Episódio Dois
Kaya Novak leva sua mão para a parte traseira do banco do motorista de seu carro vermelho de dois lugares e agarra a alça de uma maleta de couro. Além do caderno de folhas sem pauta, que era o seu braço direito em toda ocorrência, aquele deveria ser o segundo na linha de sucessão. Duas fechaduras douradas na parte superior brilhavam contra as estrelas e contra o seu olhar. Quando abertas, revelam um interior tão obscuro quanto seu conteúdo. Equipamentos que usa comumente em incidências paranormais e místicas. Alguns tipos de comunicadores, um contabilizador de infravermelho, um detector de presença sobrenatural, uma lanterna de bolso, um controle de radioatividade e uma pequena sacola escura de abertura de botão e formato retangular. Também tinha uma pasta escura com alguns documentos, um saco de sal grosso, algumas velas e um isqueiro.
Ela leva seus olhos castanhos para a figura escura e onipotente na casa embebida em sombras e em névoa. No céu, a lua brilhava contra o seu rosto determinado.
Finalmente sai do carro vermelho de duas portas, munida de seu caderno preto de folhas sem pauta e sua maleta de couro e fechaduras douradas. Dá passos lentos até os portões acorrentados e passa a maleta por entre as frestas entre uma barra de metal e outra, fazendo com que pouse lentamente na grama alta. Com sua caixa de equipamentos dentro do território hostil do terreno da casa, dá passos acelerados até a abertura próxima às raízes da árvore, com as pontas desgastadas e enferrujadas das barras apontadas para a construção escura, como uma ameaça.
Talvez fosse.
Rasteja sua entrada pela abertura pela terceira vez naquela noite. Sente os músculos dos braços, antebraços e costas tensionando ao adentrar a área cheia de grama, folhas, terra e ódio. Quando se levanta, pega o caderno preto que deixou no chão para facilitar sua passagem e caminha até alcançar a maleta confortavelmente acomodada nos filamentos de planta que dominavam o chão. Usa a mão intacta e saudável para segurar a alça da maleta de couro, deixando o caderno preto para a mão enrolada por um curativo improvisado. Olha para a frente e se depara com a casa olhando para ela de volta, com seu corpo completamente submerso na sombra formada por aquela arquitetura alta.
Seus sapatos amarelos se aventuram pelo verde das plantas e o marrom da terra até se encontrarem com o vermelho do seu sangue. Kaya coloca tanto a maleta de couro quanto o caderno preto na parte interna da casa pela janela aberta. Mais uma vez, sobe com ambos os pés pelo peitoril de mármore e ambas as mãos na moldura de madeira escura. O sentimento de nostalgia percorre seu sangue até queimar o ferimento na palma de sua mão esquerda. Não deixa o arrepio em sua coluna vertebral a impedir de entrar com um único salto no interior da casa. Seus joelhos absorvem o impacto e seus olhos tentam desesperadamente se acostumar com a escuridão densa guardada por aquelas paredes.
Seus olhos falham miseravelmente, apesar de tentarem o seu melhor.
Abre a maleta de couro pelas duas fechaduras douradas e bate duas vezes em seu quadril quando segura a pequena lanterna de bolso. Apesar de seu tamanho e modelo compacto, sua luz não poderia ser subestimada. Cria um círculo de luz na parede mais próxima, revelando a cor e forma de não somente o que estava dentro da circunferência iluminada, como de todo o ambiente do cômodo ao seu redor. A nova claridade revela o que mais parecia ser a cozinha da casa. As paredes ainda carregavam alguns armários de madeira. Alguns armários de madeira ainda eram carregados pelas paredes, enquanto outros encontraram a sua paz eterna como restos destruídos pela inigualável força da gravidade e pelo inevitável efeito do tempo. Outros móveis de funções semelhantes se mostraram ter destinos parecidos.
O que chama a sua atenção é uma geladeira impregnada de mofo, poeira e todos os demais ingredientes que uma circulação de ar inadequada, umidade excessiva e décadas sem supervisão trazem consigo. A tinta branca já descascava para dar espaço para a ferrugem mostrar a sua soberania sobre o metal da porta única. Quando aberta, revelava dois recipientes de material irreconhecível, decorado com letras inomináveis e cheios de uma substância tão podre e esquecida que nem cheiro exalava mais. O que um dia poderia ter sido ingredientes de uma receita de família, ou um lanche da madrugada, se tornou o banquete de centenas, ou mesmo milhares, de gerações de bactérias e fungos.
Com a lanterna em mãos, inspeciona a pia feita da mesma cerâmica do peitoril da janela. Tinha dois compartimentos. O direito, com um grande receptáculo e semelhante a toda e qualquer pia fabricada décadas depois dessa, e o esquerdo, com uma rampa formada por ondas, possivelmente utilizada em lavagem de roupas por atrito e sabão. Inspeciona também os armários abaixo dos compartimentos das pias siamesas, que não apresentavam nenhum resquício de instrumentos de cozinha ou de higiene, mas era repleta de vida de insetos se inspecionada com atenção.
A luz da pequena lanterna tenta refletir pelos azulejos empoeirados que estavam dispostos acima da pia e seguiam em conjunto pelas paredes até alcançar o corredor escuro na saída da cozinha. Kaya guarda o caderno preto dentro da maleta antes de seguir em direção ao corredor escuro e estreito.
A luz que ela carrega na palma de sua mão acompanha o movimento lento e fixo de seus olhos castanhos. O círculo iluminado e branco manifestava paredes quase completamente vazias, com passagens quase completamente abertas. Sombras de umidade mostravam a memória que aquela engenharia guardava. Portas apareciam e desapareciam de sua linha visão concentrada. O frio da noite se fazia presente ao seu redor, como se a tivesse acompanhado quando entrou pela janela destruída, se fazendo explícito ao arrepiar os finos fios de cabelo em sua nuca.
Segue seus passos lentos até chegar em um espaço mais aberto, o que tudo indicava ser a sala de estar. As paredes distantes e sombrias pareciam se afastar do sofá exposto no centro direito do ambiente. Todo o local repetia os padrões vistos na cozinha, no corredor, no jardim e na entrada. O resultado de anos de descuido e abandono. Na lateral, conseguia ver o outro lado daquela porta principal trancada. As cores do vitral, agora livres da grade circular, de certa forma brilhavam no contato direto com a luz de sua lanterna.
Kaya faz um breve movimento de assentimento com sua cabeça. A escuridão se mostrava, de certa forma, preocupada com sua própria imagem, mesmo que obscura e invisível a todos os olhos até aquele momento. Vaidosa.
Ela pousa a lanterna em uma cômoda próxima de si. Quando se era apontada a luz para o teto, era criada uma iluminação igualmente dividida em todo o cômodo, então ela conseguiria enxergar, mesmo que minimamente. Pega dois dispositivos dentro da maleta e a deixa ao lado de seus pés. O primeiro era o contabilizador de infravermelho. Era uma tela pequena e fina, com uma câmera circular do lado oposto ao seu que, quando ativada, mostrava o ambiente ao seu redor por linhas vermelhas. Invisível ao olho nu, feixes de luz dançavam no ambiente enquanto escaneavam e revelavam a silhueta dos móveis imóveis da casa. O segundo era o detector de presença sobrenatural. Este aparelho era consideravelmente maior que o primeiro, com uma tela retangular apoiada por uma barra de metal abaixo de si. Emitia sinais de rádio e sons de bipe.
Com ambos os instrumentos em suas mãos, Kaya vasculha o ambiente em penumbra, como armas carregadas e apontadas para a escuridão. Os olhos buscavam qualquer que fosse o movimento daquilo que estivesse nutrindo tanto ódio pela humanidade dentro da casa. Poderia ser um fantasma, um anjo ou um demônio. Poderia ser uma alma perdida, uma alma curiosa ou uma alma que buscasse vingança. Poderia ser uma lenda urbana local ou uma criatura integrante do folclore nacional, até mesmo mundial. Poderia ser qualquer formação que fugisse das explicações lógicas dos mais metódicos céticos. Alguma resposta para a sua pergunta. Alguma pista para a solução daquele caso.
Nada.
Nenhum dos equipamentos detectou nada. Nenhum movimento, nenhum sinal, nenhuma linha torta na tela de linhas vermelhas, nada. Andou com passos lentos e ritmados por toda a sala de estar e não detectou nada.
Ela arqueia suas sobrancelhas para os dispositivos em suas mãos. Isso não fazia sentido. Ela conseguia sentir a mesma energia que sentiu das demais vezes que olhou para a escuridão dentro da casa, bem como quando a escuridão olhou de volta para ela. E essa energia estava ao seu redor, quase rente à sua pele, mesmo com a luz acesa e a penumbra que iluminava toda a sala.
Ela passa a seguir o seu próximo plano quando abre novamente a maleta e pega um tabuleiro circular da pasta escura. Aquela era a sua versão preferida de usar a tábua ouija. As letras eram dispostas em ordem alfabética e em sentido horário por toda a tábua de madeira, com a numerologia sendo separada em duas partes pelas palavras "SIM" e "NÃO", também em sentido horário. Kaya usa sua mão direita para a comunicação final depois de fechar os olhos e se concentrar. Já solucionou casos em que as forças desconhecidas se sentiam mais confortáveis em se comunicar quando utilizavam de seus dedos como ponteiros de suas respostas.
Nada. Depois de minutos parada no mesmo lugar com o tabuleiro em uma mão e seus dedos da outra como ponteiros, a única resposta que tem é de seu cérebro indicando uma tensão das cartilagens envolvidas.
Quando um segundo arrepio atinge a sua nuca, quase como um sussurro inteligível no pescoço, finalmente se senta ao chão e abre novamente sua maleta de couro pelas fechaduras douradas. Não havia motivo para perder mais tempo. Pela sua experiência na área, sabia que nem todas as intercorrências sobrenaturais se faziam presentes no plano material, ou mesmo conseguiam realizar tal feito. Ela sentia que algo estava ali, apesar de não conseguir detectar em seu equipamento especializado.
Ela usa o sal grosso em sua maleta para desenhar um círculo branco no chão da sala de estar. Para muitas culturas, até mesmo religiões, esse era o símbolo de limpeza, de proteção, de paz. Servia de purificação de espíritos, tanto os deste plano de existência quanto os de outros. Para ela, era a forma mais fácil de desenhar seus símbolos sem criar uma bagunça na cena paranormal, além de ser de fácil limpeza. Também pega seis velas de tubo grosso e acende-as em um padrão compreendido apenas por ela, todas presas na circunferência de sal. Abre o caderno de capa preta e folhas sem pauta para desenhar um dos seus símbolos com o lápis guardado em seu bolso e o deixa exposto à penumbra. Ela fecha os olhos e espera.
E espera, espera, espera e espera.
Nada.
O frio ao seu redor continuava tão presente quanto a escuridão, mesmo que sua pele estivesse quente e a sala de estar estivesse iluminada. Ela conseguia sentir sua pele arrepiar mais uma vez contra a incansável escuridão. Sentia que seu símbolo desenhado não havia apenas se tornado fraco, como inútil contra a fina camada de neblina que cobria o chão. Não teve efeito algum, nem mesmo nenhuma movimentação das velas acesas.
Ela também conseguia sentir a escuridão rindo de suas tentativas frustradas de entender o que não entendia, ou de conhecer o que não conhecia. E as risadas vinham das paredes, do chão, do teto, dos móveis e da porta de entrada com um vitral brilhante e colorido de formato circular.
Kaya Novak abre as fechaduras douradas da maleta de couro uma última vez para usar seu último recurso daquela noite. Com a mão ferida e coberta por um curativo, ela agarra uma pequena sacola preta de abertura de botão e formato retangular. Ao abrir o botão costurado por si mesma, derruba e derrama as cartas contidas em seu interior na parte de dentro do círculo desenhado em volta de si. Ela sorri ao ver a parte de trás do baralho de tarô.
De todos os meios místicos que conheceu durante a sua jornada, o que mais prendeu a sua atenção foi a cartomancia. Quando viu pela primeira vez uma leitura de cartas de tarô, ficou instantaneamente fascinada. Sua mãe a convidou para ver as atrações que a caravana dos ciganos havia trazido para a cidade dessa vez. Carroças de madeira e vagões de latão formavam fila e eram conectados por finas cordas de barbante decoradas com bandeirinhas coloridas e lâmpadas incandescentes. O tom alaranjado da iluminação cortava o azul da noite e se complementava com os diferentes tons de madeira, quase dando vida ao ar místico que rondava a clareira onde aqueles veículos nômades estavam estacionados.
As atrações eram diversas. Apresentações de homens que comem fogo, jovens que desafiavam as leis da gravidade com saltos em plataformas circulares, crianças que cantavam diferentes tons em um coral de vozes agudas. Música de tambores e instrumentos que ela nunca antes havia visto, assim como muitos outros moradores de sua idade, acompanhados de seus pais, tocava ao redor de danças ritualísticas ao redor da fogueira no centro da clareira. As sombras das figuras dançantes eram projetadas nas placas de madeira das carroças e seguiam para além da floresta escura ao seu redor. A atração que formava a maior fila, no entanto, era a tenda da Magnífica Madame Magnolia Grandiflora, uma mulher que dizia ser um oráculo e que revelaria seu futuro com o poder das cartas de seu tarô.
Enquanto estava de pé ao lado de sua mãe, conseguia ver os olhos daqueles que se consultavam com a cartomante. Alguns saíam de sua tenda com uma luz em seu olhar, já outros, com total escuridão. Percebe que todos que eram atendidos recebiam uma carta negra e levavam consigo para fora da tenda. Também percebe que algumas dessas pessoas amassaram suas cartas e a descartaram com certa distância de si, assim que voltam à luz incandescente das lâmpadas dispostas na clareira. Sua mãe lhe explicou que, apesar de estarem na fila para terem um atendimento com a mulher misteriosa que decorava pôsteres e cartazes com seu nome em letras grandes, seu rosto com um brilho misterioso e uma sequência de cartas espalhadas em uma mesa, aquela era, muito provavelmente, uma vigarista. Ela complementa dizendo que é impossível que pessoas trabalhem com a certeza do futuro, já que o próprio futuro é incerto e que seu conhecimento pertence apenas a Deus.
Sua mãe era uma mulher muito religiosa e qualquer opção que não fosse do seu próprio círculo de fé, era duvidado. Uma Kaya jovem assentiu ao ouvir as acusações sem provas de sua mãe, mas a sua curiosidade despertava outros questionamentos que jamais seriam respondidos naquela fila, naquele momento.
Se realmente fosse uma vigarista, então qual seria o motivo de algumas pessoas terem boas leituras de seu futuro, e outras não? Não seria melhor vantajoso para seu negócio que todas as pessoas saíssem de sua tenda com um sorriso em seus rostos e tranquilidade em suas mentes? O que realmente ganharia com a tristeza e com o desespero de alguns desconhecidos?
Quando finalmente chega a sua vez de ser atendida, Kaya entra na tenda por seu portal inicial. Uma sequência de fitas de lantejoulas brilhavam sob a luz do luar acima de si e decoravam a entrada pela qual passa a mão para entrar. O ambiente era escuro, apesar da iluminação exclusiva de velas dispostas em pontos específicos por toda a tenda. Haviam móveis de madeira escura que completavam o sentido de mistério. Detalhes em dourado se destacavam nos móveis e nos diversos livros dispostos nas estantes, como estrelas na escuridão da noite. Também haviam raízes, folhas e pergaminhos empilhados e espalhados assimétricamente em outras estantes. Gaiolas de metal vazias expõem apenas a lembrança de alguma ave que um dia teve sua liberdade cortada. Cortinas de diferentes tecidos vermelhos decoravam todo o teto do ambiente, com suas lonas dispostas de tal forma que ilustravam uma espécie de grande sol logo acima da mesa de mármore no meio do grande círculo, que possuía uma toalha do mais belo e brilhante lilás.
Uma figura sombria estava sentada do outro lado, e ela se mantinha em silêncio mesmo com sua presença sendo notada. Ela faz apenas um movimento simples com seu braço, convidando suas clientes a se acomodarem.
A cor que se destacava no meio de tantas sombras era o branco leitoso das magnólias brancas espalhadas pela tenda. Estava presente em vasos, em livros, em estantes, em frascos empoeirados por toda a decoração daquela tenda, com pétalas espalhadas pelo chão de lona. Aquela espécie de flor era exótica e imigrante do país, provavelmente tendo sido coletada pela caravana de ciganos em uma de suas muitas viagens ao redor do mundo. Kaya percebe o branco de algumas das pétalas no chão mudarem levemente de cor ao pisar nelas com seus sapatos brancos e pretos, no movimento de ir de encontro com duas cadeiras livres e dispostas frente à mesa central da tenda.
Quando Kaya e sua mãe se acomodam, conseguem ver de perto o mesmo rosto que era anunciado no grande cartaz que viu momentos mais cedo. A Magnífica Madame Magnolia Grandiflora era uma mulher que aparentava ter ao menos o dobro da idade de sua mãe. Possuía apenas fios cinzas em seu cabelo curto e penteado, com um véu vermelho e translúcido separando-o em duas partes e se escondendo em sua nuca, como uma fita e um laço. Seu rosto tinha marcas de expressão causadas pela exposição à idade e ao sol. Sua pele era fina e oleosa, tendo um certo brilho com a iluminação das velas. Seus lábios eram ressecados e seu sorriso os comprimiam um contra o outro. Havia um desvio na ponte de seu nariz e suas orelhas eram levemente rebaixadas. Seus cílios e sobrancelhas eram finos e curtos. Suas roupas não tinham tanta variação de cor além da paleta presente em sua tenda. Devido estar sentada do outro lado da mesa de madeira, Kaya apenas conseguia ver uma blusa de seda em um tom azul acinzentado, com ambos os ombros expostos pela gola baixa, e o que parecia ser a barra de uma saia cor de vinho logo abaixo da linha de sua cintura magra. Em volta de seu pescoço, um colar prateado com um pingente em formato de olho. Ela se sentia observada. Ela se sentia julgada.
No centro da mesa decorada com mais flores brancas, havia um monte de cartas pretas. O único som ambiente que era possível de ser ouvido era o som do fogo das velas, o som das cartas batendo contra si e o som da respiração de sua mãe. Todos os seus dedos magros eram decorados com anéis de prata, podendo estar sozinhos, em duplas ou em trios na mesma falange, e brilhavam contra a luz das velas enquanto embaralhavam as cartas escuras com rapidez e habilidade. Depois de alguns instantes, forma uma linha reta de cartas a serem escolhidas com um mesmo movimento contra o tecido lilás, seguido de um olhar para a menina Kaya.
Ela olha todas as cartas pretas dispostas na mesa. Lembra das pessoas saindo da tenda munidas de cartas pretas e, por intuição, sabia que deveria escolher apenas uma carta para receber sua leitura. Ela paira a sua pequena mão sobre as cartas antes de finalmente escolher uma dentre tantas outras. Quando puxa para si, ela gira a carta sobre seu eixo maior, revelando uma ilustração brilhante em meio à escuridão de um céu noturno, sobre uma correnteza de água límpida e cristalina.
A Estrela.
A carta com simbologia de esperança e de propósito revelou à pequena Kaya Novak, que não tinha nenhuma esperança de ter propósito algum em sua vida, que estava errada. Era uma luz no fim do túnel, um guia em meio à escuridão, como lembra ter ouvido das palavras da Magnífica Madame Magnolia Grandiflora. Ouviu as palavras de fé em meio a um sorriso misterioso, porém sincero, da mulher com dezenas de anéis em seus dedos. Era uma carta boa, e era a carta que Kaya precisava ouvir sobre o significado da boca de alguém para acreditar. Sente seus olhos castanhos brilharem com a mesma intensidade da estrela ilustrada no céu escuro do painel da carta que retirou do monte exposto, e seus dedos trazem a imagem para mais próxima de si, abraçando o seu futuro.
O mesmo olhar silencioso e caótico passa da pequena Kaya Novak para a sua mãe. Feliz com a felicidade de sua filha, e cobiçosa, faminta e sedenta de experienciar tal revelação, a mulher puxa uma carta qualquer, a mais próxima da carta retirada por sua filha. A imagem revelada era de uma figura feminina sentada em um trono, coberta de tecidos por todo o seu corpo, e seu rosto com feições escondidas. Seus olhos, mesmo descobertos pelos tecidos, não expressavam nenhuma emoção compreensível. Atrás de si, diferentes conjuntos de flores, igualmente divididas entre vivas e mortas. Em sua cabeça, uma coroa dourada. Em seu peito, uma cruz brilhante. Em seus pés, uma lua minguante. A carta, no entanto, estava de ponta cabeça, revertida, como se estivesse apontada para a cartomante.
A Suma Sacerdotisa reversa.
Segredos. Apenas com a primeira palavra projetada por sua voz rouca e falha, a Magnífica Madame Magnolia Grandiflora já havia capturado a atenção de sua mãe. Uma mulher perdida em seus segredos, afundada em suas mentiras e que cairá em seu próprio túmulo pelos erros cometidos apenas por ela e pelos desejos negados e reprimidos de sua alma.
A curta leitura foi o suficiente para que sua mãe levantasse da cadeira, jogando-a para trás, e em um único movimento puxar Kaya pelo braço para fora da tenda escura e brilhante. Assim como muitos outros que tiveram um atendimento pela velha cartomante, a carta da Suma Sacerdotisa foi amassada e arremessada para a escuridão da floresta e da noite. A respiração da mulher, que nunca havia visto tão descompassada, era audível.
A viagem de volta para a sua casa foi silenciosa, ao menos até passar pela porta principal e se encontrar com seu pai, que havia chegado da viagem de negócios. Com sua carta na mão, contou toda a sua experiência para o homem que sorria ao ver sua filha animada por algo pela primeira vez em sua vida, e estava decidida, independente do aviso de sua mãe, que aquele seria sim um retrato de seu futuro. Ao ver a felicidade no olhar da pequena Kaya Novak, e em homenagem à carta que recebeu um juramento de jamais ser perdida, seu pai a apelida de Supernovak, uma brincadeira com o nome de sua família materna e as supernovas causadas pelas explosões de estrelas.
A carta da Estrela não estava errada. Com o sucesso de seu podcast, Kaya se tornou a estrela de seu próprio show. A protagonista de sua própria história. Pesquisou mais sobre a cartomancia e deixou de ser uma paixão e se tornou um hobbie antes de se tornar parte de seu trabalho. No mesmo mês de sua visita à caravana dos ciganos, e seu encontro com a Magnífica Madame Magnolia Grandiflora, ganhou de presente um deck de cartas de tarô de seu pai. Esse foi o seu conjunto de cartas por ao menos uma década. Apesar dos pesares, era um presente, e mantê-lo junto a si a dava uma felicidade para a sua criança interior. A mesma criança que um dia sorriu ao ver a carta da Estrela pela primeira vez.
A carta de sua mãe também não estava errada. Ela também foi abordada pelo mesmo homem com a mesma pergunta sobre a sua carta, uma vez que Kaya estava tão animada com o significado da sua. Falou a verdade quando disse que havia recebido a Suma Sacerdotisa, mas mentiu quando disse que seu significado era voltado a ser uma mulher devota à sua religião. Kaya viu os olhos de seu pai brilharem da mesma forma como brilhou para ela, enquanto viu a boca de sua mãe projetar mais mentiras que sustentassem sua história original. Ele não tinha o conhecimento necessário para saber que sua mulher estava mentindo o significado de uma carta de tarô, ela também sabia disso. Ele também não estranhou sua esposa não ter mostrado para ele a sua carta preta, assim como Kaya mostrou.
O deck de cartas que tinha em mãos naquele momento, no centro do círculo de sal desenhado com cuidado e rodeado de velas, não era o mesmo que um dia recebeu de presente.
Seus dedos embaralham as cartas assim como um dia viu serem embaralhadas por aquela mulher misteriosa e rouca em sua tenda pessoal da caravana de ciganos. Por um momento, se perguntou por onde estaria a Magnífica Madame Magnolia Grandiflora agora. Quantas outras aventuras entraram para as suas memórias? Quantas outras meninas pequenas e acompanhadas de suas mães passaram por seu caminho? Quantos outros destinos passaram por suas leituras?
As suas cartas dançam pelos seus dedos e cantam ao serem deslizadas uma contra a outra. As setenta e oito lâminas ilustradas conversavam seus segredos entre si, em uma linguagem que apenas as próprias cartas eram capazes de compreender.
Sua leitura favorita sempre foi a da carta única. Depois que as cartas estão embaralhadas, ela puxaria apenas uma, tendo sua leitura completa a partir daquele ponto inicial. De certa forma, achava poético. O começo e o fim. O alfa e o ômega. Apenas uma carta era necessária para a sua pergunta, para a sua análise e para a sua resposta. Uma leitura que prezava pela qualidade, e não pela quantidade.
Ela distribui as cartas em uma linha reta perfeita dentro da circunferência de sal grosso. Passa a mão livre por cima das cartas e fecha os olhos mais uma vez. Respira com movimentos de inspiração e expiração demorados. No momento que julga ser o mais correto, com o toque de seus dedos na carta que julga ser o significado daquela situação, ela vira o retângulo brilhante sobre seu eixo menor para expor ao mundo e à ela o desenho colorido de seu outro lado.
A Torre.
A ilustração da carta era rica em detalhes. Em seu centro, com a visão principal de um olho curioso, estava um farol aceso. Sua torre era impecável, com linhas vermelhas que o circulavam e criavam intercessões entre si. Uma nuvem negra no céu desenhava um raio que partia o farol no meio, em duas partes não iguais, mas que se completavam de uma maneira única. Do interior da construção arruinada, uma nuvem de borboletas fugiam de seu aprisionamento. As letras douradas na parte inferior não permitiam outra leitura de seu nome, acompanhada da numeração "XVI", ou dezesseis em numeração romana.
Aquela era mesmo a carta da Torre.
Também chamada de A Casa Deus, a carta da Torre simbolizava basicamente o caos. Era uma carta que muitas pessoas, leitores e ouvintes, temiam. Ela previa uma reviravolta, pressentia uma grande mudança, pressagiava uma transformação. Poderia significar o resultado positivo de uma tentativa de entrada em uma universidade para um jovem de poucas condições financeiras, assim como a morte prematura de um recém-nascido em um lar acolhedor e feliz. Significava que algo estava prestes a acontecer, algo que mudaria seus sentidos e forçaria uma transformação, e que era completamente inevitável. Uma mutação. Uma renovação. Uma metamorfose.
Sentiu o olhar da carta sobre si, assim como sentiu o olhar da casa em seu primeiro encontro. Sentiu o frio da noite sobre seu corpo, assim como sentiu na primeira vez que saiu de seu carro vermelho de duas portas naquela noite. Sentiu um terceiro arrepio em sua nuca, e sentiu que a escuridão ao seu redor debochava de si mais uma vez. Sente seus olhos lacrimejarem contra a névoa que inundava a casa aos poucos pelas frestas nas paredes e aberturas nas janelas emperradas ou destruídas.
Kaya deixa o interior da casa minutos depois, acompanhada de sua maleta de couro com fechaduras douradas e seu livro preto de folhas sem pauta. A saída era a mesma passagem de entrada, tanto a janela da cozinha quanto a abertura manual na grade que separava o mundo exterior daquele terreno submerso em sombra e névoa. Volta para o seu carro vermelho de duas portas em silêncio mas em respirações profundas e audíveis.
Ela fecha os olhos e descansa sua nuca contra o encosto de cabeça do banco do motorista. Fica nessa posição até que sua respiração se normalize. Ela então olha para a casa mais uma vez e conseguia sentir um sorriso do seu interior, mesmo que nada fosse visível na arquitetura ou engenharia de sua entrada.
Ela olha para o monte de cartas de tarô dispostas no banco do passageiro e puxa a primeira carta para si. Como resposta do destino, recebe a carta do Louco, numeração zero. Simbolizada o início de uma jornada. Também simbolizava ter ações sem pensar em consequências. Não saber com o que está se metendo. Parecia adequado, de certa forma.
Ela deixa a carta sobre seu colo enquanto posiciona o gravador de voz no painel logo acima do volante travado.
* * *
"Qual a relação dos animais com suas casas? O que os pássaros pensam de seus ninhos quando o constroem de restos de galhos, ramos, lama e suas próprias penas quando sua ninhada cresce? O que as cobras pensam dos buracos na terra e areia que as protege das condições atmosféricas quando precisam peregrinar de bioma a bioma? O que as formigas pensam de seus formigueiros quando a chuva onipotente destrói o trabalho de suas vidas e matam suas gerações futuras? O que as abelhas pensam de suas colmeias, tão ricas em alimento e material de construção, quando perdem a sua rainha e necessitam deixar tudo para trás e voar uma floresta inteira por dias até encontrar outra árvore perfeita, com competências perfeitas para uma nova sociedade?"
A gravação de seus episódios seguia um padrão único e conhecido apenas pelo seu subconsciente. Não tinha uma linha fixa, ou roteiro, para a sua estruturação. Era o seu sentimento atual, sua análise do caso. Tudo o que nunca conseguiu ser honesta o suficiente para as crianças de seus anos colegiais, ou verdadeira o suficiente para suas psicólogas em seus anos de tratamento.
"Nós sabemos o que acontece quando se mexe em uma colméia cheia de vida, ou um ninho cheio de ovos, ou um formigueiro funcionante e quilométrico. Mas e a colméia, o ninho e o formigueiro que foi deixado para trás por suas famílias? Substituído por um melhor, ou um maior. Ou mesmo esquecido por não haver mais uma utilidade prática?"
Ela olha para a mão ferida, depois olha para a casa escura. Então volta seu olhar para o gravador de voz.
"Será que, de todo o reino animal, somente os humanos têm essa conexão com suas casas? Por que a casa é tão importante para nós? Por que o lar é tão acolhedor quando chegamos cansados de uma jornada de trabalho? Por que sentimos nostalgia quando visitamos a casa de nossos parentes distantes? Por que o sentimento de pertencimento é tão importante para nós? Por que uma casa sem um morador é uma visão tão aterrorizante para nossas mentes?"
Kaya olha para si mesma. Olha para suas roupas sujas de terra batida e restos de grama.
"Diferente dos animais, as máquinas não se bajulam de tal pensamento. Para uma máquina de peças de metal e plástico, a sua casa era si mesma, e não a concha de concreto que a cobria de sol e de chuva. A casa da máquina era o seu corpo, pertencente apenas aos não-lugares, e não pertencente a lugar nenhum. Ela se pertencia. Eu me pergunto o que a máquina pensa, então, quando seu corpo de metal está danificado o suficiente para necessitar de uma troca. E quando a troca é feita, qual parte passa a ser a casa habitada, e qual parte passa a ser a casa abandonada?"
A mulher olha para o seu gravador de voz mais uma vez. Aquela era a única máquina que a acompanhava em todas as gravações dos episódios de seu podcast "Supernatural Supernovak", além do seu carro vermelho de dois lugares.
"O que seriam os humanos senão máquinas orgânicas? De certa forma, o medo que a humanidade possui por casas assombradas se assemelha ao medo que a humanidade tem pelos próprios humanos. Ambos eram iguais quando se cultivava a escuridão dentro de si. Ambos eram iguais quando necessitavam de ajuda e não tinham a quem pedir. Ambos sempre desesperados por atenção e cuidado. Por que não seriam iguais ao serem abandonados? Por que ambos não seriam igualmente solitários na ausência de seus anjos e demônios?"
Kaya olha para o monte de cartas escuras, depois olha para a carta que escolheu para si mesma. O Louco olha de volta para ela, com seu sorriso inocente e seu passo descuidado frente a um precipício. Ela se pergunta se o seu ato inconsequente foi no passado, antes de conhecer a casa daquela ocorrência, ou será no futuro, quando entrar novamente na propriedade escura e abandonada.
Kaya Novak sabia que iria voltar.
Então ela olha diretamente para a casa mais uma vez e fecha os olhos. Faz um juramento silencioso que descobriria os segredos guardados por aquelas paredes, portas e janelas.
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