Episódio Um

A porta do carro vermelho abre lentamente e logo sente a névoa acinzentada se entrelaçar com os seus membros ao sair de seu veículo. A rua era escura, sem iluminação pública além das estrelas no céu. O asfalto estava desgastado, com as laterais que se conectam ao calçamento em pedaços. Conseguia sentir alguns desses pedaços nas solas de seus sapatos ao se movimentar em direção aos portões de ferro, altos e escuros, que complementam o visual de toda a grade que protegia o perímetro daquele terreno.

Kaya se aproxima lentamente da cerca de metal. Conseguia ver pontos desgastados nos cilindros dos portões, seja pela pintura em ruínas pela exposição ao sol, seja pela ferrugem causada pela exposição à chuva. O metal oxidado mostrava sua deterioração por toda a parte inferior da grade, possivelmente por causa de inundações que ocorriam nas temporadas de inverno. Uma boa parte do esqueleto de ferro já se encontrava poroso pela infestação cor de cobre. Conseguia ver restos daquele material brilhar contra a luz da lua e das estrelas em direção ao interior do terreno cercado, com uma cor que combinava um vermelho com um laranja.

Tenta seguir o caminho de restos brilhantes da ferrugem com os olhos, mas a vegetação que crescia naquela entrada logo toma para si o seu campo de visão. A grama era alta a ponto de engolir qualquer caminho de pedras que poderiam existir na entrada. Conseguia ver também galhos e gravetos caídos da árvore que se expressava livremente com um monte de folhas, algumas caídas e outras mortas, logo abaixo de si, recobrindo qualquer raiz visível. Diferentes ervas-daninhas infestavam todo o jardim da entrada da casa, todas lutando por um espaço rico em água e sol durante o dia, e livre de pestes durante a noite.

Quanto mais tentou seguir as formas que as plantas davam ao jardim, mais foi recebida pela escuridão. A luz da lua era interceptada pelo telhado da casa no centro daquele terreno, com sua sombra se tornando parte da paisagem. Leva então seus olhos castanhos até o telhado daquela casa de dois andares, onde o brilho lunar derramava a escuridão pelas paredes da frente da casa. Tinham um brilho alaranjado, mesmo com o contraste da luz azul da noite. Era bonito.

Ela olhou na direção das janelas, e a escuridão do interior da casa olhou na sua direção pela primeira vez. Por um momento, sente um arrepio passar por seu pescoço e subir em direção à têmporas. Sentiu ali uma escuridão diferente das sombras do jardim infestado, diferente da cerca enferrujada e diferente da neblina da noite. Ela se sentiu tão observada quanto a casa.

Ela se sentiu vista.

Exposta.

Kaya desvia o olhar das janelas, aceitando sua derrota na competição de quem olhava mais fixamente contra o outro. A sua respiração falha, mas ela não percebe.

Leva ambas as mãos em direção às grades dos portões e é recebida com o toque áspero de diferentes camadas de tinta e ferrugem. Segura as barras de metal e sua força apenas balança os portões, conseguindo apenas um som agudo como resposta à sua tentativa de entrar. Cadeados e correntes, tão enferrujados quanto às barras de metal da cerca, impediam que as grades se separassem uma da outra. Tenta mais uma vez, mas em vão. Aparentemente, mesmo com o tempo de exposição à erosão, os diferentes cadeados se mostravam determinados em seu trabalho.

Aquela era a primeira linha de segurança da casa.

A defesa.

Kaya observa o emaranhado de correntes e cadeados e analisa uma solução. Aquela não era a primeira casa em que forçava as grades para entrar, também não seria a última. Ela caminha até o porta-malas de seu carro vermelho de duas portas e saca um pé de cabra revestido em uma tinta preta. Aquela ferramenta de aço forjado sempre lhe acompanhava em suas missões, e sempre se mostrou útil em ocorrências de casas abandonadas. Ela passa a mão em seu rosto para colocar uma mecha de seu cabelo longo atrás da orelha antes de segurar aquela barra de metal e caminhar até o portão de entrada mais uma vez.

Ela insere a barra por entre os arcos das correntes de tal forma que os dentes do instrumento se prendessem contra os anéis desgastados de metal. Ela usa a ponta livre para aplicar uma força na alavanca formada, mas não obtém sucesso na primeira tentativa. Nem a corrente, nem o portão se movem. Tenta de novo, e de novo, e de novo. Agora com mais força, agora com mais ângulo. O som do cintilar das correntes cresce progressivamente com cada tentativa.

Ela desiste com alguns minutos naquela dança, deixando o pé de cabra cair sobre o calçamento em um som oco e opaco. Olha para os lados apenas para detectar a presença de alguém que pudesse ter sido atraído com os estrondos de metal em metal.

Tinha que pensar em outra solução. Aquele portão não demonstrava estar interessado em sua força. Seus olhos descem pelos metros de grade que cercava a casa e logo é seguido pelos seus pés. Caminha pelo perímetro escuro com seus passos lentos e seus olhos atentos às imperfeições das grades. Não demora muito para que encontre uma sequência de barras desgastadas em posições e alturas similares, com uma certa distância da calçada de cimento e granito. O desgaste resultante da passagem das raízes da árvore que viu momentos atrás e da fragilidade causada pela ferrugem. Ela se ajoelha em frente ao metal enferrujado e usa suas mãos para aplicar força contra as barras. Consegue um melhor resultado ao tentar dobrar o metal pelas marcas mais perceptíveis de ferrugem, onde estão mais enfraquecidas pela deterioração. Para um melhor resultado em menor tempo, substitui a força mecânica de suas mãos para choques mecânicos de seus pés. Chuta barra por barra até que as três tenham suas pontas de cor de bronze apontadas para o interior do jardim. Agora tinha uma pequena abertura na cerca de metal, mas grande o suficiente para um corpo adulto rastejar por entre as barras.

Ela não perde tempo com análises fúteis sobre grama, concreto, ferrugem, terra, sua blusa branca e sua calça jeans limpa. Deita seu corpo na calçada cinza e consegue ver a neblina da mesma cor perto de seus olhos. Usa de movimentos ritmados de ombros e cotovelos para passar pela pequena abertura que fez, iniciando cuidadosamente pela sua cabeça, então seus ombros, seus braços, seu tórax, sua cintura, suas coxas, suas panturrilhas e finalmente, seus pés. Levanta lentamente após estar com seu corpo completamente presente no interior do terreno escuro. Passa a mão pelas mechas dos longos fios de seu cabelo mais uma vez. Passa a mão pelas suas roupas também.

Seus olhos se deparam com mais vegetação e escuridão. As sombras do telhado e da árvore pareciam ainda maiores agora que se encontrava à mercê de sua proteção e se encontrava logo abaixo de suas asas de folhas. Por um momento, se sentiu menor, mas não apenas em relação ao seu tamanho.

Na busca de mais sombras, seus olhos vão em direção ao chão que pisava. A grama foi deixada sem cuidado por tempo suficiente para deixar as marcas de suas pegadas para trás, bem como as marcas de sua entrada por baixo da cerca enferrujada, como prova de que sua visita tinha sido notada. Talvez como prova que sua invasão teria consequências.

A segunda linha de segurança.

O rastreamento.

Kaya olha ao redor de si, dessa vez. Montes de terra e folhas recobrem a grama alta. Ela dá passos lentos no jardim, seus olhos continuam a explorar a escuridão iluminada apenas pelas constelações suspensas na abóbada celeste. Os sapatos amarelos sendo abraçados e engolidos pela vegetação e pela névoa.

Caminha até a área que estava inicialmente, apenas alguns metros de distância da abertura que fez nas grades de metal enferrujado. Conseguia ver o seu carro vermelho estacionado na escuridão do meio-fio, as correntes e cadeados presos aos portões altos, e o pé de cabra de aço ainda deitado na calçada. Se tivesse conseguido abrir os portões, aquele era o lugar onde deveria estar, então, a partir daquele momento, tudo seria progresso.

Caminha em direção à porta de entrada da casa. A porta de madeira estava tão desgastada quanto toda a área da varanda de entrada. As vigas de madeira que formavam as pequenas escadas que levavam à área de entrada já não tinham sustentação e estavam caídas à anos no gramado descontrolado, talvez décadas. Também já não havia planta alguma nos dois vasos de cerâmica sem cor que decoravam a direita e a esquerda da porta, cheios de uma terra cinzenta e cobertos de mofo. Outras vigas em madeira deterioradas formavam a fundação e um pequeno cercado daquela varanda. Nenhuma tinta conseguiu sobreviver à passagem do tempo.

Ela observa a porta da entrada de novo.

A porta se mantinha imponente, mesmo com sua madeira desgastada, suas bordas afofadas pela exposição à umidade. Na altura de seu rosto, um vitral esnobe em formato circular esbanjava sua resistência às forças da natureza, tendo sua beleza escondida por uma grade fina, também circular, que dividia as cores do vidro colorido atrás de si em dezenas de linhas que formavam triângulos de mesma área. Não conseguia reconhecer nenhuma forma pela proteção do metal. As poucas cores visíveis contra a sombra da grade não faziam uma ilustração lógica. Não se surpreende quando não consegue enxergar nada pelas cores protegidas pelo metal. Também não se surpreende quando tenta girar a maçaneta e a porta estava trancada.

Tinha duas opções: a primeira, buscar o pé de cabra e resolver o problema da forma mais óbvia. A segunda, encontrar uma segunda entrada. Era apenas uma casa como qualquer outra. Quando uma porta se fecha, uma janela se abre. Lembra de sua mãe e dos pequenos ditados que cresceu ouvindo. Kaya salta com ambos os pés da varanda de entrada de volta à terra firme. Caminha novamente por entre a escuridão e a névoa até encontrar uma janela na parede lateral da casa.

A janela estava quebrada. Era decorada com ripas de madeira escura que formavam uma moldura. Seu volume se diferenciava do restante da parede, criando certo destaque. Já não possuía mais vidros que separassem o lado externo e o lado interno, o que permitiria a entrada de invasores como poeira, animais pequenos, luzes da escuridão da noite, névoa fina e ela. Apenas o tecido velho, do que um dia poderia ter sido cortinas, estava livre e dançavam contra o pouco vento que circulava.

Ela se aproxima com passos lentos. A escuridão do interior da casa olha para ela mais uma vez, agora de mais perto. Sentia que, dessa vez, estava tendo seus detalhes analisados, como as rugas de seu rosto fino, ou os fios desgrenhados de seu cabelo. Sentia a escuridão quase em uma dimensão diferente. Diferente da altura, da largura e do comprimento. Sentia que era de uma dimensão diferente do tempo. Dessa vez, ela não conseguia retribuir o olhar, mesmo com os olhos castanhos fixados no interior da construção. Era quase uma hipnose, não conseguia desviar o olhar. A escuridão a chamava, a chamava e a chamava.

Kaya se aproxima até tocar nas bordas de madeira escura da janela aberta. Aquela seria a sua entrada. A janela de oportunidades, a janela que a porta fechada abriu. Ela apoia um dos sapatos amarelos no peitoril de mármore e usa o outro pé no solo para ganhar impulso. Consegue lançar seu corpo para cima com destreza, alcançando o segundo pé na placa de mármore e tendo ambas as mãos nas bordas além da janela, seus dedos tocando o lado externo da casa. Sentia como se o brilho de seu olhar curioso buscasse as respostas ainda naquela abertura na parede, quase forte o suficiente para iluminar por si só o lado interno da casa.

E a escuridão a esperava.

Quando move sua mão apenas alguns centímetros em direção ao lado externo, é recebida com um pedaço esquecido de vidro, que corta a carne de sua pele com certa profundidade. É nesse momento que finalmente se livra do transe da escuridão e percebe o vermelho quente e viscoso do ferimento formado no centro da palma de sua mão esquerda. Ela grita com o susto seguido de dor. Muita dor. Não demora para que o líquido escarlate desça a caminho de seu pulso e forme uma pequena poça de pingos que caíam no batente da janela e nas plantas próximas à parede.

Seus pés desistem da exploração e pulam de volta à terra, a sola de seus sapatos pisam a poça de sangue que havia sido formada.

A terceira linha de segurança.

A violência.

Com sua mão intacta sobrepondo a palma da mão ferida para estancar o sangramento, ela leva seus olhos para a escuridão que a esperava pacientemente mais uma vez. Conseguia sentir uma energia diferente vindo do interior da casa. Não era uma energia maligna, nem algo semelhante, tinha certeza disso. Com sua experiência com o sobrenatural, ela poderia facilmente identificar e diferenciar a presença de uma força maligna. Aquela era uma energia diferente no sentido de ser... diferente. Uma energia que não deveria sentir vindo de uma casa, pelo menos. A energia que vinha de décadas de escuridão guardada dentro daquelas paredes era quase orgânica.

Quase animal.

Quase humana.

Sentia como se aquela energia fosse a própria respiração da casa.

Um bafo formado de mofo, de madeira em decomposição, de escuridão dos cantos dos cômodos e de ódio. Sentia ódio. Muito ódio. Mas aquele não era um ódio qualquer. Já inspecionou cenas de crime antes e aquele ódio não vinha de uma vítima que gritava por injustiça. Era, mais uma vez... diferente. Era único, nunca havia sentido um ódio que vinha das paredes, do teto, dos móveis, dos espelhos ou da porta de entrada.

Nunca havia sentido um ódio que não fosse fundamentalmente humano.

Aquele era um mau-hálito formado para afastar a presença da humanidade.

Uma quarta linha de defesa.

O desconhecido.

Kaya dá passos lentos na direção contrária à janela. Os olhos, ainda em choque, alternavam o foco entre a mão ensanguentada e todas as escuridões que a cercavam. Quando consegue reunir todas as linhas de seus pensamentos, já estava se arrastando pela pequena entrada que formou para o lado externo da cerca de metal.

Quando se levanta da altura da neblina, caminha em direção ao seu carro vermelho de dois lugares. Evita usar a mão ferida para abrir a porta lateral e pegar um pequeno e simples kit de primeiros socorros no porta-luvas do veículo. Apenas uma garrafa de soro fisiológico com 200mL, um rolo de esparadrapo e dois pacotes de gazes preenchem por completo a caixa branca. Era mais do que ela precisava. Limpa o ferimento com o soro até esvaziar a garrafa, a mistura avermelhada de sangue e soro sendo derramada no asfalto despedaçado, e usa algumas unidades de gaze para estancar alguma hemorragia futura. Enrola a fita adesiva por toda a mão, envolvendo o tecido de linhas da gaze e torce para que aquele seu conhecimento básico fosse o suficiente para evitar alguma infecção.

Ela volta o seu olhar para a casa iluminada pelo luar azul e sente uma pontada de dor no curativo de sua mão, tendo que ranger seus dentes e semicerrar os olhos para suportar. Mesmo assim, ela olha para a casa mais uma vez.

E dessa vez sorri para o mais novo caso que solucionaria.

Não se daria por vencida.

Antes de entrar pela porta do motorista, ela guarda o pé de cabra no porta-malas do carro e conclui que deveria ter optado pela opção um e ter arrombado a porta principal. Promete para si mesma não duvidar de seus instintos no futuro.

* * *

"A primeira impressão é a que fica, ao menos é isso o que nos dizem desde pequenos. Eu gostaria de iniciar o nosso episódio de hoje com uma reflexão sobre esse ditado que a minha mãe me disse quando eu tinha seis anos de idade. Eu acredito que a primeira impressão seja, sim, de um valor inestimável, mas a que fica é a última".

Kaya Novak estava sentada no banco de motorista de seu carro. O gravador de voz se encontrava confortavelmente no painel, o mais próximo possível de si, dada a posição do volante logo à sua frente. O ferimento da sua palma estava coberto por um curativo feito tão às pressas quanto àquela gravação do episódio de seu podcast Supernatural Supernovak.

"Sempre damos muita importância à aparência. Queremos estar em nosso melhor estilo, em nossa maior gala, em momentos de apresentação ao público, e chamamos comumente essa ação de 'estar apresentável'. Apresentável! Com o sentido de que, se não estivermos nessas condições máximas, não devemos nos apresentar. É algo que é passado de pai para filho, no meu caso, de mãe para filha, mas que é recorrente da própria humanidade. Um ensinamento social. E levamos esses ensinamentos para todas as esferas de nossas vidas".

Os olhos de Kaya Novak estavam fixados na casa do outro lado dos portões de ferro. Dessa vez, estava disposta a não desviar o olhar primeiro.

"No trabalho, estamos dispostos a mostrar nossa melhor aparência ainda na entrevista, pois sabemos que estar apresentável soma pontos importantes na decisão de quem fica com a vaga disputada. Na escola, temos o maior cuidado de não sujar nossas mãos, seja brincando com tintas guache, seja escrevendo redações com caneta pela primeira vez, e sabemos desde cedo que rasurar diminui nossa nota nas avaliações de texto. No amor, queremos que o primeiro encontro do nosso par romântico seja o melhor que ele já teve, e que o restaurante que vamos jantar possui um padrão de vestimenta que o cliente deve ser, no mínimo, mais apresentável que os garçons".

Ela pega o caderno do banco do passageiro e o deixa aberto por cima de suas pernas. Busca o lápis preto de ponta fina com as unhas na parte mais inferior do banco. Sempre estava lá.

"Nas nossas casas essa regra também se aplica, mas de uma forma elevada. Queremos que o chão que pisamos esteja tão polido quanto os móveis rústicos e as decorações inúteis espalhadas pelas cômodas. Decoramos os jardins com pedras e cascalhos, mesmo que apenas para as fezes do nosso animal de estimação. Queremos sempre a melhor tinta para pintar as paredes que recebem sol e chuva. Queremos proteção para os telhados, que sua funcionalidade só é mostrada quando não está visível à humanidade. Nosso lar diz muito sobre quem somos, e pode dar uma primeira impressão melhor do que as roupas que fingimos estar confortáveis ou os empregos que fingimos gostar. Em muitos casos, a primeira impressão pode ser a última".

Com o lápis em mão e o caderno de folhas sem pautas aberto em seu colo, escreve "Caso número 79", escreve o sinal de dois pontos e risca uma linha para um futuro título daquele episódio.

"Qual a primeira impressão que uma casa abandonada pode dar? Qual a impressão que você tem ao ver uma cerca sem pintura, portões de ferro oxidados e um jardim deixado ao léu? Qual a impressão que você tem ao ver janelas quebradas, escadas arruinadas e erosão climática?"

Ela olha mais uma vez para a casa. De certa forma, sempre desviaria o olhar de certa forma, então desiste daquele desafio.

"A única opção de uma casa abandonada é dar uma última impressão".

Usa a mão livre para desligar o gravador de voz.

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