz para chamar a atenção da Sra. Kristen. — Porque o que a rainha contou relatando o acontecido deixa uma brecha para ser interpretado de duas formas diferentes. A de um suicídio e a de um acidente.
— Contudo, é importante ressaltar que a Ofélia se encontrava com a mente perturbada. — Disse um outro colega do lado esquerdo da sala. — Ela estava de luto pelo pai, sofrendo uma suposta rejeição do Hamlet... seria mais certo supor um atentado a própria vida, até porque ela sabia nadar.
— Ou foi um pouco de ambos. — Se pronunciou agora a outra colega, Lilly Stewart, que se encontrava logo atrás de Grace. — O acidente que se transformou em um suicídio. Imagine, o galho da árvore quebrou, ela caiu e na melancolia de seus dias, com sua mente envolvida em cinzas, se entregou as águas que fluíam para o seu descanso. Como alguém que está de pé em um lugar alto e bate aquela sensação estranha de pular...
— Isso se chama pensamentos intrusivos. — Disse um dos amigos do David, o Simon, quase interrompendo a colega. — O pensamento intrusivo é um teste da nossa consciência treinada para saber os limites que não ultrapassaríamos. Por exemplo: se você estiver segurando um bebê e sentir vontade de jogar ele no chão, você fará o contrário, certamente você vai segurar ele com mais força e ativar seu senso de proteção. Isso serve também para aquele pensamento de jogar a bolsa ou o celular de cima da ponte, da janela do prédio, automaticamente você vai mudar de lugar ou segurar com mais força e corrigir o pensamento.
"E o que acontece quando isso falha?" pensou Grace desviando o olhar do rapaz e fitando o tempo lá fora.
— Interessante. — Disse a Sra. Kristen se levantando de seu lugar. — Uma ótima colocação de todos. Agora sobre o Hamlet, será que ele realmente viu o fantasma do falecido rei ou foi sua mente inconformada com a morte prematura de seu pai e a ascensão repentina de seu tio ao trono? E como podemos associar todos esses contextos, crítica, a liberdade de expressão?
Enquanto todo o assunto era debatido, agora Grace era uma presença ausente, bem longe daquele campo de debate, se encontrando em seu próprio mundo, com seus pensamentos reflexivos sobre o quão perto do penhasco estava ou se realmente estava. "Será que se ficasse em frente a um precipício recuaria ou pularia, teria uma brecha para especulações, acidentes?" Já se sentia cansada por tantos pensamentos afiados.
Desenhava alguma coisa em seu caderno quando a Sra. Kristen pronunciou seu nome alto a fazendo levantar a cabeça abruptamente assustada, principalmente porque não fazia a mínima ideia do que estava agora sendo falado. Todos os rostos se voltaram para ela que continuava uma estátua suando frio e desejando se afundar na cadeira.
Ela inclinou a cabeça enquanto jogava uma mecha do cabelo para trás, em seguida olhou para a sua professora com um sorriso envergonhado e bochechas coradas.
— Desculpe, Sra. Kristen, mas eu não entendi a pergunta. — Disse Grace com a voz um pouco mais baixa, por debaixo da mesa suas pernas balançavam descontroladamente de nervoso.
— Não entendeu, porque não estava prestando atenção. — Ralhou sua professora cruzando os braços. Todos ao redor riram baixinho. — Se estivesse entenderia.
— Mas eu estava prestando atenção. — Disse a jovem ajeitando a coluna para parecer mais confiante. — Eu não entendi a última parte.
— A pergunta, que você quer dizer...
— Isso!! — Grace elevou um pouco o tom da voz, se arrependendo logo em seguida. — Isso mesmo. E eu tenho uma opinião sobre isso, mas a Senhora não vai querer saber.
— É claro que eu vou. — Disse a Sra. Kristen indo se sentar. — Na verdade eu insisto. — Concluiu ela em posição de autoridade.
A jovem engoliu em seco com aquelas palavras, ela não fazia ideia do que estavam discutindo anteriormente, olhou para vários pontos na frente da sala tentando achar uma referência que fosse, algo que a fizesse pensar rapidamente em alguma coisa coerente com o assunto que lembrava estar sendo discutido antes. Contudo, colocando sua vergonha de lado e sem vontade de assumir que não sabia, ela pediu que a professora repetisse a pergunta, o que fez alguns rirem de novo, porém dessa vez ela não se importou.
— Dado o conhecimento vertente sobre a liberdade de expressão dês dos tempos primórdios, como o apresentado na época em que se passa Hamlet, como por exemplo... — Dizia a Sra. Kristen saboreando cada palavra enquanto via sua aluna mudar de vermelho a papel. — E considerando o quadro transdisciplinar da atual sociedade onde a liberdade de expressão é um direito de todos, um dos principais pilares de um governo livre, segundo o próprio Benjamin Franklin chamou, por que muitos ainda se hesitam em exercer um direito tão necessário para a verdadeira transdisciplinaridade moderna? — Concluiu a professora se encostando no respaldar da cadeira, sua face exibia paciência e um tempo que não existia.
"Puta merda", pensou Grace também se encostando no espaldar da cadeira, completamente perdida do que poderia dizer, sua ansiedade estava gritando. Ela podia ouvir alguns de seus colegas ainda rindo e até mesmo fazendo piadas sobre a situação dela, o que a fez perder totalmente o raciocínio e formular qualquer coisa coerente ao assunto. Dado a situação, Grace respirou fundo, passou a mão pelos cabelos e esticou os braços sobre a mesa, por fim se pronunciou...
— Eu achei que estávamos falando da Ofélia. — Disse a jovem tentando mascarar seu nervosismo impregnado em sua voz.
— Sim, nós estávamos falando sobre ela, assim também como os múltiplos fatores que acarretaram todos os acontecimentos dela e de toda a trama, a falta de voz das pessoas daquela época, considerando o ambiente político carregado de controle e censura. — Dizia ela como se estivesse discutindo uma tese universitária, e falhando nisso. — O autor aborda temas como moralidade, corrupção e a busca pela verdade, chegando a um breve comentário acerca da igreja medieval, a opressão e o uso do poder, e assim levando a questão que estamos discutindo agora, a liberdade de expressão.
— Bom, eu acredito que apesar do mundo ter evoluído de forma considerável, seu conceito primitivo ainda prevalece o mesmo, mascarado sobre um novo, apesar de não termos mais a supremacia da igreja medieval controlando com o medo, detendo tão expostamente o que era e o que não era aceitável. — Iniciou Grace observando o olhar semicerrado de sua professora e tentando parecer mais confiante. — Vez por outra surgem novos sistemas conceituados para deter o que é aceitável ou não, empregando a política da liberdade. Ouvi algo uma vez que para mim faz muito sentido, 'a liberdade é uma das maiores mentiras da vida', apesar do desenvolvimento social, podemos fazer e dizer muitas coisas, mas nem tudo, porque nem tudo é aceitável para o sistema, e esse é o conceito do velho mascarado no novo, a ilusão de que há liberdade quando não existe. A verdadeira liberdade não existe.
— Isso é um absurdo! — Disse sua professora se levantando ultrajada com a resposta incoerente de sua aluna. — É lógico que existe. Nós estamos em um país livre...
— Não importa o país. — Reiniciou a garota interrompendo sua professora. — Vivemos em uma sociedade doente e cada vez mais em declínio. O mundo globalizado, moldado agora pôr achismos padronizados, e o indivíduo que se por algum motivo não mudar para se encaixar a esse suposto padrão, muita das vezes é excluído ou tachado de anormal e aqueles que prezam por manter os velhos costumes são colocados como os conservadores ignorantes, os inimigos do modernismo, e os novos como ditadores de regras, destruidores das antigas tradições. Não há respeito entre ambos, e suas vozes são caladas em meio a discussões, insultos, discursos de ódio e outros, então, onde está a verdadeira liberdade nesse emaranhado de teias?
— Eu não sei Srta. Peterson, onde está? — Disse a Sra. Kristen um tanto debochada e se sentindo insultada.
— As pessoas se perderam no real significado de inclusão, esqueceram o significado da transdisciplinaridade. Muitos estão usando ignorância, grosseria, estupidez como voz, chamando de personalidade forte frente aos seus direitos, dizendo que goza da liberdade de se expressar, pois é um direito de todos, militando o que convém ou não no momento (o sistema). Mas há uma verdade irrefutável sobre o novo e o velho sistema, a sua verdadeira liberdade chamada dinheiro. Os direitos morrem onde o dinheiro nasce. — Ela agora falava em tom de indireta. — A liberdade é dinheiro e o dinheiro silencia a Justiça, e alguns desses silenciados tem marcas escondidas para provar. Se eu fosse de fato livre, não teria medo de andar na rua a noite, não teria medo de pegar um simples ônibus no ponto. — Finalizou ela com um tom rancoroso olhando de esguelha para a Agatha Adams.
Toda a sala estava em silencio, todos haviam parado para ouvi-la, e apesar de saber que boa parte de seu discurso estava muito mal organizado, desconexo e talvez fora de contexto ou até mesmo incoerente com o tema, se sentiu bem ao se expressar de seu jeito, seja ele certo ou errado na visão de alguns - ou de muitos.
Ao concluir seus pensamentos, se sentiu vista, ouvida. Talvez todos depois a julgassem mal por sua opinião, pensando ela, talvez imatura sobre o mundo real e sua infinita complexidade. Mas depois de tanto tempo naquela turma se sentiu como parte da aula, apesar de no início ter sido bem histérico, e todos em silencio ouvindo-a foi desconcertante, porém gratificante ao mesmo tempo.
— Eu sinto muito, Grace, por pensar assim. — Disse sua professora ainda a fitando séria antes de se voltar à turma. — Infelizmente turma, é por causa desses tipos de pensamentos que muitos se detém aos seus direitos e até desconhecem alguns deles...
Antes que a Sra. Kristen continuasse, o sino tocou e a turma foi dispensada com a promessa de que aquele assunto ainda continuaria a ser discutido, contudo ainda olhava estranho para a sua aluna, o que fez a jovem sentir um desconforto no íntimo. A próxima aula seria de educação física, Grace já imaginava o desgosto de ter, segundo ela, de servir de serviçal para as suas colegas. Foi se arrastando até a quadra menor (coberta), tinha a sensação de que a Sra. Lewis a estava punindo por algo. Chegando no ambiente foi saudada pela professora com três toalhas de rosto, hoje ela tinha colocado a garota para dobrar as roupas, o que ela não reclamou, faria atarefa sentada.
No vestuário masculino três coisas reinavam no ar, aroma de sabonete cítrico, cueca suada e o vapor da água quente envolvendo corpos suados e recém banhados, criando uma atmosfera pesada logo que se entrava naquele lugar. O assunto que dominava a conversa de todos era sobre as 'vítimas' que seriam convidadas para o baile, e o sortudo que acompanharia a bela do baile e possivelmente a própria festa intima no final da noite. Um grupo tinha acabado de sair da quadra e se arrumavam para a última aula, o segundo se vestia para a educação física na quadra maior. Ethan era um dos únicos que se mantinha reservado, até porque ele era só mais um nerd ali, excluído, e seus amigos, bom, eles não estavam lá, e apesar de jogar bem, não fazia parte do time escalado, ele frequentava a grade de xadrez e artes visuais.
— E aí, Chris, já chamou a Alice para o baile? — Perguntou o Alex (namorado da Zoe), se aproximando do amigo.
— Ele não precisa disso. — Se adiantou um outro colega, um moreno alto e forte, com um semblante intimidador, mas com traços bonitos. — É logico que eles vão juntos.
— Hum... na verdade não. — Disse o Chris um pouco desconcertado com a situação, mas sem perder o seu jeito convencido de ser.
— Ohh! Então quer dizer que os boatos são verdadeiros. — Disse agora o Diego (namorado da Agatha), também se aproximando dos amigos, enrolava a toalha em volta da cintura, tinha acabado de sair do banho.
Ele era um porto-riquenho charmoso e com uma fama nada louvável para as mulheres.
— Vocês terminaram... — continuou ele.
— Nós estamos apenas dando um tempo nas coisas. — O Chris o interrompeu se adiantando. — Estamos muito sobrecarregados com algumas coisas. — Ele não considerava como um término, ambos ainda se gostavam, mas por questões familiares os dois acabaram brigando e se afastando.
— E quem você pensa em chamar. — Perguntou o Alex se vestindo. — Ou não vai mais?
— É claro que eu vou! — Exclamou ele enquanto vestia a calça. — Eu estou pensando em chamar a Grace Peterson.
O Ethan estava a poucos metros de distância do grupo, mas pôde ouvir claramente o nome da moça, olhando abruptamente de soslaio para o dono da voz, a face da jovem que sempre tinha o costume de encará-lo de forma estranha, veio em sua mente como uma sombra enevoada, mas uma outra voz o tirou dos pensamentos.
— A olhuda da turma de biologia da Alice? — Perguntou o Alex em um tom incrédulo, claramente desaprovando a ideia do amigo que não mostrou se importar.
— Ela não é olhuda, pelo amor... — Disse o rapaz parando com as mãos na cintura.
O Diego coçou a cabeça, outros se entreolharam estranho, mas foi o Alex que se pronunciou por fim.
— Cara, a Alice vai te matar. — Falou ele rindo com o Diego e o outro colega de nome Stephan.
— Ou matar a menina. — O Stephan gargalhou.
— Eu gosto de provocar aquela ruiva safada. — Comentou o Chris rindo também.
— Eu não acho que seja uma boa ideia brincar com o humor dela. — Falou o Stephan. — Provocar ela, é brincar com a morte. A mulher parece o diabo quando está furiosa.
Todos riram logo em seguida com aquele comentário.
Momentos depois entrou o David MacAdans também comentando sobre o evento. Seu armário era de frente para o do Chris, quatro armários a frente (a direita), era o do Ethan, que terminava de se arrumar para a quadra, ele parecia não ter pressa nem se importar de chegar atrasado, contudo, sua atenção foi roubada mais uma vez ao ouvir o nome da moça que começou a lhe causar uma certa curiosidade.
— Você já convidou a Charlotte para o baile? — Perguntou o Simon ao amigo.
— Não. Eu não vou convidar ela. — Respondeu o David se despindo das peças suadas.
— Então vai chamar a Jessica ou a Mei? — Ele tirava os sapatos, seu tom era curioso.
— Quem é Mei? — Perguntou o David franzindo o cenho e parando confuso.
— Ah, esquece. — Disse seu amigo sem paciência. — Com quem você vai afinal?
— Eu vou chamar a Grace...
— A cara de peixe?! — Exclamou o Simon interrompendo o amigo que o fitou com uma cara que dizia: 'sério?'.
Foi por causa dele que os outros passaram a chamá-la assim.
— Okay, está bem. Como foi que você chamou mesmo? — Dizia ele com deboche. — Sereia. — Gargalhou ao final da palavra.
— Ninfa. — Corrigiu o David, revirando os olhos em crítica.
— E qual a diferença? — Falou o rapaz batendo a porta do armário com força.
— Se lesse mais saberia. — O David devolveu o deboche.
Quando o Simon falou o nome da jovem mais uma vez o Diego se aproximou os interrompendo dizendo que o Chris é quem a convidaria. A conversa rendeu mais alguns minutos até o próprio Chris sugerir 20 pratas de que a moça aceitaria ir com ele primeiro, prometendo aos demais uma noite quente com a jovem e um pequeno registro do ocorrido como prova. O David não disse o mesmo quanto a ficar com ela, mas aceitou a aposta. Depois do acordo firmado, ele e o Simon foram para o chuveiro e o Chris e seus amigos saíram prontos para os próximos horários. O Ethan saiu uns dois minutos depois se dirigindo para a quadra. Tinha ouvido toda a conversa e sentiu um pouco de pena da Grace, mas ele pensava consigo mesmo de que se ela fosse esperta, perceberia o esquema e se pouparia de mais uma humilhação já sofrida naquela escola.
Os minutos se transformaram em horas e quando se deu conta estava sendo guiada pela Sra. Lewis até o vestuário. No final das contas, Grace teve que de todo modo servir as colegas em algumas coisas. Ao final daquela aula todas, sem exceção, foram para o vestuário, a treinadora as acompanhou até lá ainda falando sobre técnicas de preparação e alguns alongamentos, contudo, ela estava sendo ignorada pela maioria das meninas ali. Não muito diferente dos rapazes, o assunto discutido agora também era sobre o baile e quem seria a bela da festa, sendo sua professora se tornando completamente invisível para elas — se tinha cinco prestando atenção era muito.
A Alice estava convicta de que ganharia, segundo a mesma, ela se encontrava num empate com a Agatha, sendo a Jessica já a descartada do rank. Era em circunstâncias como aquela que a Zoe Clark, se sentia excluída por nunca estar no mesmo patamar que as outras, talvez fosse a sua cor? Bom, ela não sabia, ou talvez só não fosse bonita mesmo, e apesar de pensar essas tais coisas, ela jamais abaixava a cabeça, sempre enfrentou o racismo de cabeça erguida, se mostrando por fora uma armadura blindada, porém por dentro como já é de se imaginar, já estava em cacos, se desfazendo em pequeninos pedaços. Nenhuma armadura é de fato perfeita impenetrável, principalmente as que sangram, as feitas de carne e ossos.
Como se já não bastasse todo o trabalho que teve mais cedo, a Sra. Lewis incumbiu Grace de uma cesta de roupas incluindo as das líderes de torcida, a jovem engoliu em seco ao lembrar da última vez que foi encarregada disso, julgava ela ser algum tipo de punição, sua professora designou a Lilly Stewart para a ajudar com a tarefa. A Alice mexia em outra cesta enquanto xingava algumas coisas, segundo ela tinha perdido um colar dourado, quando encontrou algo peculiar ali naquele meio. Ela encarou o objeto um tanto incrédula...
— Mas que diabos é isso?! — Exclamou a jovem levantando o objeto em frente ao rosto, pegava na ponta do dedo como se expressasse nojo.
As outras meninas pararam para olhar o motivo de tamanha exclamação. A Sra. Lewis se aproximou séria abrindo caminho entre as moças, julgando ser algo sério pois todas ali próximo encaravam, contudo, não era nada demais fazendo a professora revirar os olhos em crítica.
— Isso é aquilo que os caras colocam no...
— Isso é um protetor genital. — Disse a Sra. Lewis se adiantando e interrompendo a Zoe. — Não sei como veio parar aqui. Provavelmente algum engraçadinho resolveu lavar tudo junto.
— Credo!! — Disse a Alice jogando a peça de volta a cesta com nojo. — Que nojo!
— Ahh, para! Sua boca já percorreu por lugares mais... profundos. — Falou a Zoe com malicia logo depois gargalhando e arrancando algumas risadas das outras, e um olhar arregalado da Grace que tentava ser invisível ali. — Já engoliu e c...
— Cala a boca! Que garota pervertida! — Gritou a Alice enquanto se vestia, mas claramente não parecia desconfortável.
Ela encarou Grace assim que a outra fez menção de pegar o cesto que estava em cima do banco.
— Qual foi Grace? — Disse ela se virando para a colega que parou ao som de sua voz. — Está se sentindo desconfortável com isso?
— Se ainda não for completamente virgem. — Comentou a Agatha com descaso enquanto secava sua longa cabeleira negra.
— Ah, não! — Zoe exclamou alto atraindo alguns olhares. — Não vai dizer que ainda é? — Disse ela dando uma gargalhada escandalosa.
— Se quiser a gente pode ajudar com isso. — Disse a Alice por fim em um tom carregado de maldade.
— Essa aí deve ser a pior das putas. — Disse a Zoe com um certo desdém. — As caras de santas são as piores, zerão o Kama-sutra.
— Será mesmo? — Disse a Alice mais uma vez com maldade em sua voz.
Grace não entendeu muito bem o que a outra quis dizer com aquilo, mas sentiu medo, sentiu seu sangue gelar e suas pernas ficarem fracas, porém não perdeu a postura, se manteve altiva e com o olhar arrogante e até um tanto debochado. Ela recolheu a cesta ainda ouvindo suas colegas a debochando, criticando sem saber se era verdade ou não o que as outras especulavam, "onde está o professor nessas horas", pensou consigo mesma sentindo-se muito indefesa no meio de todos aqueles rostos hostis. Quando se dirigia para o armário, para guardar as coisas, deu de cara com a sua professora que a mandou levar a peça masculina para o vestuário masculino, ressaltando que não entrasse, que deixasse ao lado da lavanderia deles. Mas antes de sair, pôde ouvir algo que fez sua boca amargar.
— Vamos no bistrô depois daqui? — Perguntou a Zoe terminando de se arrumar.
— Para mim não vai dar. — Respondeu a Alice olhando na direção da Grace. — Parece que alguém aqui me fez ficar na detenção. — Sua voz saiu revelando todo o seu ódio. — Mas essa pessoa pode se considerar morta.
Grace sentiu um arrepio percorrer sua espinha, dando um choque de adrenalina em seu corpo ao som daquelas palavras tão rancorosas, tratou de sair das vistas da colega e dando um dane-se ao que a professora queria que ela fizesse, esquecendo até a muleta. Tinha evitado a Alice o dia todo, mas no final acabou falhando quanto a isso, já temendo pelo que viria. Depois que o local ficou vazio foi fazer o que havia faltado. Com todas as roupas organizadas e de se certificar de que nada de errado tinha acontecido com as roupas das líderes de torcida, ela recolheu suas coisas e se dirigiu para devolver a peça masculina ao seu lugar, sua colega já havia saído muito antes.
Ao se aproximar da porta chamou uma, duas vezes e esperou por respostas, chamou por mais uma segunda vez, mas ainda nada. Pensou então em jogar o objeto na entrada e sair, porém, algo a motivava internamente a entrar, aquela curiosidade errada que seduz o homem ao pecado. Então se encaminhou para dentro cautelosamente em silêncio. O aroma era bem desagradável, um misto de toalhas molhadas dobradas por horas e meias velhas. Passou pelo primeiro corredor de armários azuis tampando o nariz, contudo, ao passar pela segunda fileira foi surpreendida por um perfume agradável, uma sensação de limpeza, pós banho, um aroma de hortelã-pimenta ou talvez só a pura fragrância oriental. Grace caminhou lentamente apreciando cada nota urgente daquela substância que se espalhava pelo ar, até que uma figura presente a fez congelar no lugar, sentindo seu coração acelerar descompassadamente, experimentando um calor absurdo subir por seu corpo acompanhado de um leve formigamento. Inclinou a cabeça um pouco de lado enquanto seus olhos desenhavam uma linha maliciosa pelo corpo seminu do outro absorto em seu mundo, ficando vermelha e levemente quente ao pensar se imaginando tocando-o.
Ethan tinha acabado de sair do banho, se secou deixando o corpo um pouco húmido, vestiu sua calça larga (quase estilo alfaiataria), mas sem fechá-la, passou um pouco de sua colônia e ao se virar deu de cara com uma jovem o olhando de uma forma... nada convencional. Sentiu a temperatura mudar e suas bochechas corarem sob aquele olhar tão pervertido, tão transparente que ela o lançava.
Grace sentiu seu coração sair do peito quando o rapaz se virou e a encarou, a prendendo no lugar sem reação de fuga com seus olhos pequenos semicerrados, intensos, fazendo com se tudo ao seu redor tivesse parado.
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