Capítulo IV

Pequeninas e gélidas gotas de chuva caiam em forma de garoa, delicadas e serenas despencavam com o vento que se fazia constante, produzindo um frio glacial, era como milhões e milhões de cacos de vidros pontiagudos perfurando a carne viva. Tremia como um motor tentando se aquecer durante uma nevasca implacável, pálida como um corpo sem vida repousando no tempo. Um barulho envolvido pela ventania se aproximava indistinguível, latente.

— Grace...?! Grace...?!

Um chamado quimérico ao vento se sobressaía, mais alto que um tambor ressoando em um vale desértico, ecos entre despenhadeiros. Um clarão branco acinzentado tomou sua visão, seus olhos arderam em protesto ao brilho ofuscante, se arrependeu por tê-los aberto tão rápido, piscou várias vezes para recobrá-los. Outro som se produzia, um tilintar irritante de coisas trincando, eram seus dentes batendo uns nos outros. Levou a mão aos lábios percebendo que seus dedos tremiam palidamente.

— Grace?! Grace?!

A voz ressonava insistentemente mais alta. Se forçou a encarar o dono daquele chamado constante. Aos poucos sua visão foi se restaurando com uma certa dificuldade, vislumbrou então um semblante aflito e angustiado de um jeito estranho, a observava como se fosse uma criatura de outro mundo em algum tanque de exposição.

— Grace, você está bem? — A moça continuou chamando-a tocando em seu ombro esquerdo.

Levou a mão a cabeça notando uma dor esmagadora na lateral, passou os dedos sentindo seus cabelos úmidos assim como as roupas. O quintal não era coberto, com exceção do local onde ficavam um forno e uma churrasqueira, no lado esquerdo, no lado direito havia um pequeno jardim e em seguida o portão de acesso a rua, de madeira, um muro de tijolos vermelhos coberto por heras. Os sofás estavam forrados por lonas brancas, Grace se encontrava deitada em um deles. A moça de cabelos prateados e de olhar estranhamente inquietante falava alguma coisa, porém sua voz foi ofuscada por um zumbido agudo que preencheu seus ouvidos, a menina levou as mãos a cabeça se sentindo nauseada.

— O que aconteceu? — Perguntou de forma atordoada quase não ouvindo sua própria voz fria e distante.

— Eu que pergunto. Você está bem? — Emily falava de forma aflita e confusa.

A Evelyn e o Jack se encontravam na soleira encarando-a, um com desdém e o outro com curiosidade.

— Era só o que me faltava — disse ela entrando. — Ter um zumbir solto pela casa.

O Noah não entendendo a expressão de sua mãe, perguntou onde o morto-vivo se encontrava, se recurvou atrás da mesa ainda sentado olhando em volta.

— Como veio parar aqui fora? — Perguntou a moça alisando o ombro da jovem.

— Eu não sei. — Respondeu Grace pegando a toalha das mãos da Maria. — Obrigada.

— Desde quando é sonâmbula? — Perguntou o Jack, ainda de pijama e descalço, com muita cara de sono.

Ao comentário dele, ela lançou um olhar mortal em sua direção, ele fez uma careta entortando os lábios.

— Eu me levantei para tomar um pouco de água e... e fui pra cama, eu acho. — Disse a menina se voltando para a jovem ainda agachada ao seu lado.

Emily a ajudou a se levantar, contudo, quando apoiou o pé esquerdo no chão, foi estilhaçado por uma dor aguda e devastadora que irradiou pelo corpo como um choque. Gritou alto desabando no sofá. Seu tornozelo estava bem inchado e vermelho, latejava como se toda pressão sanguínea estivesse acumulada naquele local, em ponto de explodir. O Sr. Harris a ajudou, levando-a para o quarto. Tomou um analgésico e colocou uma compressa gelada na contusão, depois a Maria levou seu café da manhã, ovos, bacon, uma torrada e suco de maçã, mas é claro, ela recusou o suco, ou era o café puro ou o leite fermentado, geralmente pela manhã, o café para colocar a alma no corpo.

Não contou para a sua mãe o que tinha ocorrido, para que não ficasse preocupada, na verdade nem ela mesma sabia o que havia acontecido. Se lembrava vagamente de ter ido até a cozinha, feito um lanche, esbarrado com a cabeça na porta do armário e voltado para a cama, no entanto, também sabia que nesse intervalo tinha tido uma de suas crises de ansiedade, e que talvez o fato de não se lembrar de alguns detalhes é que isso estivesse mexendo com sua memória, aquilo nunca tinha acontecido antes. Achou que tinha subido, mas enquanto arfava descontroladamente em busca de ar, caminhou em direção ao quintal, deitou-se em um dos sofás e lá ficou, entre lágrimas e chuviscos, cercada por monstros noturnos... Abandonada pela luz do luar escondida nas densas nuvens.

Depois que se cansou de ficar deitada conversando e lendo, se forçou a sair da cama, se arrastando pelos corredores até a escadaria, indo para a cozinha. A Evelyn não se encontrava no escritório, estava ajudando a Maria com o almoço, ela gostava de fazer isso, era quando tinha as melhores ideias para seus livros. Grace chegou bem na hora que criticavam sua mãe, Evelyn emudeceu, porém, a empregada continuou falando quase que um tanto arrogante e sem respeito algum.

— Tem mais habilidade na língua do que nas mãos. — Se pronunciou Grace adentrando o cômodo mancando. Sua voz soou alta e forte, no entanto, não estava gritando. — Por isso a comida fica salgada demais, doce, quente demais... ou até mesmo crua, e todos os dias muita comida vai pra o lixo. 'Que desperdício'. — Disse ela dando ênfase na última frase.

Todos que se encontravam na cozinha pararam tudo o que estavam fazendo, se voltando para ela , foi uma surpresa para eles. A Maria parou no ar com uma panela e uma colher de pau nas mãos. A jovem já estava cansada de ouvir coisas, de se sentir impotente, de não conseguir fazer nada direito, aquele não estava sendo um dia bom, seu nível de paciência chegou no limite, queria defender quem não poderia se defender.

— Acha que ainda está aqui porque é boa, na verdade tenta se convencer disso. Mas sabe por que ainda continua aqui? — Ela se sentou fitando-a num olhar baixo e sombrio, prendendo-a de forma assustadora, com os braços cruzados sobre a mármore da bancada. — A Evelyn, prepara seus próprios alimentos, porque tem um gosto requintado, acha que somente ela conhece, e cozinhar ainda a traz lampejos de inspirações. Os meninos sempre deixam, preferindo comer besteiras, e o meu pai, quase não está em casa e quando está prefere pedir na rua. Isso mostra a quão boa é...

— Grace, já chega! — Evelyn bateu com uma das mãos sobre a bancada tentando acabar com aquela tensão. — Vá agora para o seu quar...

— Seu trabalho aqui é tão insignificante como suas críticas desprezíveis sobre negros. Hipócrita. — Grace ignorou sua madrasta que ainda tentava calá-la.

Seu tom era calmo e preciso o que fez a Maria se arrepiar, por dentro ela estava fervendo. A empregada se virou para a sua patroa muda, a mesma também nem sabia o que falar, depois olhou para a menina uma última vez antes de sair da cozinha. De certa forma parte daquilo ou quase tudo que a jovem tinha falado era verdade.

— Maria, por favor não leve a sério... Não é verdade isso. — Tentava a Evelyn vendo-a partir. — Está feliz pelo que fez?! — Se virou para Grace que se mantinha ainda calma, mas no interior tentava conter a raiva para não explodir. — Você despreza o trabalho dela porque não sabe valorizar o suor dos outros... — Ela falava de forma alterada, vez por outra batia uma das mãos na bancada.

Grace nada disse, apenas a fitava séria, um olhar profundo, o mesmo olhar que lançou sobre a Alice no dia do incidente com as roupas, um olhar frio, duro... Arrogante e obstinado.

— Se começasse a trabalhar saberia, valorizaria. Mas você, você é um fardo para a sua mãe, um infortúnio para o seu pai e, é a sua presença aqui desprezível e insignificante para os membros desta família e não o trabalho da Maria. Ela é uma trabalhadora, guerreira, tem uma família para cuidar, e você, o que você tem, Além de ser desagradável? Então ponha-se em seu lugar. — Dizia ela com raiva.

Ao terminar de se pronunciar, também se retirou da cozinha em passos largos. Grace continuava em seu lugar, cabisbaixa, evitava os olhares do Jack, Noah e da Emily, que se encontrava parada à porta, passou por ela indo em direção ao fogão, mexeu em algumas panelas e desligou outras. O ar ainda estava rarefeito, Grace tinha os batimentos acelerados, as pontas de seus dedos estavam frias, úmidos, teve a sensação de estar tremendo, se sentia um caos por dentro. Um peso para seus pais? Talvez fosse, talvez tudo que sua madrasta dissera fosse verdade, sua mente pesava, e uma voz sussurrava: "liberte-se". Seus olhos repousaram sobre uma faca em cima da bancada a sua frente perto do fogão, do outro lado (mas enfrente): "insignificante, desprezível, ninguém sentirá a sua falta". Cravando as unhas nos braços para não chorar, ela fechou os olhos por uns breves segundos.

— Você foi má. — Disse o Noah se sentando ao lado dela e tirando-a de sua própria mente. Apesar de sua altura, não teve problemas para se sentar na banqueta.

— Todos somos maus, só que alguns ainda não sabem disso. — Sua voz ainda continuava forte e tranquila, não transmitia sua confusão interna.

Grace se levantou e foi para a sala, não tinha mais forças para subir as escadas. A Evelyn, se trancou no escritório se vitimizando para seu marido em ligação, dizendo 'que a filha dele havia passado dos limites, tinha desrespeitado ela e a Maria, que a pobre da senhora saiu chorando com as palavras maldosas da garota', ela estava indignada com a falta de respeito e que ele precisava puni-la dizia 'que o choque tinha sido tanto que mexeu com a sua saúde e que se sentia péssima'. Seu marido, no entanto, nada disse sobre o assunto, ouviu tudo e disse que estava chegando, estaria indo naquele mesmo dia e que tudo se resolveria, isso a fez respirar fundo, ficando mais aliviada. Chateada com Grace e com o marido, ela tomou sua medicação e se deitou, adormecendo.


Às 14h15 o Edward chegou procurando pela filha, (ela era quem ele menos via). Grace se encontrava na sala de estar com seus fones nas alturas, seu pé repousava na cabeceira do sofá, estava bem largadona de costas para o portal na entrada do corredor, quando um homem alto e vistoso entrou na sala. Ele carregava um sorriso largo, seus olhos castanhos escuros e cansados brilhavam lindamente, seus cabelos escuros penteados para trás despencavam vigorosamente em sua testa, escondendo suas rugas de expressões, profundas olheiras escuras adornavam abaixo de seus olhos, barba por fazer e um semblante abatido, parecia tão exausto, porém continuava belo, um porte forte e sempre, sempre elegante, gostava de se manter em dia, fisicamente, Grace se parecia bastante com ele, principalmente os olhos levemente alongados (misteriosos), o que deixava sua esposa com mais ciúmes, apesar de não os achar parecidos.

Ele caminhou lentamente, admirando sua princesa que naquele momento mais parecia uma camponesa desleixada, tirou cuidadosamente os fones dela assustando-a o que a fez dar socos no ar, Edward caiu na gargalhada com a cena.

— Pai! — Exclamou agarrando o pai e dando-lhe um braço.

— Ainda de pijama? — Disse ele se separando dela e a olhando. — Já são quase três da tarde.

— Sabe que eu gosto de ficar como mendiga em casa. — Falou ela se recompondo.

— Sei, literalmente. Só não saia na rua assim. — Ele apontou para a rua.

— Não prometo nada. — Ela dizia com um sorriso de orelha a orelha, por seu pai ter voltado mais cedo para casa.

— O que aconteceu com o seu tornozelo? — Ele puxou o pé dela fazendo-a grunhir de dor. Percebendo o curativo malfeito que fizeram. — A Evelyn machucou você? — Perguntou ele de semblante bem sério.

— Quê?!... Não. — Grace se sentiu perturbada e logo uma confusão veio à mente. — Ela não fez nada. A gente discutiu, quer dizer, ela brigou comigo, mas não fez nada disso. — Disse ela apontando para o pé. — Nem eu sei o que aconteceu.

— Pai!! — Disse o Noah, se atirando no colo do pai, o Jack fez o mesmo reclamando seu lugar.

Ele abraçou ambos dando um beijo em suas testas. O Jack logo quis saber dos presentes que ele os prometeu, estava ansioso para mexer nas malas, mas seu pai os advertiu dizendo que mais tarde daria os pacotes. Ele então chamou a Emily, mandando que levasse suas coisas para o escritório e trancasse a porta, e assim ela o fez. Em seguida perguntou pela esposa, teve a resposta pelo Jack, de que ela estava deitada por não se sentir muito bem. Ele falava olhando para a irmã, insinuando de que ela era a responsável pelo mal-estar da mãe. Edward subiu com o Noah em seus calcanhares, no aposento ele se jogou em cima da mãe, acordando-a num susto. Seu pai o repreendeu gentilmente e o colocou para fora do quarto, fechou a porta e se deitou com a esposa que fez outra vez muitas queixas.

Já haviam se passado algumas horas, o tempo estava um pouco abafado, não tinha nada de interessante na TV, as redes sociais estavam chatas, estava tudo tão enfadonho, então Grace decidiu comer para ajudar a quebrar aquele clima parado. Foi para a cozinha apoiada na moleta de seu avô, que tinha esquecido no último natal.

Emily arrumava a louça enquanto a Maria cuidava da refeição da noite. Grace evitou o olhar das duas, se sentou em um dos bancos, cruzou os dedos sobre a bancada e depois de uns quinze minutos olhou para a Maria, que a encarou desconfiada, em seguida se virou para a Emily que as olhou confusa, essa troca de olhares rendeu por mais cinco minutos, o que foi bem desagradável. Foi Grace, quem finalmente quebrou o silêncio, dissipando a atmosfera tensa que havia feito.

— Me passe por favor Emily, meu copo, o café, o gelo, o creme de baunilha, a água e o chantilly. — Grace falava cada item pausadamente. — O... seja lá o que esteja fazendo, tá com o cheiro muito bom. — Disse por fim em tom de escárnio sem olhar para a cozinheira.

Maria tentou por uns breves momentos ignorar a menina, mas sentia que tinha algo entalado na garganta e que precisava falar.

— Não precisa pedir desculpas a mim pelo ocorrido de mais cedo...

— Eu não vou. — falou Grace enquanto preparava seu café gelado despreocupadamente, sem levantar as vistas.

— Você deve pedir perdão a Deus, por deixar que espíritos impuros guiem sua boca, use sua língua para construir palavras perversas, algo que deveria ser para instrumento de louvor! Tornando uma criatura doce em alguém desagradável, instrumento de discórdia! — Falava ela se alterando.

Grace olhou para ela sem entender, sua careta de escárnio logo foi expressa abertamente causando um certo desconforto na Emily, que já previa mais bate boca.

— Você tem que ir mais na igreja...

"Cala a boca Mulher", pensou a jovem levando uma das mãos a fonte, massageando como se estivesse sentindo alguma dor.

— Tem que ir para se livrar desses espíritos malignos que agora tão chamando de ansiedade, depressão. Na minha época isso não existia, minha mãe chamava isso frescura, falta do que fazer. E é isso que o Diabo quer, mentes vazias, desocupadas, está atrás dos jovens desatentos, dormindo no ponto, achando que tudo é fácil. Isso é falta de Deus! — Ela falava em tom autoritário e um pouco alterado. — Se quiser posso te colocar no círculo de orações que eu frequento. Sei que vai ser de grande ajuda.

A jovem queria muito calar a mulher, mas não tinha nenhum direito ou poder para mandá-la se calar, sem falar na falta de respeito que seria, a situação de mais cedo era diferente da que se encontrava agora. Tentou apenas se concentrar em seu lanche e esquecer o resto. Emily deu a ela uns biscoitinhos que começou a comer com gosto.

— Tem todos os domingos e terças-feiras. — Ela continuava falando. — O pastor é um homem excelente, caridoso e os membros são todos...

— Maria!! — Exclamou Grace enfadada, sem paciência. — Se a senhora fizer algum comentário racista, juro pelo seu deus que vou vomitar em cima da senhora.

— Você precisa ser exorcizada! — Comentou a mulher por fim com olhos arregalados.

Emily, olhou para ela e rio baixinho se lembrando do filme "o exorcista". Grace, no entanto, estava séria, sua paciência tinha ido ralo abaixo. Quando a cozinheira fez menção de falar novamente alguma coisa, o Jack apareceu chamando a irmã, dizendo que seu pai a esperava em seu escritório, a menina fez uma careta resmungando, dizia para si mesma que... subir de bengala não era uma tarefa fácil. A jovem moça se ofereceu para ajudá-la, levando seu copo de café enquanto subiam. Grace pediu que levasse até seu quarto alguns biscoitinhos de canela e mel, que a moça fazia com muito capricho, do qual se tornou fã.

— Demorou. — Resmungou o Jack.

— Tente subir de bengala sem tocar o pé direito no chão. — Disse enquanto se sentava num pequeno sofá de costas para a estante de livros e em frente a outra com uma TV no centro, a mesa de seu pai ficava frente à entrada, ao lado do sofá.

Edward pegou os pacotes e entregou aos três, os dois meninos estavam eufóricos, abriram com rapidez, foram dois pacotes para cada. Jack, ganhou um jogo novo e uma camisa personalizada do seu time de Hockey no gelo, Seu irmão ao abrir não se conteve de alegria, recebeu uma pista de corrida completa e um boneco de colecionador do Star Wars, apesar de só ter cinco anos de idade era responsável, Grace foi a última a abrir, e o fez lentamente, fazendo o sorriso do seu pai murchar. O primeiro era um coturno de verniz preto de salto alto, ela sorriu reacendendo o de seu pai que naquela altura parecia bem frustrado...

— Espero que eu tenha acertado o tamanho. — Disse ele cruzando os braços.

Ela olhou a sola dizendo que o tinha sim. Ele esboçou um meio sorriso ao ouvir aquilo. Jack, abraçou o pai agradecendo e saindo contente com seus presentes. Grace pegou o segundo embrulho e o apalpou, seu pai sorrio empolgado ao passo que ela revelava o objeto.

— Um panda?! — Exclamou ela num tom debochado.

— É. Não gostou? Caralho! — Disse ele se jogando na cadeira frustrado.

— Pai! Olha o Noah. — Dizia ela se referindo ao xingamento.

— Como se eu já não estivesse acostumado. — Disse o Noah revirando os olhos.

— Era para eu ter pegado o rosa mesmo.

Grace levantou uma das sobrancelhas em resposta ao comentário dele. O Noah não tirava os olhos da pelúcia.

— Princesas gostam de rosa. — Ele continuou praguejando.

— Que estereótipo. — Ela ironizou.

— Mas não é verdade? — Ele passou a mão pelos cabelos, jogando-os para trás.

— Pai! — Falou Grace dando um tapa na própria testa. — Não existem pandas rosa.

— Se não quiser pode me dar. — Se pronunciou o Noah.

— Não, aqui vai para a minha coleção. — Ela se levantou. — Obrigada pai, são bonitos, eu gostei.

Quando já estava se retirando da sala, Edward a chamou de volta e dispensando o menino que ainda estava radiante com os seus presentes. Mesmo estando com o tornozelo latejando de dor, se manteve de pé, esperando para ouvir o que ele tinha a dizer. Edward se encontrava inquieto, e essa inquietude foi notório a ela, que rapidamente deduziu o que ele queria falar.

— Grace... — Começou ele sério. — Eu sempre venho conversando com você ao longo desses anos, pedindo sua compreensão, passando a mão na sua cabeça em alguns momentos, tentando ser... paciente, mas você não facilita. A Evelyn vem se esforçando ao máximo a anos, para te agradar, no entanto... você não reconhece, não facilita pra ela. — Ele falava de forma mansa, parecia nervoso, tomava cuidado com as palavras. — E hoje! Hoje você passou de todos os limites, desrespeitou e ofendeu a Maria, que não tem nada a ver com os seus problemas! — Sua voz soava um pouco mais alta agora. — Você pode ter raiva de mim, da sua mãe, mas não pode descontar isso em quem não tem nada a ver.

Ele parou por uns momentos, se levantou e deu a volta na mesa, parou em frente a filha e a fitou em silêncio, era tão miúda em comparação ao seu tamanho. Mas seu olhar era arrogante e orgulhoso, isso o desagradou muito, sabia também que por outro lado, era obstinada como ele mesmo.

— Quero que vá até a Maria e peça desculpas por suas palavras impensadas. — Seu tom era autoritário. — E depois para a Evelyn.

— Eu não vou pedir desculpas pra elas. — Retrucou Grace arrogantemente. — Não me arrependo do que falei. Cada palavra foi muito bem pensada. — Estava firme, contraia os lábios.

— Grace, eu não vou brigar com você, nem me estressar com isso. — Ele jogou os cabelos para trás com um suspiro. — Eu estou mandando você ir se desculpar. A sua falta de respeito foi intolerável.

— E eu já disse que não vou! — Ela alterou a voz.

Ele ia dizer alguma coisa, mas ela não deixou.

— Todos os dias aqui, eu tenho que aguentar ouvir elas falando mal da minha mãe, de mim... e ninguém faz nada, não há respeito. O senhor não diz nada, sempre vem pra mim, só se importa com os sentimentos delas, se vão se magoar, se ofender, mas e a mim?! Quanto a mim?! — Sua voz já saia arrastada pelo choro interno, o peito retorcia angustiado, espinhos pareciam furá-lo, não gostava de falar daquela forma com ele. — O senhor não liga para o que eu sinto..., se vai me machucar ou não, não sabe o inferno que eu passo... — Sua voz saia embargada pelas lágrimas. — Eu também tenho sentimentos, sabia?! Não sou de pedra, não sou um objeto. Não tenho... Não tenho... — Não aguentava mais falar, doía, estava preso na garganta.

As lágrimas não pediram a sua permissão para escapar, simplesmente vieram com a dor que a envolveu. Grace virou o rosto para que ele não a visse chorar, apertava as mãos, ofegava em busca de ar, mas o mesmo parecia denso demais para ser inalado, respirar estava difícil, e a cada subir e descer de seu busto, era como se tivesse uma rocha comprimindo-o, estava tão pesado. Edward se sentiu arrasado, quis abraçá-la e confortá-la, mas sentiu que se o fizesse ela fugiria.

— Grace... — Ele tentou.

— Me deixa em paz. — Ela o interrompeu ainda em lágrimas. — Eu estou cansada... — dizia mais para se mesma agora, num tom exausto. — Eu só quero paz. Quero dormir, tá pesado. — Gesticulava como quem tirava um peso de cima de si, seus ombros caíram ao fazer isso.

— Princesa...

Ele tentou abraçá-la sem compreender muito bem suas últimas palavras, porém, ela o rejeitou e saiu o mais rápido que conseguiu, indo para o seu quarto.

Edward, olhou para os presentes que tinha escolhido com alegria, no entanto, agora seu coração estava partido, vê-la daquele jeito o causou profunda tristeza. Talvez ela estivesse certa... Talvez desses mais ouvidos, atenção, para sua esposa do que para a filha adolescente e seus problemas, ambas exigiam papéis diferentes, porém sua esposa era clinicamente doente, precisava de mais atenção, talvez por isso sentisse a filha mais distante. Como se aproximar novamente? Como apaziguar a casa? Ele também se sentia cansado.

— Deus, onde estou errando?

Depois de passar uns bons minutos olhando para o teto, chamou a Emily e pediu para que levasse outro café para a filha e os pacotes dela. Em seguida pegou a chave do carro e saiu.

Grace se trancou no quarto, não queria saber de ninguém. Chorava de raiva enquanto os pensamentos hediondos passavam por sua cabeça. Realmente estava cansada, sua existência parecia um fardo, era como se nada que fizesse fosse correto, estava sempre errada e tudo era motivos de críticas e reclamações. Não se sentia desejada em lugar algum, sua mãe era a única, até então, que sentia... que poderia deitar a cabeça e receber consolo sem ser tachada de fresca ou mimada: "Deus, por que é tão difícil continuar existindo...?"

A empregada bateu na porta anunciando que deixaria o café e os biscoitinhos ao lado da entrada. Meia hora depois ela pegou os lanches. Não desceria até a hora do jantar, ou talvez nem desceria, tinha em mente ler até dormir.


Já se achava adormecida quando alguém bateu à porta chamando para descer, pois o jantar estava sendo servido. Ela gritou que estava sem fome, mas a Emily conseguiu convencê-la a descer, como sempre fazia.

Todos se encontravam em volta da mesa luxuosa, Grace era a única atrasada e de pijama. O Sr. e a Sra. Peterson estavam nas cabeceiras. Grace se sentou ao lado do Jack, perto do seu pai e de frente para o Noah (e a entrada para a sala). Não saudou ninguém, apenas se sentou com o semblante bem fechado, com cara de poucos amigos. A Evelyn se encontrava bem arrumada, como para um jantar formal, um vestido de cetim cinza de alças, uma pequenina pedra brilhante enfeitava seu delicado pescoço, seu marido pelo contrário, vestia uma calça de alfaiataria preta e um suéter branco de colarinho alto, dobrado na altura dos cotovelos, a barba já estava feita, mas os cabelos por pentear, ou já os tinha, porém o costume de jogá-lo para trás pode ter bagunçado. Ele estava elegante, do seu jeito.

O Sr. Peterson, pediu que a Maria servisse o primeiro prato, visto que todos já se encontravam à mesa. Grace olhou para a sua madrasta em seguida desviou, penteou os cabelos com os dedos, depois os prendeu no topo da cabeça, num rabo de cavalo vs coque. Evelyn levou a mão a testa impaciente.

— Grace... — disse ela tentando conter a voz e sua impaciência. — Não faça isso à mesa, pode cair cabelos na refeição.

A jovem deu de ombros, como quem estava nem aí. Quando as empregadas terminaram de servir os pratos e estavam saindo, o patrão deteve uma delas.

— Maria, quantas vezes tenho que pedir isso?... Você sabe que eu gosto quando apresentam o prato. — Dizia ele educadamente. — Por favor, nos apresente à refeição.

— Sim, Sr. Peterson. — Disse a mulher envergonhada. — Me desculpe, como sempre.

Grace a olhou erguendo uma das sobrancelhas, seu pai fingiu não ver o comportamento da filha. Jack observava a comida com muito desgosto, não gostava de comida italiana.

— De entrada temos Bruschetta...

Evelyn olhou para a refeição depois para a empregada, Edward pigarreou em seguida desejou bom apetite a todos. Ele sempre lançava um olhar interrogativo para a filha, como se quisesse perguntar se ela estava bem.

Todos se encontravam mudos, beliscando a comida. O segundo prato foi servido e apresentado.

— Antepasto de berinjela. Para os adultos um vinho tinto... do...

— Que nem sabe o nome. — Disse Grace entre os dentes, interrompendo e deixando ela muda. — Obrigada. — Esboçou um sorriso.

— Grace?! — Seu pai a advertiu.

A menina deu a primeira garfada e se arrepiando, desaprovou o gosto agre do vinagre, olhou de soslaio percebendo que ela não era a única a achar o prato embebido com o líquido.

— Irina, me pediu para você ficar esse final de semana lá, com ela.

Edward quebrou o silêncio que até então os preenchiam, com um assunto supostamente desagradável. Grace o olhou surpresa, tinha se acostumado com a calmaria que aquele jantar havia se transformado. Evelyn olhou da garota para o marido com um semblante bem fechado, seus lábios rosados formou um biquinho fofo quando ela os apertou impaciente, cheia de ciúmes, pegou o copo com suco, pois não podia beber álcool, deu um gole acompanhado de um suspiro, estava desconfortável em ouvir o nome da mulher.

— Eu sei. — disse a menina, rolando a comida de um lado para o outro. — Eu que pedi.

Ao som daquelas palavras, ele deixou o garfo, respirou fundo e olhou para a filha, sua face fechou-se dura. Grace, no entanto, permanecia entretida com a comida.

— Grace, você é inteligente, então eu não preciso está explicando isso. — Iniciou ele abandonando a sua refeição. Ela balançava a cabeça em sinal positivo sem olhar. — Você sabe que todos os finais de semana e feriados, obrigatoriamente tem que vir pra cá...

— Eu sei. — Interrompeu ela. — Eu pedi para ficar lá, porque o senhor não estaria aqui, ao contrário da minha mãe. — Sua voz era branda, mas dura, não tinha medo de falar.

— Independente de eu estar aqui ou não, você tem que vir, sabe disso.

O clima já estava ficando tenso. Os outros tentaram apenas focar em suas comidas, mas estava complicado.

— Não vejo o porquê disso. — Disse a jovem olhando-o nos olhos, em seguida se virando para a sua madrasta que engoliu em seco. — Segundo a sua esposa, minha presença aqui é desagradável e insignificante para os membros 'desta família'. — Ela cuspiu a última palavra quase que soletrando.

A Evelyn, ficou vermelha, olhava para a garota e para o marido... Ele parecia furioso.

— Grace!! — Ele gritou.

— O que?! São as palavras de sua esposa. — Disse ela inclinando a cabeça para o lado.

— Sua mentirosa ingrata!! — Bradou a Evelyn com raiva, batendo com uma das mãos na mesa, quase que derramando a comida. — Está vendo o que eu tenho que aguentar?!

— Já chega! — Gritou novamente o Edward, só que mais alto.

As empregadas que traziam o terceiro prato, pararam no hall do corredor ao ouvirem uma voz forte se elevar na sala.

— Que caralho! Eu já estou de saco cheio dessas brigas, dessas birras! Reclamações de um lado, reclamações de outro. Até quando vão ficar nessa infantilidade, nesse pé de guerra? — Ele não estava gritando, mas sua voz era forte e rouca, parecia trovejar pelo ambiente. — Por que não podemos ficar em paz? Porra, somos uma família...

— Não, eles são sua família. — Disse Grace o cortando com sua voz baixa, calma, porém como a dele, forte, se levantando e saindo.

— Grace?!! — Chamou seu pai de forma autoritária. — Volte aqui! Ainda não terminamos. Caralho!! — Ele socou a mesa esquecendo que era de vidro, fazendo todos em volta saltitar dos assentos, os utensílios vibraram e o vidro quase veio abaixo.

A menina passou pelas empregadas ainda paradas no mesmo lugar, uma delas sussurrava dizendo, que ela sempre causava problemas, que era como uma erva daninha, um demônio da discórdia, a outra nada disse, apenas observou a garota partir.

O silêncio formado foi tão desagradável, que todos olhavam para baixo e as serviçais voltaram com a terceira refeição para a cozinha. Edward, olhou de sua esposa para seus filhos e saiu, pegou seu casaco, as chaves e partiu, sem dizer nada. Estava muito desgostoso do que tinha acontecido.

A jovem se dirigiu para o quintal, se acomodando em um dos sofás, não se sentia triste nem feliz, apenas que não pertencia a lugar algum, um vazio a tomou, isso era até assustador... o vazio, uma sala branca sem som. "Ela é um problema. Parece uma erva daninha..., suga todas as energias boas". Pensava nas palavras da Maria.

— Talvez ela esteja certa — pensou consigo mesma. — Talvez eu não devesse estar aqui ou... em lugar nenhum.

Teve os pensamentos interrompidos por um barulho estridente vindo do bolso da sua calça moletom. No terceiro toque o atendeu. Sua mãe a saudou com um 'boa noite' animado, o que a fez sorrir. Irina indagou se ela já tinha jantado (essa preocupação era porque tinha notado que ela estava emagrecendo muito), a filha contou do fiasco que foi, do que deveria ser um jantar com 'comida Italiana', mas a privou dos detalhes, ou seja, da discussão, contou do ocorrido com o tornozelo e de como o mesmo continuava inchado depois de tantas bolsas de gelo, igualmente, ocultando os detalhes para que ela não ficasse demasiadamente preocupada, a Sra. Marta não estava presente, pois se estivesse iria receitar um monte de receitinhas caseiras. Depois falaram mais sobre a idosa, e as férias de verão. Quase uma hora depois, ambas se despediram. Isso foi bom, se sentiu mais leve, deveras, sua mãe era a única que ainda podia se deitar no colo e se sentir consolada, mas até quando?

O céu noturno ameaçava chuva, um vento a fez tilintar, abraçou seu corpo na esperança de aquecê-lo. Maria olhou para fora, pela porta de vidro, mas fez de conta que não tinha ninguém lá, apagou as luzes da cozinha, abandonando-a no escuro, deixando o céu mais visível. Grace sabia que ela estava chateada e sabia que tinha sido desrespeitosa, no entanto, a mulher a muito agia com impertinência, parecia não ter limites, quanto a sua madrasta... bem, era uma insegura, cega pelo ciúme, talvez, também sentisse falta da sua verdadeira casa.

Se deitou sobre a lona no sofá, admirando as nuvens pesadas que se formavam, e se imaginou caindo como as gotas d'água formadas na imensidão azul. Como será ter asas? Fechou os olhos, se viu (imaginou) num lugar alto, ali não havia nuvens, o céu estava limpo, abrigando uma lua nova linda. O ar estava puro e a brisa que passava por seus cabelos a deixava leve. Se encontrava na ponta de um precipício, o vento se tornara mais forte, a envolvia, fluindo por seus poros, era como se realmente pudesse sair do chão e voar! "Liberte-se...." Um eco preencheu seus ouvidos, porém, era mais como um pensamento, algo bem distante, como uma onda nascendo no meio de um lago espelhando, viajando até a superfície.

As estralas pareciam mais perto, se encontrava mais perto daquele universo. A voz foi ouvida por uma segunda vez, um pouco mais alto, contudo, um tanto diferente, era como um sussurro de outro mundo, fria e nada reconfortante, ecoava como um fantasma, pequenas gotas caindo numa superfície de águas plana, negras, gélidas. Olhou em volta em busca do dono daquele chamado sepulcral. O tempo começou a esfriar, um cheiro metálico invadiu suas narinas, deixando-a enjoada. Na busca percebeu o abismo escuro abaixo de seus pés, um calafrio percorreu por sua espinha, um mal pressentimento. Não havia nenhum vestígio se quer de luz, não chegava, a sensação... era de que tinha alguém olhando.

A lua tornou-se nebulosa e o ar condensou-se, ficando cada vez mais frio, estava doloroso respirar, o vapor saia de sua boca, cinza. Na escuridão, dois pontos brilharam como faróis... olhos penetrantes. Sentiu uma angústia profunda e quis chorar. "Liberte-se" sussurrou o ser. — Estou livre... — sua voz saiu como um sopro, um último suspiro.

O cheiro de sangue estava mais forte, desviou os olhos para seus braços estendidos, seus pulsos vazavam um líquido vermelho pulsante contrastando com sua pele pálida. Toda dor, angústia, medo que sentia deu lugar a uma paz seguida de um vazio, um quarto branco ao som de um tambor silencioso. Olhou outra vez para as profundezas, das sombras um par de mãos pálidas e esqueléticas se estenderam, agarrando seus pulsos ensanguentados, frias como a morte, puxando-a de encontro ao abismo.

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