Capítulo VII

No badalar do meio-dia, Grace se dirigiu para o refeitório, ignorando a massa tumultuosa ao seu redor, pegou seu almoço que não parecia está bom e se sentou em uma mesa reservada tentando não chamar a atenção, foi difícil equilibrar muleta e bandeja, ao se sentar quase derrubou a comida, seu sangue gelou na percepção desse acontecimento. O espaço ainda estava sendo preenchido pelos estudantes. Pegou seu celular para checar suas mensagens, tinha três chamadas perdidas da mãe, do horário que ela ainda estava em casa e algumas mensagens de seu pai. Foi surpreendida quando uma figura um tanto inusitada se sentou logo a sua frente com uma bandeja em mãos tendo a pretensão de se juntar a ela no almoço.

— Posso me sentar aqui? — Perguntou o rapaz ruivo com um sorriso simpático, já se sentando.

Grace o fitou surpresa com sua repentina ação, seu olhar estranho provocou risos nele, deixando-a mais desconfiada ainda. Sem entender o que se passava, ela olhou em volta percebendo que algumas pessoas os observavam curiosos, cochichos podiam ser ouvidos do outro lado do recinto. A Liu Mei estava com umas meninas do seu grupinho quando notou a formação daquele casal, ficou vermelha quando viu os jovens juntos. Suas amigas cochichavam sobre o que ele estava fazendo com a garota estranha, tudo naquela escola era motivos de fofocas, histórias redundantes, novidades inventadas e repórteres procurando furos de notícias falsas. Quando Grace voltou a encarar o MacAdans, percebeu que ele a fitava de um jeito que julgou estranhamente desconfortável, seus cativantes olhos verdes oliva formavam uma linha avaliativa adornada por longos cílios ruivos alaranjados, — ele não era feio afinal.

— O que está fazendo? — Perguntou a jovem de forma ríspida, inclinando um pouco sobre a mesa.

— Almoçando. — Respondeu ele parando com o garfo perto da boca, ainda parecia sorrir com os olhos.

— Isso eu sei. — Falou ela um pouco mais baixo agora. — Eu digo, por que aqui? Por que se sentar logo aqui? Cadê os seus amigos?

— Almoçando também. Eu perguntei se eu poderia me sentar. — Disse ele em tom de defesa. — E eles gostam muito de falar sobre o basquete, e aqui entre nós, esse ano não vai render, não está dando lucros, resultados, estão apostando no futebol. Os leões do Royal Lion Academy, está começando com tudo...

"Meu Deus, que garoto irritante", pensou ela enquanto apertava o recipiente com suco, quase derramou o conteúdo.

— Isso é alguma aposta? — Perguntou ela fechando o semblante de modo hostil o interrompendo.

— Dessa vez não, — disse sem pensar. — Hey! Hey! — Exclamou o David levantando as mãos, mais uma vez em defesa. — Relaxe, Grace, eu não estou aqui para zoar você não. Pode ficar tranquila.

— Hmm. Okay. — Ela estava desconfiada.

Ao olhar de soslaio, percebeu a Mei os observando.

— Já que você não veio ontem, eu queria te atualizar sobre algumas coisas que rolou das aulas. — Falou o David antes de dar um grande gole no suco de pêssegos.

— Eu não quero falar de ciências ou história... — Disse Grace percebendo a aproximação da Alice e suas amigas na cafeteira. O ambiente já estava lotado o que lhe causou arrepios.

— Nossa, Grace! — Exclamou ele fazendo uma careta involuntária. — Não precisa ser grossa.

— Foi mal. — Disse ela com um suspiro, logo depois empurrando o arroz com legumes para dentro, a comida parecia insossa.

— O que aconteceu com sua perna? — Perguntou apontando para de baixo da mesa.

— Eu caí. — Ela respirou fundo. — Rolei cinco lances de escada. — Lançou um sorriso de escárnio.

— Não!!? Sério... — Disse ele sendo interrompido por mais uma repentina aproximação, a da Mei.

A Liu Mei, se aproximou com uma bandeja em mãos, já se sentando sem falar nada, ao lado do David que a olhou de baixo acima, parecendo um pouco surpreso com a súbita presença da jovem, pois ela estava sentada quase do outro lado do refeitório. Depois que se acomodou, os saudou com seu sorriso fofo que deixava suas bochechas coradas e seus olhos mais apertadinhos. Hoje todo o seu cabelo estava preso num rabo de cavalo, destacando seu rosto cheio. Ambos ficaram encarando-a, o que a deixou bastante desconfortável. Foi o David, quem dissipou o clima ao falar sobre o que Grace acabara de lhe contar, sobre rolar a escadaria abaixo, arrancando um olhar assustado da moça. Grace, se encontrava muito desconfiada de todo aquele cenário, estava tudo muito amigável para o que ela estava acostumada. Mas decidiu relaxar um pouco e aproveitar essa inesperada aproximação, até porque, não era sempre que tinha companhia no almoço.

Se passando alguns minutos depois do sinal tocar e de se certificar que a Alice e sua turma já haviam partido do refeitório, ela se dirigiu para o ginásio, na ala da piscina, precisava encarar a Sra. Lewis, a mulher era tão dura e de olhar severo que a cada passada seu corpo se enrijecia de medo. Ao olhar o estado que a menina se encontrava, a mulher esboçou uma cara de frustração, repreensão e desgosto, como se a jovem tivesse culpa de ter se machucado. Ela passou a mão por seu cabelo loiro claro e curto com um suspiro, balançou a cabeça duas vezes antes de se virar para a menina.

— Okay. Boa sorte, Grace. — Disse ela por fim, antes de dar as costas e sair andando pesadamente, o que fez o coração da jovem bater mais forte, temia pelo futuro daquela modalidade.

Grace ficou parada no mesmo lugar a olhando, também estava frustrada e com raiva, mas o que poderia fazer no momento? Ao olhar para suas duas colegas encontrou faces furiosas, elas também a culpava pelo acidente. A jovem as fitou friamente e saiu.

Sem saber o que fazer com aquele horário, se dirigiu para o campo, estava um dia agradável, estando parcialmente nublado, ameaçando algumas gostas tardias de chuva. Procurou um lugar na arquibancada e se sentou relaxada. Alguns rapazes estavam jogando futebol, o Ethan estava lá, parecia jogar bem e tinha um físico bonito, sólido, não era magro, nem fraco como suas roupas largas o faziam parecer. Seu plexo forte se desenhava lindamente na camisa do treino, tinha braços e pernas fortes, olhos marcantes, lábios voluptuosos que imploravam para serem beijados e um cabelo incrivelmente lindo, em alguns momentos ele colocava algumas mexas atrás da orelha, contudo não era cumprido e sempre voltavam para o seu rosto. Ela estava perdida no homem parado metros à sua frente. Como se soubesse que estava sendo observado, o rapaz olhou exatamente em sua direção, a fazendo congelar no lugar, sentindo como se formigas peregrinasse por debaixo de sua pele, seu coração pulsava de um jeito estranho. Diferente da última vez, ela sustentou aquele olhar. Aqueles olhos caramelos escuros eram intensos, fulminavam-na como um lobo espreitando um cordeiro. "Para que ser tão sério", pensava ela, mas por debaixo de toda aquela intensidade existia um vazio interno.

Alguém do outro lado da quadra gritou o nome dele, rompendo o fio invisível que os prendeu por breves segundos. Ela se pegou com um pequeno sorriso enfeitando seu rosto ao término daquele contato sem palavras.

Enquanto ainda admirava o jogador, alguém se aproximou, se sentando em silêncio. Um perfume marcante, amadeirado sensualmente leve, mas frio, fresco ao ponto de lembrar os altos pinheiros Irlandeses nas estações chuvosas, se instalou em suas narinas de forma arrebatadora, corroendo-a nostalgicamente como a ferrugem corrói o metal, a teletransportando para um lugar familiarmente desconhecido. Uma clareira com um contraste de verde, lilás e roxo. Flores, folhas e grama cobriam o terreno como um tapete mágico, trançado por seres místicos. Os habitantes esotéricos se ocultavam entre as árvores frondosas de pilar ancestral que farfalhavam ao som utópico de suas vozes envolta ao vento sussurrante, canções antigas de épocas passadas indistinguivelmente entoadas. Os densos pinheiros dançavam enigmaticamente sob o céu transcendente do solstício de verão. Pinhos recém-colhidos pelas mãos da tempestade se espalhavam pela grama florida, como oferendas prestadas ao deus da festa. O solo ainda estava fresco, húmido, era gostoso caminhar descalço. Não estava frio nem quente e tudo era delicadamente agradável de se contemplar. Quando era menina, recordava de ter visitado um lugar parecido com esse, e com aquele mesmo perfume memorial.

Ainda não sabia quem havia sentado ao seu lado, mas o perfume dele teve a capacidade de trazer uma memória a muito esquecida no fundo de sua mente, uma das viagens que fez para a Irlanda com seus pais, quando pequena. Ficou com muita vontade de ir para New Hampshire, contudo, sozinha. 'Como seria bom voltar ao passado, porém apenas as partes alegres'. Ela podia sentir os olhos da pessoa sobre si, mas não quis se virar para olhar, preferiu ignorar. Talvez nem fosse alguém conhecido, continuou focada no 'jogo'.

— Oi! — Se pronunciou uma voz masculina rouca, depois de um certo tempo. — Tudo bem?

— Sim, obrigada. — Respondeu ela secamente depois de dois minutos contados.

De soslaio, ela viu quem era a pessoa, Chris Owens, o namorado da Alice, ou como os boatos diziam, ex. Estava com o pensamento de se levantar e sair quando ele falou algo novamente a fazendo parar e escutar, curiosa.

— Eu esqueci de perguntar se eu poderia me sentar. — Disse ele em tom envergonhado.

— É um lugar público. — Falou ela com poucas palavras ainda observando o jovem asiático que não olhou mais em sua direção, parecia bem concentrado na partida.

— Okay. — Ele rio, se remexeu no acento. — Eu não sei o porquê da a Alice pegar tanto no seu pé...

"Porque ela é uma filha da puta", pensou ela esboçando uma careta de desdém.

— ... O que você fez para ela afinal, hem? — Perguntou ele virando o corpo em sua direção com um semblante questionável.

Grace moveu a cabeça lentamente para encará-lo com uma face séria e ameaçadora.

— Só perguntei por que quero entender. — Disse ele em defesa percebendo o impacto de suas palavras.

Ao voltar sua atenção para a quadra, notou que o Ethan os observava, isso fez seus pelos eriçarem e sua barriga se retorcer como se milhares de borboletas estivessem lutando para sair dos casulos, pegando sua atenção outra vez.

— Mas e então, o que faz aqui? — Perguntou ele em tom animado.

— Não é óbvio. — Respondeu mais uma vez seca sem olhá-lo, sua atenção continuava no jovem jogador.

— Nossa, moça!! Não precisa ser grossa...

— Sua namorada mandou você vir aqui? — Se voltou Grace para o garoto ao seu lado esquerdo, classicamente sem paciência, o interrompendo sem pudor.

Chris, a olhou um tanto surpreso, ela sempre parecia tão calma, serenamente gentil, mas principalmente pelo comportamento, pôr o está ignorando daquela forma. Já estava drasticamente acostumado com as moças caindo aos seus pés, fazendo suas vontades. Era o segundo melhor no futebol, tinha uma aparência agradável, todos o acham bonito, com 1,82 de altura, cabelos castanhos bem claro, olhos amendoados em tom castanho acinzentados e um sorriso bad boy que fazia as garotas suspirarem. Mas foi Alice a única que o dominou de verdade, e apesar de todos os seus defeitos, ela conseguia ser alguém especial para ele, conhecia algumas rachaduras maquiadas daquela porcelana.

Ele parou por uns breves momentos fitando a moça a sua frente (lado), que se encontrava com um semblante de poucos amigos, mas... por debaixo de tudo isso havia uma beleza diferente. Percebeu que ela não era feia, a estranha com cara de peixe de quem todos falavam, tinha olhos grandes e alongados que facilmente hipnotizava, lábios pequenos e rosados e um cabelo volumosamente brilhante, dispunha de uma beleza feérica. Seus olhos desenharam uma linha sobre esses detalhes até então desconhecidos. Podia não ser bonita como a Alice, porém possuía um rosto marcante e isso ninguém poderia discordar.

Grace corou sobre aquele olhar tão avaliador, a vontade foi de sumir ou então... empurrá-lo e sair correndo, se pegou sorrindo com esse último pensamento, contudo, por perceber a face dele de confuso tornou-se séria novamente.

— Isso é algum tipo de aposta? — Perguntou ficando mais séria.

— Aposta? — Ele parecia mais confuso ainda. — Não... não. E a Alice não tem nada a ver com o fato de eu ter vindo aqui. — Sua voz tremia com nervosismo. — Mas por que isso?

— Você é o segundo hoje que mal cruza uma palavra que está falando comigo. — Disse ela se levantando com dificuldades. — Não está normal.

— Bom, eu vi você aqui sozinha e pensei em te dar um Oi. — Ele se levantou também, fazendo ela se sentir pequena. — Precisa de ajuda? — Se ofereceu ele indicando os degraus.

— Eu acho que não. — Seu tom era mais simpático agora. — Eu não tive tanta dificuldade para subir.

— Entendo. — Disse ele se virando para sair, a frieza dela o tinha congelado.

— Posso fazer uma pergunta? — Grace o pegou de surpresa o fazendo se virar confuso ao som de suas palavras.

'Como ela conseguia ser tão instável', uma hora quer conversar, outra não.

Ele consentiu com um balançar de cabeça, se aproximando outra vez, o que a fez ficar um tanto desconcertada.

— Você tem descendência Irlandesa?

A reação dele fez ela pensar que tinha feito a pergunta mais idiota que existia, e meio que se arrependeu por isso. Ele franziu o cenho, abrindo a boca lentamente como se fosse falar alguma coisa, algum segredo, mas ao invés disso rio baixinho, a deixando vermelha. Aquela pergunta o deixou completamente aleatório, pois tinha sido entoada de uma forma tão séria, profunda, que pensou ser qualquer outra coisa excerto aquilo. 'Ela parecia aqueles enigmas cheios de surpresas, do qual você nunca sabe o que virar a seguir'.

— Bom, minha mãe tem descendência escocesa. — Respondeu ele depois de um tempo processando aquela pergunta e todo o seu contexto.

— Ah, okay. — Expressou ela com um suspiro, parecendo decepcionada, o que o deixou baralhado. — É possível sonhar acordado? — Perguntou ela o fitando pela primeira vez dentro dos olhos.

Aquele olhar penetrante causou um arrepio, como se um choque sobre a pele desavisada, era como se ela pudesse ver sua essência libertina, os seus segredos mais ocultos com um único toque, arrancando-o de sua própria alma, conduzindo-o para outro universo, um mundo branco e silencioso, em passos estrondosos. Contudo, apesar de parecer assustador, era confortável está sobre sua essência.

— Sim —Respondeu o Chris, escondendo as mãos nos bolsos da calça jeans preta. — É possível sonhar acordado.

Grace esboçou um sorriso de agradecimento e despedida, e antes que ele pudesse se oferecer novamente para ajudar, saiu tentando parecer não precisar de ajuda.

Ao término da sua penúltima aula, foi para a biblioteca contragosto encontrar a Mei. Haviam desmarcado a ida ao shopping por razões óbvias. Conversaram sobre os vários motivos que levam uma pessoa a trabalhar feito uma máquina, alguns chegam a adoecer e até mesmo morrer de exaustão. Talvez a ambição, o desejo de sempre ter mais e mais os vicie, os consumam, levando-os cativos para o mundo do consumismo, tornando-os vazios com a necessidade gritante de preencher aquele espaço que bem material algum pode ocupar, sem ver de quem realmente é aquele lugar. Buscando comprar tempo, sem tempo... para viver o que é realmente importante, o que nos torna humanos e não máquinas, projetadas para executar apenas aquela ação programada, 'o que realmente é importante?' É estar com quem se ama, dar a sua essência, não um objeto facilmente esquecido pela ampulheta dos dias. Hoje! No mundo transformado em que habitamos, somos todos como 'o homem de lata', só que já possuindo um coração... pulsante, morrendo, petrificando em metal.






Já em casa, se permitiu relaxar. Arrancou o tênis, a calça e se jogou em cima da cama. A Sra. Marta ainda não tinga chegado e a casa se encontrava muito silenciosa, perturbador. Podia ouvir seus pensamentos inquietantes pulsando no fundo de sua mente, como um oceano sombrio, frio, ganhando forma ao início de uma tempestade noturna, monstros se aproximavam como espectros deslizando sobre as densas águas negras de lembranças, se aproximando... se aproximando com o seu chamado funesto. Para afastar tais pensamentos hediondos, ela colocou uma música, 'Bad Dreams', da Ruelle, como sempre fazia, para tocar e banir aquele silêncio gritante. Dado algum tempo, desceu, deu comida para os peixinhos, atacou a geladeira para poder aguentar até a hora do jantar, em seguida se sentou no chão enfrente as grandes janelas de vidro, assistindo a chegada da noite sem lua.

Às 19h35, a Sra. Marta chegou, iria ficar com ela. A Irina se encontrava em algum lugar de Nova Orleans. Estava tendo alguns problemas com um imóvel, o que deixou a filha bastante aflita, pois significava mais ausências.

Por muito mais que o dia tenha sido tranquilo, algo a incomodava, alguma coisa a corroía por dentro desesperadamente voraz. Tentou ao máximo que a sua companhia fosse agradável para a Sra. Marta, mas depois de um certo horário se despediu e se recolheu sem ao menos jantar, tinha perdido a fome e precisava se realinhar.

No banheiro, parou em frente ao espelho observando o seu reflexo apático, como queria gostar do que via, da pessoa à frente tão familiarmente sua, mas tudo parecia... caricato, grotesco demais para ser apreciado ou amado. Se perguntava o porquê do David e do Chris terem se aproximado ambos no mesmo dia, "o que irão armar?", se sentiu apreensiva só de imaginar alguma coisa horrível, "com certeza a Alice estava por trás", isso fez sua confusão interna piorar. Levou uma mão ao peito por sentir um aperto, algo se aproximava (figurativamente).

— O que tem de errado comigo? — Perguntou para o ser refletindo a sua frente. — Se eu não me amo, quem poderia amar?

Mas não houve resposta, ao invés disso... apenas uma figura distorcida de si mesma a fitando desolada dentro de seu próprio casulo. Um monstro a espreitava, das sombras sussurrava coisas, palavras hediondas e perturbadoras, "a liberdade estava a um passo de suas mãos". Mas o que seria essa liberdade? "Está a um passo de suas mãos". Pulsava no fundo de sua mente, como uma dor latente, um chamado nefasto com seus dedos pálidos e esqueléticos seduzindo-a numa convocação. Seus olhos repousaram em cima da tesoura ao lado de sua caixa de maquiagem pouco usada, parecia afiada, o metal brilhava. "Mate a dor e liberte-se". Um vento gélido percorreu por sua espinha, como nitrogênio petrificando, sua respiração ficou descompassada, lutava para respirar, seus músculos pareceram ter perdido a vida. "Verme medíocre, está sozinha", sussurrou o que parecia ser a voz da Alice, funéria, carregada de ódio.

Lágrimas começaram a lavar o seu rosto, distorcendo ainda mais seu reflexo. Pranteando pesarosamente, teve vontade de gritar por ajuda, de abrir um zíper e sair de seu próprio corpo, o lugar mais desagradável de se estar naquele momento. Fechou os olhos recordando o pesadelo, o sangue, o frio e o alívio. Ao abri-los novamente teve a impressão de que o ser do espelho sorria macabramente, fazendo-a se arrepiar, perdendo o ar. "Criatura ignóbil, Deus a abandonou..."

— Não é verdade!!! — Gritou as palavras com raiva, logo em seguida desabando no chão.

Romperam-se as comportas lagrimais, vertendo todo o seu espírito angustiado em lágrimas, acre e sem alma, se as sufocando em seu próprio grito chamado... só, sem som. A dor incompreensível, desnorteante a rasgava de dentro para fora, como dentes caninos dilacerando a carne de sua vítima agonizante, milhões de pequeninas agulhas pinicando a carne nua, exposta ao tempo, a fazia desejar pela liberdade, o descanso eterno dos mortos. Em prantos, começou a implorar a Deus por ajuda, para que aquelas vozes em seu subconsciente, quelas que lhe dizia coisas horríveis... parassem e a deixasse em paz, implorava por socorro mudo, a plenos pulmões. Deitada no carpete, chorou até não ter mais lágrimas, até secarem os leitos vertentes de água, mas depois uma calmaria desceu sobre seu espírito, como se estivesse repousando no colo do consolo, protegida do silêncio gritante de sua mente, adormeceu profundamente ali mesmo, como um bebê acalentado por sua mãe, sem temer as tempestuosidades do mundo cruel lá fora.

Ao despertar pela manhã, sentiu como se um caminhão tivesse passado por cima várias e várias vezes, o corpo todo doía, nenhuma parte se salvou. Dormir no chão a deixou toda quebrada, literalmente. Depois de um banho agradável, colocou um pouco de corretivo nas olheiras, pegou a bolsa e desceu para enfrentar mais um dia entre os carcereiros do Hitler.

A manhã estava límpida, o céu estava bonito, o ar levemente aquecido, era como se a primavera já tivesse iniciado, mas ainda faltavam algumas semanas, o que a fez se lembrar que o baile já estava à porta. Havia dois lados nisso, um estava nervoso ansiando por ir, contudo o outro, passava mal só de pensar, encarando todos aqueles rostos nada amigáveis e ninguém ainda a tinha convidado, seria chato ir sozinha. Talvez alguns dias antes inventasse uma desculpa.

Antes de sair para pegar o ônibus se lembrou do trabalho escolar que estava fazendo com a Mei. Sem mais delongas, ligou para a mãe, para realizar uma entrevista crua. Fez perguntas do tipo: "O que a motivava a realizar com tão zelo o trabalho? Como o trabalho subjugava a área familiar em alguns momentos? E os arrependimentos do tempo que o trabalho não compraria?". Todas essas perguntas foram respondidas com acidez, polidamente profissional, o que deixou a filha um tanto decepcionada, ela esperava respostas mais sinceras. Não fez questão de entrevistar o pai, segundo ela, ele seria mais polido ainda, sendo um perfeito advogado ou um empresário sério. Contudo, o fez com a Sra. Marta, e as respostas dela foram neutras e as vezes sentimentais, o que a fez julgá-la um pouco ingênua e sem muitas ambições. Depois que terminou, partiu para pegar o ônibus.

Quando estava descendo do veículo, foi surpreendida por uma menina alta de cabelos pretos com mexas azuis, que passou por ela empurrando-a. Grace se desequilibrou da muleta quase caindo de cara na calçada...

— Que inferno! Quanta educação, hem? — Pensou ela em voz alta tentando recuperar a postura.

Em resposta as suas palavras, a jovem levantou o braço esquerdo mostrando o dedo do meio enquanto caminhava em direção a escola. "Vadia punk", pensou retorcendo os lábios em desdém a ação da outra. Parada em frente a instituição, um mal pressentimento a envolveu, aquele seria um dia bem desafiador, os ventos do norte lhe traziam. Ao olhar para trás teve vontade de correr, fugir para bem longe dali, daquele lugar tão perturbador, 'como um local pode ser tão desagradável?'. Sua saliva se tornou amarga como absinto e seu estômago pareceu se retorcer como cobras agonizantes. Apesar de estar temerosa sobre o dia, tinha que entrar, enfrentar todo aquele caos, tinha a responsabilidade à frente, ainda mais depois da direção ter ligado. "Coragem Grace!", pensou se forçando a caminhar.

O corredor estava lotado, andar no meio de toda aquela gente foi desafiador, a qualquer momento achava que alguém chutaria sua muleta e a faria beijar o chão. Em seu armário, pegava o que era necessário para a aula e talvez a próxima, foi surpreendida pela Liu Mei que vinha ao seu encontro feito um coelhinho saltitando graciosamente, suas madeixas estavam onduladas e soltas, uma tiara fina cinza com pedrinhas prateadas as enfeitavam, hoje, estava trajando uma calça jeans, uma blusa Rose de bolinhas brancas e um cardigã creme. "Como ela consegue ser tão irritavelmente fofa?", Grace cumprimentou animadamente a colega que se aproximou com um sorriso de orelha a orelha. Apesar de estar com uma cara de felicidade, seus olhos pareciam preocupados.

— Depois da aula de matemática te encontro na biblioteca. — Disse Grace fechando o armário.

— Eu ainda não acredito que isso ficou para em cima da hora. — Disse a Mei num tom chateado e desanimado. — Eu tinha todo um planejamento. Tudo esquematizado.

— Não é nossa culpa. — Grace tentava tranquilizá-la. — O tempo de entrega que foi curto.

Liu Mei esboçou um sorriso nada convencional em resposta ao comentário da colega.

— Relaxe, Liu. — Disse Grace inclinando o rosto de forma descontraída a tratando pelo último nome, fazendo-a exprimir um sorriso sincero. — Ainda temos amanhã.

Ambas caminharam até a sala, a aula já estava se iniciando, o professor se encontrava explicando alguma coisa. Ao término daquela, se separaram para ambientes diferentes.

Adentrando a sala de biologia, foi saudada pelo olhar penetrante da Alice, o que a fez tremer na base, parando na entrada completamente congelada. Na lousa branca de quase três metros de comprimento, havia um desenho grotesco do que parecia ser uma rã ou algo do tipo, com inscrições e mais desenhos do que devia ser os órgãos internos. As bancadas de mármore estavam arrumadas, equipadas com instrumentos cirúrgicos, em cada uma delas havia toalhas brancas e finas cobrindo uma bandeja. A turma estava uma desordem, mesmo com o mestre presente. Ao observar tudo aquilo, Grace deu meia volta na porta para ir embora daquele circo de tortura, mas ao fazer isso deu de cara com uma figura masculina esguia e aparentemente forte com um perfume cítrico. Ela cambaleou para trás como efeito, porém logo recuperou o equilíbrio. Ergueu a cabeça um pouco para ver quem era. O rapaz sorrio um pouco corado, seus olhos verdes oliva sorriram também com aquele acontecimento.

— Para onde vai? — Perguntou o David observando o professor na sala fazendo algumas anotações no quadro (parecia confuso).

— Eu vou dar o fora desse show de horrores. — Disse ela forçando caminho entre ele.

— Ah, não vai mesmo. — Falou ele a surpreendendo e a pegando pelos ombros. — Vamos lá, vamos dar o nosso melhor e dissecar o que quer que seja lindamente.

— Lindamente?! Quem é que fala isso? — Pensou em voz alta.

— Eu falo isso. — Ele a conduzia até seus lugares, a fazendo caminhar atrapalhadamente, bem desengonçada.

A sala continuava uma bagunça até que o Sr. Philliam Hanks gritou pedindo ordem, aos poucos as vozes foram diminuindo e os jovens se acomodando em seus lugares. Curiosa, Grace removeu a toalha que cobria o ser que aparentava ainda estar vivo, mas sob efeito de algum anestésico. Ela sentiu pena do pobre animal, não merecia estar morrendo daquela forma... tão fútil. 'Por que a morte consegue ser tão desagradável até para meras criaturas?' Se pegou pensando no real propósito da vida, sua existência. Qual é o real sentido de estar vivo, se no final todos vão se encontrar inertes, deitados numa mesa parecida como aquela, tendo suas entranhas violadas como estudo policial em algum momento. "Somos criaturas simplórias, fadadas ao desconhecido, traçando planos que talvez nunca se realizem, ambiciosos em vão, gananciosos que apenas levarão o vazio escuro a sete palmos do chão. Batalhando contra demônios chamado elas mesmas. Tentando, buscando comprar um tempo que não há".

Grace foi arrebatada de seus pensamentos conflitantes quando a Alice passou por ela a ignorando, como se ela não existisse ali. Instintivamente, passou a mão pelos cabelos, só para garantir de que a outra não tinha jogado nada. Nunca se sabia quando poderia aprontar qualquer coisa. O Sr. Hanks ainda discursava sobre o que eles deveriam fazer, — como se eles já não tivessem feito aquilo antes. A classe iria estudar o sistema digestivo dos anfíbios, mas antes deveriam abatê-lo. Grace deixou para que o seu parceiro fizesse isso. Passaram-se algum tempo, porém infelizmente para ela era como se as horas tivessem congelado teimosamente. Aquela aula parecia durar uma eternidade. O David falava sobre uma coisa e outra, reclamava disso e daquilo e até dava ordens, o professor andava de um lado para o outro também dando ordens, recitando coisas mentalmente gravadas, e o odor asqueroso dos cadáveres sendo remexidos era enjoativamente repulsivo, fazia o estômago se retorcer dentro do corpo, como um útero se descamando.

Quando achou que não iria mais segurar o café da manhã na barriga, o sinal finalmente tocou e ela mais ficou calma. Tirou as luvas e o avental com uma certa pressa, já não aguentava mais estar com aquilo, deixou para que o David organizasse o resto. Enquanto estava arrumando suas coisas, a Alice se aproximou subitamente a pegando de surpresa, jogando (passando), algo em Grace, a deixando sem reação com aquele ato. As mãos da garota estavam cheias de vísceras.

— Filha da puta! — Disse o David erguendo as mãos na altura dos ombros, se afastando devagar e surpreso, nem ele esperava por aquilo.

— Eu acho que é isso que os vermes comem. — Disse ela rindo cínica, retirando as luvas de látex, saindo logo depois em completa tranquilidade.

Alguns de seus colegas começaram a rir, fazendo piadas bem desagradáveis. O professor já não se encontrava mais em sala, não havia ninguém a quem recorrer. Ela se virou para o David com olhos lacrimejados, ainda sem reação do que deveria fazer, como ele ainda estava de luvas, a ajudou a tirar as porcarias do cabelo e da roupa dela, em alguns momentos ela quase vomitou e ele tentou se manter forte. Gentilmente também a ajudou com a muleta e com a bolsa, acompanhando-a até a entrada do banheiro. Ele sabia que iria ser muito zoado por isso, contudo não se importou naquele momento.

Enquanto se limpava daquele mal, as lágrimas caíam descontroladamente voraz... um tsunami varrendo a praia, como tempestades tropicais, mutáveis deixando apenas seu rastro de destruição. Humilhada, chacotada, estava tão mal que de todas que passou, especialmente em público, essa foi a considerada tão terrível que até desejou morrer a ter que continuar daquela forma... desprezada. Tentou ao máximo se livrar da inhaca intragável, mas percebeu que só um banho e novas roupas resolveria isso. Se dirigiu então para o vestuário, muitos rostos se retorceram ao abrirem passagem para ela nos corredores, alguns tapavam o nariz, "quanta humilhação". Pegou a blusa do treino, tirou as velhas, enrolou num saco plástico que se encontrava no fundo de seu armário e se encaminhou para o box levando também as peças de roupas limpas, não queria mais imprevistos desagradáveis.

Ao receber o primeiro jato quente da água, sentiu como se todo o fardo de sua existência simplória estivesse indo ralo abaixo, suas tristezas, seus medos e dores. Mas se sentia só, sem um colo para deitar a cabeça, sem alguém para lhe dizer: "vai ficar tudo bem". A angústia a tomou de forma arrebatadora, levando-a aos prantos em completo desespero, impotente de sair de seu próprio corpo nefasto, desejou a tão instigada liberdade desconhecida, pintada em sangue. A água lavava suas lágrimas constantes, se misturando ao banhar daquela alma como se fossem um. Entre dores e sussurros foi subjugada por mais uma de suas crises insanas.

Após o término do longo banho, pois o vestuário já estava sendo ocupado, se arrumou com o que tinha, vestiu uma camiseta e a camisa do treino por cima, contudo a mesma calça, por não ter sido suja. Tinha perdido a aula de matemática, mas não se arrependia, precisava daquele momento para se recompor, e o relógio já corria para o horário de almoço. Atrasada, ela encontrou a Mei na biblioteca, a julgar pela cara estava impaciente e chateada com a falta de pontualidade da outra.

— O que aconteceu? — Perguntou a Mei se levantando.

— A Alice e suas proezas. — Respondeu em seu tom habitual, mas seus olhos continuavam vermelhos a denunciando.

— Ah, essa garota não tem limites(?). — Disse a colega em tom de pergunta, se sentando outra vez, bem desgostosa.

— Bom, parece que não. — Grace se acomodou de frente para a outra mascarando a sua infelicidade.

Depois que finalizaram o trabalho, se encaminhou para a quadra, preferiu evitar o refeitório e como não estava com fome, isso não foi nenhum problema, há quem coma quando está ansioso e há aqueles que não, como se a garganta estivesse machucada ou com algo atravessado, qualquer coisa a faria sentir dor. No horário da educação física não foi poupada de sua presença, foi designada como assistente. A Sra. Lesley Lewis era responsável pelo finswimming e o basquete feminino. Era uma mulher severa e nada amistosa em seus 45 anos de idade, com quase 1,83 de altura, empunhava o temor a turma, mas pelas costas era bastante criticada, na maioria das vezes pelo seu tamanho e por sua sexualidade. A Sra. Lewis, fez Grace andar de um lado a outro carregando, ora levando água, ora levando toalhas, qualquer coisa que suas colegas precisassem. Todo aquele esforço fez a jovem sentir que seu pé tinha inchado horrores, por parecer pesar toneladas. No penúltimo horário ela já se sentia morta, só a capa de alguma coisa que já foi. Queria muito ir para casa e desabar.

Já no ônibus, enquanto olhava pela janela observando as máquinas com sentimentos fluir como correntezas velozes para desaguar em algum lugar daquele mar de existência, suspirou profundamente em um grito de vitória. Mesmo com o dia exaustivo que teve, se sentia resiliente, ressignificando o sentido de estar vivo, por ter vencido mais um dia, por não ter desistido, por ter ficado do seu lado e segurado sua própria mão, por suas meras capacidades... ter tentado dar o seu melhor, mesmo que em certo momento por contragosto, se deu a fraquejar, a chorar e desejar coisas horríveis, mas não desistiu. Talvez esse seja o sentido da existência, batalhar todos os dias para trazer significado ao 'estar vivo'.

A caminhada até a sua casa foi outra batalha, estava realmente muito exausta. Queria parar e se deitar na calçada.

Parada em frente ao prédio, se permitiu se sentar na escada e observar o movimento. O porteiro se aproximou da porta de vidro a observando em silêncio, comprimiu os lábios finos, mas não a incomodou. Enquanto o céu, as nuvens corriam como um rio espelhado para um quase início de um final de tarde em tons pastéis, rosa e vermelho alaranjado iluminados por um dourado brilhante que era de tirar o fôlego, ela se deixou levar, se permitindo apenas sentir a brisa morna acariciar seus cabelos, entrelaçando-os com seus dedos gentis e seu aroma de folhas frescas. Ela ficou ali por um bom tempo, se deixando ficar leve, mas os monstros queriam se aproximar, então abaixou a cabeça, a amparando entre as mãos, até que uma voz forte e parcialmente rouca a tomou como um choque elétrico viajando por cada palmo de seu corpo lúcido.

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