Episódio Zero

Fantasmas sempre foram reais para crianças solitárias.

Não que um invalidasse a existência do outro, afinal, a solidão e a assombração possuem mais semelhanças que diferenças entre si. Eram quase complementares, apesar de habitarem em planos distintos. Existia algo de extraordinário entre os dois. Havia uma mitologia por trás das almas inquietas e das crianças quietas, e essas lendas urbanas eram disseminadas pelos pais, já adultos. Para a primeira, sua origem vinha de laços de família nunca desfeitos, de restos de crime e ódio derramados junto ao sangue de vítimas inocentes, ou até mesmo, de forças obscuras buscando vingança por alguma injustiça divina. Para a segunda, sua origem era mais complicada. Para os olhos de uma mãe que trabalhava quilômetros de sua casa, para receber migalhas e desrespeito de desconhecidos, era a última coisa que poderia imaginar. A sua filha, tão esperta desde muito jovem, não consegue criar laços reais com outras crianças da sua idade? Impossível, improvável. Tão impossível e improvável quanto a existência de fantasmas.

A maior semelhança entre fantasmas e crianças solitárias era que ambos não eram vistos como integrantes da sociedade.

Kaya Novak foi uma criança solitária.

De certa forma, Kaya não se via como uma criança solitária, mas sempre se viu como um fantasma. Depois dos dois ou três primeiros anos escolares, sua mãe teve que abrir mão de acompanhá-la até sua escola na viagem de uma hora completa de ônibus para suprir as atividades em seu novo emprego. Por ter herdado os genes da família de seu pai, ou ao menos era isso o que sua mãe sempre lhe disse, sua estatura nunca lhe permitiu sentar nas carteiras mais próximas à lousa, sempre ficando no fundo de sua sala de aula. Também nunca teve muitas oportunidades de ser o centro das atenções, e sabia que, mesmo se tivesse, ela não a agarraria com unhas e dentes. Não fazia questão. Já não bastava os olhares desconfiados das meninas quanto ao seu silêncio e ausência nas atividades femininas da classe, ou os olhares intencionados dos meninos, curiosos pela garota mais alta, de cabelos longos e olhos castanhos, e no que ela tanto pensava e pensava e pensava durante as aulas.

Os horários de intervalo entre as aulas não era muito diferente. Sempre estava acompanhada de seu maior escudeiro, um caderno pequeno de folhas não pautadas, e da sua maior arma, um lápis preto de ponta fina. A presença das outras pessoas a incomodava, e se sentia observada durante os primeiros anos estudantis. Com o passar do tempo, ela deixou de ser a novidade do colégio e se tornou ninguém. Sua presença era tão percebida quanto os vasos de flores dos jardins. Estagnados. Decorativos. Planos, sem forma e sem vida. Esses foram os melhores anos de sua vida. Apenas ela, o seu caderno, o seu lápis preto, e mais ninguém.

Kaya Novak nunca teve medo de fantasmas.

Kaya Novak se identificava com os fantasmas.

Kaya Novak se via nos fantasmas.

E os fantasmas a receberam de braços abertos em seu mundo.

Os primeiros desenhos eram das formas que ela aprendia nas aulas de geometria básica. Círculos, triângulos e quadrados. Depois, tentou mesclar as formas com outras formas. Círculos dentro de quadrados, losangos formados por diferentes triângulos. Não demorou muito para que tentasse desenhar a árvore do pátio do colégio. Não era nada semelhante com a realidade, mas o desenho da árvore em duas dimensões logo ganhou uma terceira, com um tronco formado por um cilindro e sombreados que davam a ilusão da vida às folhas no topo. Com o passar dos anos, mais e mais linhas formavam os detalhes que mais aproximavam aqueles rabiscos de carbono na representação da árvore que ela conheceu anos atrás. Sua mãe sempre demonstrou orgulho de suas obras. O quintal da casa estava no caderno. A pequena flor do ponto de ônibus estava no caderno. As folhas da árvore do pátio estavam no caderno. Sua mãe tinha certeza que sua filha seria uma artista.

Em seu caderno não havia pessoas, entretanto. Kaya nunca sequer desenhou um sorriso de dois pontos e uma curva dentro de um círculo. Nunca teve interesse em desenhar os colegas de classe, ou sua mãe, ou a si mesma. Já era o seu quarto caderno de folhas não pautadas. Já havia perdido a numeração do lápis preto de ponta fina. Nenhuma pessoa desenhada. Apenas folhas, flores, árvores e símbolos.

Símbolos.

As retas que desenhava formavam símbolos. Se fosse perguntada, o que nunca foi, não conseguiria explicar o que eram aqueles símbolos, mas a complexidade que eles tinham era quase absurda. Eram círculos com desenhos e desenhos menores dentro deles. Linhas retas com curvas e traços finos que se tornavam grosseiros. A maioria era simétrico. Outros cresciam livremente do meio à ponta de uma das folhas vazias, como se quisessem expressar alguma vontade. Contar algum segredo.

Na adolescência, aqueles símbolos se tornaram não apenas objeto de curiosidade, como de estudo. Se tornou uma compulsão buscar símbolos de diversas culturas, de diversas religiões, de diversas partes do mundo. Em sua lógica, se letras eram símbolos, aqueles símbolos poderiam também significar letras. Se letras formavam uma linguagem, aqueles símbolos poderiam formar alguma comunicação que ela não entendia ainda, mas que passaria mais de duas décadas e meia estudando.

Algo que Kaya Novak tinha em comum dos fantasmas era o sobrenatural. O além do normal. Aquilo que foge da vida pacata de estudos em seu colégio, que foge da vida cansativa do trabalho de sua mãe, que foge do ordinário da vida das pessoas que nunca desenhou em seu caderno de folhas sem pautas. Aquilo que as pessoas não entendiam.

Ela se sentiu destinada a entender.

Foi nessa idade que ela começou a se interessar no oculto, e em desvendar o que tanto se escondia. Estudou ocultismo, paganismo, bruxaria, assim como estudou cristianismo, hinduísmo e todas as mitologias que um dia foram religiões. Nunca viu muita diferença entre elas, além de seus valores pragmáticos. Ela sabia que existia algo além daquilo que se explica cientificamente. Ela sabia que existia forças além do que se era conhecido. E ela sabia que não se pode destruir energia, apenas transformá-la. Restava a ela provar que existia alguma energia além daquelas que foram ensinadas nas aulas de física de seu ensino médio.

O seu primeiro contato com uma força sobrenatural foi em uma viagem da universidade de linguagens e comunicações. Ela estava só em seu quarto alugado e, apesar do gerente da hospedagem explicar que não existia nenhum som vindo dos canos de ventilação, seus ouvidos discordavam. Ela conseguia sentir a presença de uma força além da sua. Desligou as luzes, acendeu velas, abriu um caderno de folhas sem pauta e desenhou símbolos nas páginas expostas às sombras que o fogo fazia. Símbolos que ela estava tão acostumada a desenhar quanto as letras do próprio nome. K-A-Y-A. N-O-V-A-K.

Quando fechou os olhos, sentiu o ar do quarto se tornar gelado. Sentiu a iluminação das velas em suas pálpebras diminuir. Sentiu a presença de algo, logo à frente de seu rosto, encarando-a com o que imaginava ser olhos, ou o que quer que representasse. Depois, sentiu essa presença descer lentamente em direção ao caderno, e sentiu o calor da sala se esvair por completo quando todas as velas apagaram em um mesmo movimento. Quando finalmente abriu os olhos, apenas ela e o caderno estavam visíveis à luz do luar que vinha pela janela. Já não conseguia ouvir mais nada na tubulação.

Aquele foi o primeiro caso de sua carreira.

"Supernatural Supernovak" é o nome do programa que relata suas experiências e analisa os casos sobrenaturais que caça em suas viagens. Começou com ocorrências em sua cidade, mas logo passou para casos em outras províncias de seu país. Os ouvintes de seu podcast sugerem casos de assombrações, vultos, forças sobrenaturais, possessão por demônios inomináveis. Os cenários não eram muito criativos. Eram casas construídas no meio do nada, ou conventos gigantes e escuros, ou mansões deixadas de herança com uma maldição de família, ou parques de diversão e seus túneis de horrores. O horário era sempre no período da noite, de preferência meia-noite ou três horas da manhã. Típico, clássico, repetitivo, cliché. Quando eram donos das propriedades, recebia um bom pagamento. Quando eram lugares abandonados, os episódios do podcast faziam mais sucesso, então acabava recebendo bem também. Seu sucesso veio, não somente por solucionar esses casos e documentar suas visitas nos episódios, mas por atender as sugestões da sua legião crescente de fãs.

Apesar da subfama, nunca deixou de trabalhar sozinha. Seus círculos sociais nunca tiveram uma grande mudança desde a sua infância. Sempre permaneceu apenas acompanhada de seu caderno escudeiro e de seus fantasmas, com quem se sentia mais confortável do que com pessoas de carne e osso, que pensam e julgam. Ela se considerava a antítese da turma do Scooby-Doo, com sua gangue de uma pessoa só, com seu carro vermelho de apenas dois lugares, e com seus fantasmas e monstros de verdade. O pensamento a fazia rir quando estava na estrada de um caso para outro.

Dirigir seu carro entre uma anomalia e outra era uma das suas partes favoritas daquele seu novo trabalho. Seu cabelo longo mexendo quando a janela estava aberta, as paisagens coloridas de diferentes tons de verde, amarelo e vermelho se movimentando rapidamente de sua linha de visão, e a companhia das estrelas nas noites longas e silenciosas eram momentos pontuais que sempre marcavam sua memória. Aquele contato com a natureza a fazia se sentir viva, em meio a tantos mortos no seu cotidiano. As noites sempre eram calmas. Quando não conseguia encontrar uma hospedagem para descansar sua cabeça algumas horas em um travesseiro quente, passava a noite dentro de seu carro em alguma área mais silenciosa das rodovias vazias. Às vezes, conseguia desenhar em seu caderno algumas das constelações que enfeitavam o véu da noite acima de si.

O carro diminui sua velocidade até finalmente parar no meio-fio entre a calçada e a estrada. Ainda protegida pelas janelas, Kaya Novak tenta observar a fachada da casa que seria sua mais nova ocorrência. Apesar da escuridão da noite estrelada e da neblina fraca que inundava a cidade, conseguia ver perfeitamente o portão alto de ferro que cercava o perímetro da casa. A descrição da fronte batia com o relato da sugestão do ouvinte de seu podcast.

Ela fecha os olhos e inspira profundamente antes de abri-los de novo. Ao seu lado, seu caderno de anotações, seu lápis preto e um gravador de voz.

Havia chegado.

Havia trabalho a ser feito.

* * *

"...Muito obrigada a todos os ouvintes que acompanharam o desenvolvimento do Caso do Fazendeiro Movediço! Destrinchar esse caso tem sido maravilhoso com a presença de vocês. Fazia um bom tempo que não tínhamos uma ocorrência de um espírito de nível III por aqui, não é? Que aquela pobre alma possa finalmente descansar em paz."

Kaya observa o relógio no topo da parede à sua esquerda. Já faziam algumas horas que estava sentada naquela mesa de seu estúdio. As paredes cobertas por uma grossa camada de espuma acústica não permitiam que ela visse a noite estrelada que acompanhava a gravação daquele episódio do podcast. Sempre pensou na possibilidade de abrir alguma janela, talvez até uma do tipo basculante, somente para ver quais estrelas brilhavam para ela naqueles momentos. Toma um gole do copo de água ao seu lado.

"Como solicitado por um ouvinte no site oficial do podcast, estarei de viagem para entender um caso que acompanha o crescimento de uma pequena cidade a oeste do país essa semana. Aparentemente, no final desse mês está prevista a demolição de uma casa abandonada. Não posso perder a oportunidade de trazer o que é esse caso antes de ser tarde demais para vocês. Me desejem sorte!"

Ela fecha o caderno sem pautas que estava posicionado bem à sua frente durante todo o tempo de gravação daquele episódio.

"Espero você no próximo episódio de Supernatural Supernovak!"

Ela finalmente aperta uma tecla que desliga o seu microfone da transmissão. Consegue ouvir a música que toca no final de cada episódio mesmo quando retirou os fones de seus ouvidos.

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