Episódio Cinco

Kaya Novak abriu seus olhos castanhos e se deparou com a escuridão assim que seus tímpanos tremeram com a força do trovão acima de si. As nuvens carregadas fora da janela mostravam uma chuva que tomava posse do reinado da lua e que inundava o reinado da terra. As cortinas arruinadas balançavam na presença do vento e da umidade, como bandeiras de rendimento que imploravam por misericórdia em um campo de batalha. Na pouca iluminação da noite, com apenas o brilho dos raios que desenhavam linhas retas, tortas e contorcidas, as estrelas pareciam dormir aconchegadas no grande véu escuro que as cobria de sua linha de visão.

Não lembrava de ter adormecido, mas daquela vez tinha certeza de que não estava em um de seus pesadelos. Seu corpo estava deitado sobre o colchão sujo do quarto, sua cabeça estava apoiada na capa preta de seu caderno de folhas sem pauta, sua pele estava acomodada entre os entulhos e a vegetação rasteira que se alastrava nas molas e tecidos da cama, suas roupas estavam úmidas. Talvez fosse o suor, talvez fosse a chuva repentina que caía do teto do quarto em seu rosto.

Era capaz de ver perfeitamente as gotas de água desenharem caminhos umedecidos e se acumularem nos restos de madeira que formavam o teto, até finalmente caírem como lágrimas frias em seus tecidos, tanto orgânicos quanto sintéticos. Também era capaz de sentir a frequência das gotas aumentar de velocidade, se tornando cada vez mais presente em seu corpo e em sua volta. Do lado de fora da janela, era capaz de ouvir a estática da chuva, e seu chiado fazia tremer sua espinha.

Kaya levanta sua coluna e se posiciona de forma que pudesse se sentar na cama infestada de musgo, lodo e folhas verdes. A pele de suas mãos sentia a mudança de texturas acima do colchão conforme se movimentava. A vegetação segurava o peso de seu corpo contra o tecido maltrapilho e sujo. Ela olhou ao seu redor e conseguia ver que estava quase de dia, mesmo sem a presença dos raios dourados nas frestas das paredes e sem a iluminação típica fora da janela que esbanjava suas nuvens escuras.

As paredes do quarto já estavam manchadas com a absorção da água, o cimento mantendo uma tonalidade mais escura nas áreas mais úmidas. Diversos pontos do quarto apresentavam goteiras que vinham de um andar superior, e não do telhado. As ranhuras nas madeiras da fundação do teto não se mostravam compreensíveis com quem quer que estivesse dormindo naquele lugar, nem com qualquer móvel imóvel daquele ambiente. A poeira e os restos de concreto que descansavam no chão do cômodo, que eram filhos da erosão do tempo e pais da escuridão da noite, formavam uma lama que mancharam parte da cor amarela dos sapatos de Kaya.

Seus passos pelo quarto eram lentos e despreocupados com clima e tempo, perfeitos para seus olhos curiosos e analíticos. Agora com a pouca iluminação do dia recém-nascido e chuvoso, era capaz de enxergar melhor os móveis arruinados, as paredes descamadas, as cortinas dançantes e os montes de lama cinza sem a escuridão em suas composições. Pelo tamanho do espaço e pela cama de casal em um vermelho fosco em seu centro, julga aquele ser os aposentos do casal principal da família que um dia morou dentro daquelas paredes abandonadas e esquecidas. Também nota a presença de peças de roupas masculinas e femininas por baixo dos montes de concreto e lama que dormiam eternamente em cima de mesas e cadeiras.

Não encontra nenhum quadro de fotos disposto nem nas paredes, nem nos montes de restos de construção próximos a elas. Nada que provasse que aquele era a casa de alguém se não a moradia de si mesma.

Kaya vai de encontro ao mármore que estava disposto na base da janela do quarto. Seus dedos passam pelo bloco e sentem o frio da chuva em sua pele. Do lado de fora, uma nuvem de uma tonalidade cinza e escura cobria todo o céu daquela pequena cidade longe da capital, pronta para descontar sua ira divina em um novo dilúvio. O vento, que não variava muito da mesma temperatura, batia contra seu torso como se a empurrasse de volta para o interior da casa. Como se quisesse mostrar algo atrás de si. Algo que seus olhos não viam e que estavam perdendo.

E ela olha para atrás de si e não encontra nada além de um quarto vazio, destruído e que chovia em seu interior. Um quarto melancólico, iluminado pelos raios da tempestade que dominavam o que restou da noite. Um quarto que se mostrava cansado de ter suas partes arrancadas e destruídas contra a sua vontade. Um quarto que não estava pronto para mais um ataque de um fenômeno de uma natureza que ele não controlava e que não entendia. Um quarto que chorava e que sentia dor.

E aquela foi a primeira vez que Kaya Novak entendeu que a casa sentia dor.

Ela leva seus olhos castanhos de volta para as paredes destruídas, para o teto acabado e para o chão imundo. Ela leva seus olhos para as tábuas de madeira abaixo de seus pés e consegue jurar que era capaz de ouvir a casa sentir o seu peso e juntar forças para se manter no lugar. Ela leva os olhos para os cacos de vidro da janela destruída, que brilhavam contra a luz dos raios na abóbada celeste, e consegue jurar que era capaz de ouvir a casa lamentar a sua obliteração em mil partes. Ela leva os olhos para a porta do quarto que arrebentou para conseguir fugir da escuridão que a perseguiu noite passada e consegue jurar que era capaz de ouvir a casa gemer das dobradiças arrancadas e despedaçadas. O mesmo gemido de quando os degraus da escada seguraram o seu peso ao subir para o segundo andar. Um gemido de dor.

A Residência Leviatã, em toda a sua onipotente estatura, sua onisciente memória e sua onipresente ira, sentia dor.

Foi em passos lentos e cuidadosos que Kaya caminhou em direção à porta do quarto. Colocou um pé na frente do outro, posicionando primeiro a ponta da sola de seus sapatos amarelos e então, o calcanhar. Passou pela cama central com tonalidade fosca e vermelha, passou pelas cadeiras cobertas de roupas sujas e entulho, passou pelas paredes marcadas de infiltração de saliva e lágrimas. Evitou ao máximo que as tábuas que formavam o chão coberto de lama, mesmo lascadas, podres e mofadas, ecoassem um rangido de dor da criatura que a abrigava em sua anatomia.

A Residência que a abrigava em sua arquitetura.

Passa pela porta despedaçada do quarto e encara pela segunda vez a infinitude finita do corredor mal iluminado. Sentiu que seu coração errou uma batida quando pisou por acidente nos cacos de vidro da janela que decorava o fim daquele corredor, não conseguindo diferenciar o rugido de dor da casa com o estrondo do trovão que acompanhou o raio materializado logo acima daquela construção abandonada e sozinha. Também não percebeu que havia prendido a respiração.

Quando leva seus olhos castanhos para as demais portas presas à parede escura, úmida e mofada, é coberta por um sentimento de deja vu. A lembrança da noite anterior ainda assombrava seus instintos e questionava seus sentidos. Com a nova iluminação, por mais mínima que fosse por conta das nuvens carregadas e relâmpagos irregulares, não seria pega de surpresa por alucinações frutos de escuridão, de medo e de baixa glicose em seu sistema.

Seus sapatos amarelos, sujos de lama e fuligem, se moviam conforme seus olhos achavam lacunas vazias por entre os entulhos do chão. Era capaz de ouvir a água da chuva se acumular dentro das paredes e percorrer todo o comprimento que as tábuas de madeira, os gomos de cimento e o que restou de um papel de parede rasgado ainda seguravam de pé. O som de líquido se apresentava ainda mais próximo de sua audição uma vez que a tempestade acima da casa assolava o pobre telhado com seu volume e massa.

Gotas perdidas pulavam do teto para seu inevitável fim, apenas para serem aparadas pelo rosto da mulher de longos cabelos castanhos. O fluido descia pela sua testa e se misturava com o seu suor, de forma que já não eram mais distinguíveis quando tocavam sua mandíbula presa por dentes rangidos uns contra os outros. Vez ou outra, semicerrava os olhos como reflexo da água que escapava da sua sobrancelha para seus olhos. Apesar da tormenta fora e dentro da casa, ainda conseguia ouvir perfeitamente seus passos pesados contra o chão fragilizado.

Kaya Novak observava a Residência Leviatã com outros olhos. Conforme caminhava pelo corredor mal iluminado, pisando entre poças de lama formadas pela água da chuva e pelo entulho de restos, seus olhos demonstravam um sentimento que mais se aproximava de compreensão. Quase como sintomas de uma Síndrome de Estocolmo que ela mesma se colocou e que ela mesma rejeitava fugir, mesmo com nada que a impedisse. Quase como se fosse possível sentir empatia pelo monstro que a atormentava, a caçava e que a devoraria na primeira oportunidade que virasse as costas ou que fechasse os olhos.

Ela para sua marcha por entre o chão imundo e escuro que pisava. A mão que tocava a arquitetura falha da parede se abre por completo para sentir a temperatura fria da tábua de madeira úmida. Sua outra mão segurava com força a capa preta de seu caderno de folhas sem pautas. Ela lembra das palavras que disse no episódio de seu podcast antes de dormir e sorri, quase como uma resposta inconsciente. A casa não a havia devorado na noite anterior. A casa permitiu que ela descansasse por uma noite completa, ou até que a chuva a despertasse. Ela estava lá, apenas a observando dormir, e nada que sua escuridão guardava a encostou durante todo aquele tempo.

A casa teve a oportunidade de a engolir por completo, e deliberadamente escolheu não fazê-lo.

Ela olha para o final do corredor mais uma vez. O mesmo corredor que a ameaçou e a perseguiu horas mais cedo apenas a olhava de volta. Ela sabia que estava sendo observada, se sentia analisada, mas não se sentia julgada.

E o olhar que a olhava de volta não era o mesmo olhar que a observava anteriormente. Era quase um olhar inocente.

A Residência Leviatã também observava Kaya Novak com outros olhos. Inicialmente, sabia que as portas, as paredes e as janelas a observava com olhos maliciosos. Por algum motivo, sentia que agora era diferente. Não sentia confiança por parte da construção, de forma alguma, mas sentia certa incerteza. Certa hesitação. Como se a casa também não entendesse o que sentia por aquele corpo de carne inferior à sua arquitetura perfeita e imponente.

Como se desse uma segunda chance, tanto para si mesma, quanto para seu invasor.

Kaya não sentia a presença da escuridão ao seu redor, tanto literalmente, devido à iluminação inevitável do dia que estava para nascer, quanto figurativamente, devido ao seu dilema próprio. A mesma escuridão que puxava o ar de seus pulmões, que a fazia tropeçar em seus próprios pés e que a perseguia contra uma janela aberta no fim de um corredor, não estava mais ali. Acreditava que, assim como ela, a casa também estava com a mandíbula presa por dentes rangidos uns contra os outros, ainda incerta de qual decisão tomar quanto ao seu rival.

A chuva ainda cantava seu coral monótono quando um raio bradou entre duas nuvens no céu logo acima da casa. A disputa por poder e eletricidade traz consigo um trovão maciço, de ondas quase sólidas, que invadem toda a engenharia da Residência e tremem toda a anatomia de Kaya. Como resposta, a mão que encostava ansiosamente na parede caiu em um espasmo na direção da maçaneta da porta mais próxima de si, apenas algumas dezenas de centímetros de distância. A porta se abre e a mulher sente a corrente de ar do corredor entrar e dominar todo o espaço do quarto descoberto, como se suprisse o vácuo que a escuridão um dia criou.

A situação do quarto não era diferente do restante dos cômodos até então explorados. A chuva que molhava o jardim de vegetação alta e a árvore na ponta do terreno era a mesma chuva que molhava as paredes da casa e a pele de Kaya. O desgaste causado pelas forças da natureza, no entanto, parecia ser maior nos móveis daquele lugar. Os sapatos amarelos e sujos buscavam lugar entre a lama alta e escura que dominava o chão. Os olhos castanhos e curiosos buscavam sentido nas cadeiras de madeira reviradas, mas mesas derrubadas, na cama desmontada e no guarda-roupas, mesmo ainda de pé, com suas portas e gavetas abertas.

Era um quarto menor que o que passou a noite. As paredes não tinham nenhum resquício de papel decorativo ou alguma ornamentação que decorasse ou protegesse as camadas de cimento, barro e madeira, então caíram uma a uma, sobrando apenas paredes finas e corroídas. O teto não era enfeitado com um lustre, mas sim, com tábuas que formavam uma configuração quadricular, como um tabuleiro de cores sujas, podres e grosseiras. Aberturas naquele tabuleiro mostravam a luminosidade de um andar superior, e a ideia de um telhado em ruínas logo acima.

Todo o chão estava coberto com sinônimos de escombro e lixo. Restos de parede, de teto, de chão e de móveis dominavam o volume do quarto, como uma espécie de piscina de peças sólidas, esquecidas e indesejadas. Kaya sentia a resistência daquela camada alta de escombros segurarem seus pés ao tentar adentrar o ambiente desolado em direção ao guarda-roupas erguido.

Quase como se a casa tentasse impedir que seus passos avançassem.

Aquele poderia ser um quarto extra. Talvez um quarto de hóspedes ou, até mesmo, o quarto de um dos filhos mais velhos que saiu de casa primeiro que o restante dos moradores. O que quer que foi um dia, não tinha mais a mesma funcionalidade antes mesmo do restante da casa. Aquele parecia ser o primeiro cômodo a ser abandonado, deixado à própria sorte ainda na presença de inquilinos nos quartos e andares vizinhos.

Seus sapatos amarelos param um ao lado do outro quando as portas daquele guarda-roupas estavam a apenas alguns centímetros de si. A madeira já não aguentava mais a pressão atmosférica nem a mudança climática dentro daquele cômodo esquecido, com suas fundações afundadas e derretidas juntas ao restante do entulho que inundava o quarto. Mais uma vez, certa vegetação fugia das paredes ocas e cantos esburacados para dominar as tábuas ainda erguidas daquele móvel escuro.

A escuridão se empilhava nas prateleiras destruídas e gavetas caídas, em um monte de massa e material úmidos. As plantas rasteiras e trepadeiras se fundiram de tal forma que formavam tubulações e vias de ar para que aquele guarda-roupas pudesse respirar. Seu próprio sistema circulatório, como veias e artérias, ou seu próprio sistema respiratório, como traquéias e brônquios. Água era armazenada em seu alicerce e as gotas de chuva percorriam todo o interior rústico como rios verticais, até finalmente descansarem no fundo.

Na base daquele amontoado de apodrecimento, Kaya notou uma espécie de caixa de uma madeira diferente da que formava o restante do guarda-roupas. Era de uma tonalidade mais escura, com traços de um material brilhante esculpido em pequenos detalhes. Sulcos entalhados que refletiam o brilho da tempestade acima de si percorriam todo o seu exterior. Por algum motivo, sentia que aquela caixa tentava se esconder de seus olhos, mas sua própria riqueza a impedia de ser bem sucedida.

Com as duas mãos, ela puxou a caixa de madeira escura e de detalhes brilhantes, deixando o caderno de capa preta e folhas sem pauta no chão coberto de água e entulho. Kaya senta contra o chão imundo e posiciona a caixa em seu colo, acima de sua calça, e usa a mão intacta para afastar o restante de material podre, molhado e esquecido da sua tampa. Nesse movimento, revela uma grande figura de flor dourada que ilustrava toda a parte superior da caixa de madeira escura.

Não demorou muito para que os dedos de Kaya se tornassem tão curiosos quanto seus olhos castanhos. Abre a caixa em seu eixo central, cortando a figura de flor dourada ao meio, de cima para baixo. Seu interior estava coberto de água e lodo, mas as marcas apodrecidas nas laterais e o verde contaminado da matéria orgânica decomposta datavam de eras passadas. Todo o seu conteúdo, por extensão, estava encharcado e destruído.

Ela puxa para si um dos materiais visíveis daquele monte impuro e percebe que, em sua maior parte, são fotografias tiradas de um tempo que não pertencia e que jamais voltaria. Seus dedos seguravam cuidadosamente o que restou de um papel químico, com seus olhos atentos para qualquer sombra que viesse em direção à luz do dia. Impossível de serem reconhecidos corpos, rostos ou lugares. Nem mesmo as cores originais deixaram sua contribuição para a eternidade. Marcas derretidas de tinta escura desabrocharam das fotografias em direção ao restante das lâminas de um passado perdido. Eram como folhas escritas de um texto religioso, mas apagadas às pressas em um ato iconoclasta.

Como se já não houvesse mais provas de sua existência.

Como se fossem memórias que a casa queria esquecer.

Como se a Residência Leviatã não quisesse ser associada às pessoas que um dia deu abrigo. Como se não quisesse ser associada às pessoas que um dia cuidou. Como se não quisesse ser associada às pessoas que um dia a abandonaram.

Kaya. Kaya. Kaya.

Ela olha para trás, para a mesma direção que ouviu seu nome ser chamado. Não havia nada ali, além do mesmo quarto em ruínas e da mesma porta aberta para o corredor vazio. Já esperava que não houvesse nada além da casa ao seu redor, de qualquer forma. Era capaz de sentir o Leviatã olhando para ela, mas sem o peso da escuridão em sua pele. Já não mais sentia a energia maligna que sentia até a noite anterior.

Ela se levanta e, mesmo com a resistência do piso sobre seus pés, consegue deixar aquele quarto para trás. De volta ao corredor mal iluminado e encharcado de água da chuva, coberto de lama escura e cheio de entulhos sólidos, ela observa ao seu redor e sente o hálito da casa em seu rosto. Sua força mecânica era tão potente que era capaz de mover os cabelos molhados e colados de sua pele.

Ela segue em alguns passos lentos na direção dos dois lances da escada arrebentada que a levariam para o pavimento inferior. Apenas uma porta restava para findar a sua exploração do segundo andar, e ela já se encontrava entreaberta. Uma luz corta o ambiente pela fresta entre a porta de madeira e a parede umedecida, tão rápida quanto a resposta sonora das nuvens do céu acima de si. Talvez aquele quarto já estivesse à sua espera.

Esses últimos passos que seus sapatos amarelos tomaram foram os mais doloridos para a casa, ao menos em relação à amplitude do rangido que as tábuas fizeram contra seus pés. Era um som alto e grave, como o som que socos fazem contra as entranhas de alguém sem ar. E cada passo que ela dava em direção àquela porta entreaberta era uma estocada maior contra a barriga da Residência, a ponto de não mais sentir o vento daquele corredor vazio. Assim como a casa, Kaya também estava sem fôlego, mas não entendia o porquê.

Não fazia sentido um porquê.

Ela sentiu sua mão tremular pela primeira vez em muitos anos. Ao tocar a maçaneta redonda daquela porta, se tornou vulnerável ao frio que roubava o calor de sua pele e a força de seus membros. Ouviu a chuva gritar junto a casa quando abriu a porta e revelou um quarto menor que os outros dois que já havia explorado naquele dia. Diferentemente do anterior, o cômodo não estava tão destruído. Ainda tinha a aparência de abandono, com suas paredes infiltradas e teto marcado por linhas de água, mas eram apenas detalhes contra o papel de parede rosa quase intacto ao considerar o que a erosão da chuva e do tempo fez com a Residência. Cômodas e prateleiras decoravam as paredes como enfeites, repletas de pedaços descoloridos de bonecas de pano e alguns brinquedos de madeira.

No centro do quarto, um berço de madeira.

A tinta branca das tábuas e feixes de sua formação já não era tão visível quanto um dia foi. Era uma construção retangular, com suas grades laterais de madeira clara e ornamentadas até certa altura como pilares gregos. Acima e abaixo dos pilares, tábuas finas completavam as laterais, com suas arestas detalhadas indo em direção ao chão e se encontrando em uma base levemente angulada. As quatro pontas superiores da caixa tinham adereços em formato de pássaros, também esculpidos da mesma madeira clara. Em seu interior, várias camadas de pano sujo, com uma altura de uma palma completa de sua mão.

Aquele não era apenas o quarto de uma família que esperava um bebê, aquele era um santuário. Um quarto que, de alguma forma, havia parado no tempo. Um quarto que esqueceu de apodrecer como seus cômodos irmãos e se negava a obedecer a ordem natural pré-estabelecida. Um quarto que representava aquela casa perfeitamente. Um quarto singelo, delicado e rebelde.

Talvez estivesse errada. Talvez a sala de estar realmente fosse o coração das casas, mas aquele quarto era o coração da Residência Leviatã.

Kaya leva uma mão ao próprio peito. Sentia seu coração gritar junto à casa e à tempestade. Seus olhos semicerram, com suas sobrancelhas contraídas uma contra a outra, quando seus dentes pressionam sua mandíbula e sua boca expressa dor. Sentia dor. Apenas conseguia sentir dor. O som que emite é lento, carregado e dolorido, como uma mistura de gemido e choro. As lágrimas de seus olhos descem em um ritmo avançado e incompreendido, se mesclando e se perdendo nas trilhas de chuva em seu rosto já molhado. Por fim, seus joelhos cedem a pressão e seus músculos se permitem cair contra o chão encharcado de água, lágrima e lama.

Ela olha para cima e absorve toda a dor que sentia até explodir em uma supernova de pranto. Com seus olhos fechados, ela era capaz de ver a escuridão da casa. Com seus ouvidos abertos, ela era capaz de ouvir a lamentação da casa. A chuva invadia o quarto pela única e pequena janela que a adornava, se tornando presente na parede mais distante de si.

Sentia a sua dor e sentia a dor da casa.

Seu choro audível tentava salvar a irmã que nunca teve de um passado que durante anos tentou esquecer. Quando seu pai descobriu os casos extramatrimoniais de sua mãe, já não havia muito o que segurasse a relação dos dois. Durante anos, a mulher que todos pensavam ter o caráter mais indulgente por sua clemência à sua religião, ou ao menos foi essa a imagem que Kaya tinha de sua mãe, se mostrou ter a índole mais vil ao manter relações com o padre de sua igreja local durante todos os períodos que seu marido viajou para a capital do país a negócios.

Com a desculpa de haver reuniões com a congregação em nome de seus sacramentos, sua mãe entregava seu corpo às suas vontades enquanto Kaya voltava para sua casa sozinha depois das missas dominicais. Sempre acompanhada de seu caderno, achava esse momento o mais propício para refinar a sua arte e suas linhas.

Quando sua mãe inevitavelmente engravidou, mais nada era capaz de segurar seu casamento. Seu pai teve uma emergência com o conselho de mercadores e passou alguns meses a mais em sua última viagem, apenas para retornar com o físico de sua esposa visivelmente maior. Seus seios estavam cheios, seu quadril mais largo, sua cintura mais extensa e seu ventre inchado. O mesmo corpo que viu quando sua mulher estava grávida de Kaya, sua primeira e única filha.

Kaya ouviu a discussão começar ainda na madrugada. Os gritos eram acompanhados de xingamentos e nomes que nunca havia experienciado seus pais trocarem entre si. Enquanto seu pai a comparava a prostitutas e a animais famintos, sua mãe se defendia ao dizer que nunca havia lhe prometido o tempo que ele lhe roubou, com sentimentos que ele a havia prometido e nunca havia cumprido. Ela ainda não tinha idade suficiente para entender ao certo o que a maioria das palavras significava, mas entendia o tom no qual elas eram ditas. Ao tentar ouvir a discussão atrás da porta de seu quarto, o único som que conseguiu compreender de fato foi o da porta da frente de sua casa batendo, com os passos de seu pai sendo projetados em um tom menor e menor até sumirem de seus sentidos e de sua vida.

Ele nunca olhou para trás. Nunca tentou se comunicar de qualquer forma. Nunca voltou para visitar. Ela nunca mais o viu. Para a pequena Kaya, ele nunca a havia amado de verdade. Para a Kaya adulta, ele deixou de vê-la como seu sangue. De qualquer forma, ela não mais existia para ele, mesmo ele se tornando o primeiro fantasma de sua coleção.

Quando ela saiu de seu quarto no silêncio da madrugada, encontrou sua mãe jogada ao chão, com garrafas longas e verdes de vinho a fazendo companhia. Aquela foi a primeira vez que presenciou sua mãe com bebidas alcóolicas, mas não foi a última.

Sua mãe passou os meses seguintes com fortes enjoos, de uma intensidade muito maior de quando estava grávida pela primeira vez. Ela tentou abortar o bebê várias vezes, em várias ocasiões e com vários métodos, mas aquele seu pecado continuava a atormentar firmemente alocado em suas entranhas. Quase como se carregasse a própria punição do deus que rezou e adorou por tantos anos. Quase como se essa fosse a justiça divina que tanto buscou.

"Ela se foi".

As palavras de sua mãe jamais deixaram de a atormentar desde quando as ouviu pela primeira vez ao sair do banheiro da sua própria casa. Seu tom sério quase soltou um sorriso quando finalmente conseguiu se livrar do verme que seu ventre alimentava. Suas mãos e roupas cobertas de sangue vermelho-vivo, talvez a única prova da existência daquele bebê. Segurava um pedaço de metal em sua mão, um pedaço deformado e reformado de um dos cabides de seu guarda-roupas.

Somente nesse dia descobriu que teria uma irmã. Aquela foi a primeira vez que ouviu sua mãe falar algo que revelasse o sexo da criança.

Era injusto.

Ela também nunca teve um nome próprio. Um nome para chamar de seu. Um nome capaz de encantar os outros. Um nome para que Kaya guardasse em sua memória e murmurasse em seu luto. Foi assim que Kaya jurou para si mesma que ambos os seus pais nunca mais teriam nomes também. Seriam esquecidos para sempre, apenas como sombras de um passado que ela jamais voltaria, que ela jamais lembraria. Sombras da estrela que se tornaria. Sombras de seu nome.

Ela batia ambas as mãos contra o chão, e sentia dor nas duas. O mesmo movimento repetido diversas vezes, incansáveis vezes, dolorosas vezes. O seu pai a abandonou na primeira oportunidade que teve. A sua mãe não era quem cresceu acreditando ser. O que restou foi seus cadernos e seus fantasmas.

Kaya. Kaya. Kaya.

E ela sentia dor. Seu peito se enchia de mágoa, seus olhos se enchiam de lágrimas e suas mãos se enchiam de raiva. Sua boca gritava, gritava e gritava. Apenas a casa a ouvia e, de certa forma, a entendia. No meio daquele quarto, ela se afundava na mistura de fluidos abaixo de si, escurecidos pela própria sombra, como se afundasse na escuridão que expelia dela. A Residência Leviatã tremia com a ira daquela que enxergava como uma igual.

Kaya. Kaya. Kaya.

Em uníssono com um trovão, um estrondo se fez presente e cortou aquele quarto parado no tempo em dois. Entre uma batida e outra de ambas as mãos de Kaya, agora igualmente feridas, um alçapão se abre do teto daquele cômodo e revela uma escada de madeira escura, com seus degraus carregados de uma água rica em lama e fuligem, que se espalha rapidamente pelo chão. Uma iluminação fraca fugia do andar superior, assim como escapava pela janela sem chapa de vidro, e lágrimas da tempestade acompanhavam todo o movimento.

Kaya. Kaya. Kaya.

Ela se levanta e sente seus pés pisarem em meias ensopadas dentro de seus sapatos amarelos. Não tinha certeza se o ar que sentia contra seu corpo vinha do cômodo superior secreto ou se era o ar da casa que subia em sua direção. Ouvia um som agudo, quase como um assobio próximo de seus ouvidos, e vinha das centenas, senão milhares, de fendas das telhas e brechas das paredes. Também ouvia um ranger de dentes e de tábuas ainda mais aguçado com cada passo que dava nos degraus encharcados.

Sentia sua blusa suja de terra, lama e lodo colada contra seu tórax, seu abdômen, suas omoplatas e sua medula espinhal. Sentia o peso do gravador de voz preso dentro de um dos bolsos de sua calça, com sua pressão contra a pele de sua cintura fina. Sentia o toque dos fios de seu cabelo longo em seus ombros, em sua nuca, em seu pescoço e em seus seios. Sentia o gosto salgado de suas lágrimas na ponta de sua boca, assim como sentia o gosto doce da água que caía das nuvens diretamente em seus lábios.

Sentia a respiração da casa se misturar com a sua. Com cada passo seguinte, sentia que o ar se tornava mais rarefeito, mesmo com o telhado em completa ruína e a imensidão do céu se misturando com a limitação das nuvens pesadas daquela tempestade escura. Sentia que inspirava e expirava o mesmo carbono de seus pulmões. O mesmo carbono que a casa expirava. O mesmo carbono que o Leviatã expirava.

O sótão mostrava as marcas e cicatrizes da batalha que travou contra o fim dos tempos. Cerâmicas podres e quebradas descansavam seu sono eterno no chão próximo ao que restou de caixotes de madeira desmontados. Água estava por toda parte, nas paredes, nas cadeiras, na janela, responsável pelo consumo principal de todo aquele ambiente. Apesar de manter boa parte de sua estrutura, quase nada sobrou dos pontos mais altos do telhado. Como se a chuva, o tempo, o espaço e o ódio tivessem atirado na cabeça da Residência.

Talvez a própria casa tivesse tentado puxar o gatilho em algum momento, exausta de esperar pela misericórdia de alguém que se importasse com sua dor.

Kaya. Kaya. Kaya.

– Você me chamou. – Sua voz corre rapidamente pelo sótão destruído e foge pelas aberturas de telhas ausentes. Suas palavras são molhadas pela chuva que caía no telhado e em sua cabeça, ambas sem cobertas nem proteções. – Eu estou aqui.

Escuta a resposta da casa e da tempestade ao mesmo tempo. Ambas as fundações, a de madeira e a de carne, quase sucumbiram ao resistir à explosão de som e luz acima de suas cabeças e telhados. Ambas as fundações exaustas de lutar contra os traumas de seus passados. Exaustas de disputar consigo mesmas o peso de suas maldições. O fardo de suas memórias

A mulher que não lembrava nomes. A casa que não lembrava rostos.

Na borda da parede mais próxima à janela daquele sótão escondido e destruído, um grande fragmento de vidro descansava com sua face direcionada à face da mulher em pé. A chapa coberta de lágrimas refletia partes do telhado, partes do céu e partes daquele rosto exausto. Kaya olha para o vidro-espelho e se depara com uma mulher com vestes sujas de poeira e concreto, com seus tecidos molhados e colados à sua pele, bem como seus cabelos castanhos e longos desgrenhados e espaçados em sua testa. A parte ao redor de seus olhos estava funda e inchada, refletindo as lágrimas que desceram de olhos e de nuvens, ambos carregados e pesados.

Ela sorri.

Kaya olhou para o espelho e viu a casa.

Kaya. Kaya. Kaya.

Casa. Casa. Casa.

* * *

"Existe uma relação de confiança absoluta na casa pelas pessoas que nela habitam."

Depois de bater pela terceira vez na lateral metálica do pequeno gravador de voz, a lâmpada verde de seu topo voltou a acender. Kaya sente alívio em seu peito molhado, com roupas encharcadas por uma chuva incessável.

"Elas confiam que toda a maldade do mundo será prevenida pelo interior daquelas paredes. Que elas estarão à salvo enquanto cozinham e satisfazem seus corpos famintos e desnutridos. Que elas estarão à salvo enquanto molham, lavam e limpam seus corpos despidos e expostos. Que elas estarão à salvo enquanto deitam seus corpos cansados e fecham seus olhos exaustos para a escuridão da noite. O habitante confia na proteção de sua casa tal qual um cavaleiro confia na proteção de sua armadura. Ambos acreditam que são extensões de seus corpos e de suas almas. E quando essa armadura falha na proteção de seu cavaleiro, é comparada à quebra de seu código de honra. Um desrespeito ao tratado de confiança pré-estabelecido."

Ela estava abaixo de uma das raras partes ainda cobertas por telhas. Sentada sobre o chão de feixes e tábuas de madeira escura, era capaz de sentir a água invadir a sua privacidade por capilaridade nos tecidos sujos que a cobriam. Sentia frio, mas não sentia medo. Sentia o calor da casa, mesmo que fosse de uma chama metafórica.

"Uma traição."

Ela leva a mão ferida pela janela da cozinha em direção ao chão que estava sentada. O volume da água que se acumulava ao seu redor crescia e, mesmo com apenas alguns milímetros de profundidade, foi capaz de puxar o curativo improvisado de gazes e bandagens em uma pequena correnteza que seguia em direção à escada. Kaya sentiu o beijo gelado da casa sobre sua pele cicatrizada.

"Mas até mesmo essa é uma relação que se configura em reciprocidade, e que seria injusto pensar que não. E quando esse cavaleiro falha no cuidado de sua armadura? Quando a deixa desprotegida da luz e do calor? Quando a deixa ao léu, no frio e na escuridão?"

Eventualmente, deixa o gravador de voz sob suas coxas e permite que sua outra mão brinque com a correnteza de milímetros. Sente a água abraçar as feridas recentemente abertas pelas batidas e socos contra o chão do quarto anterior. Sente a água beijar seus hematomas e lavar seu sangue.

"O que a armadura pensa quando é abandonada por seu cavaleiro?"

Kaya sente a atmosfera acima de si, acima da casa e acima das nuvens pesadas. Ela se pergunta se existia algum lugar para onde as casas eram recompensadas pelos fardos que carregaram ou pelos segredos que esconderam. Ela se pergunta se existia algum lugar para onde as casas iam depois de mortas.

"Apenas consigo imaginar que a casa se vê em relação àqueles que a criaram bem como um recém-nascido se veria quando é rejeitado pelos pais logo após seu nascimento. Apenas consigo imaginar a casa se vendo nua, se vendo vulnerável, se vendo inocente e que, apesar de seus incansáveis esforços, ainda foi abandonada na primeira oportunidade que seus moradores tiveram quando não tinha mais nenhuma necessidade para eles. Quando sua utilidade já não mais satisfazia os seus caprichos. Quando não conseguiu suprir as suas expectativas."

Kaya Novak olha para a Residência Leviatã. A Residência Leviatã olha para Kaya Novak. Ambas abandonadas. Ambas assombradas. Ambas não iriam para lugar algum depois de mortas.

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