Vinte e quatro
Flora e Philip já caminhavam há alguns minutos pelo largo caminho que rodeava a propriedade. Havia certo embaraço inicial, uma vez que ambos tentavam suprimir pensamentos desconfortáveis, aumentados, obviamente, pelo grande esforço feito por Ana e Simon para impedir Jasper de seguir com os planos de acompanhá-los, enviando em seu lugar a jovem que ajudara a princesa pela manhã para lhes fazer companhia. Contudo, ela manteve-se bem à frente do casal, proporcionando uma privacidade não pedida por nenhum deles.
A saída encontrada para aliviar o desconforto do silêncio foi conversar sobre os detalhes do lugar. Comentaram sobre o jardim minunciosamente projetado, da gloriosa construção do prédio principal e Phil terminou relatando histórias sobre a Torre do refúgio, causando grande satisfação em Flora, que se via cada vez mais presa às maravilhas do Reino de Or. Porém, não tardou para que o assunto se extinguisse e eles fossem consumidos novamente por aquela atmosfera carregada de uma tensão desconhecida por eles até então.
Em determinado trecho, um funcionário passou por eles e não escapou do olhar de Flora a maneira cuidadosa e respeitosa com que o homem cumprimentou Philip. Ele inspirava um respeito muito parecido com o que ela estava acostumada a ver em seus súditos, quando estavam diante das figuras mais importantes do Reino. Ela, por sua vez, recebeu apenas um tímido aceno de cabeça, muito diferente da reverência exigida pelo alto cargo herdado por ela, apenas por nascer num berço de ouro.
— Então quer dizer que o senhor é um herói, Philip? — Flora declarou com diversão quando o homem ficou para trás. — Quem diria, em todo esse tempo eu estava sendo protegida por um dos maiores e mais admirados guilbor de Or. É um privilégio e tanto, pelo que me parece.
Philip agitou-se intimamente. Sua mão foi parar no pomo da espada devidamente presa em sua cintura. Sem ousar olhar para a mulher ao seu lado, manteve o passo firme e a cabeça erguida.
— As pessoas tendem a exagerar um pouco. Sou apenas um homem comum cumprindo seu dever — ele respondeu com seriedade.
— Um homem comum? — Flora indagou e encarou Philip. — Não há um que não ouse elevar o senhor a mais alta das posições e não por um título, mas pelo histórico de seus feitos. Durante todo esse tempo eu ouvi coisas incríveis a respeito do grande guilbor de Or.
Phil sorriu e acabou se rendendo ao desejo de girar sua cabeça, encontrado os suaves traços da linda mulher ao seu lado.
— As pessoas gostam de ter essa sensação, de ter um herói perfeito lutando pelos interesses do próximo, porém, eu estou longe de ser perfeito, Flora. A senhorita mesmo presenciou vários de meus defeitos nesses poucos dias que viajamos juntos.
— Claro! — Flora abriu um sorriso encantador e verdadeiro. — Mau humorado, circunspeto, impaciente, implicante, irritante, com grande tendência para atrair confusão e... — Ela levou o dedo indicador até os lábios fazendo um pouco de mistério antes de concluir com graça. — Muito inocente quando se trata de jovens solteiras desesperadas para casar, abaixando a guarda em ambiente hostil. Realmente, senhor Philip, é um homem com muitos defeitos!
— Você se esqueceu de acrescentar teimoso e muito desagradável — Phil disse, sorrindo também. — Bem, a lista é um pouco mais extensa. Só assim poderemos pintar um retrato perfeito do homem imperfeito a quem eles tanto insistem em chamar de herói.
Flora franziu a testa e com um olhar reprovador ousou tocar no braço de Philip.
— Você é um herói, Philip. É um homem íntegro, honroso, fiel, que dá sua vida em amor ao próximo.
Philip interrompeu a caminhada deles. Observou, espantado, a mão da princesa repousada em seu braço, causando-lhe intensa satisfação por sentir a delicadeza de seu toque. Flora, contudo, logo retirou sua mão dali, lembrando-se de não ser prudente tal aproximação.
Em alguns segundos, nosso querido guerreiro e, sim, herói, precisou tomar uma decisão. Sentiu a grande guerra interior dentro de si. Razão e emoção lutando internamente. O desejo de poupar o sofrimento futuro de Flora conflitando com o temor de precisar expor uma história a qual ele mesmo odiava relembrar. A possibilidade de, talvez, mudar o destino dela batalhando contra a humilhação de revelar seu vergonhoso passado.
Algo da natureza do caráter de Philip a ser destacado era que ela não tinha propensão para ser egoísta. Bem, não posso isentá-lo desse mal, porque sim, muitas vezes foi guiado e vencido por ele, principalmente nos dias mais sombrios de seu passado. Porém, depois da grande mudança de sua vida, ele raramente parava para pensar no que ele queria, no que precisava, em suas próprias necessidades. Mas, naquele momento, algo parecido com egoísmo, talvez, possa ter impulsionado sua decisão final. Embora ele fosse esclarecido o suficiente para saber a grande impossibilidade de buscar para si o final feliz de contos de fadas ao lado da mulher que reacendia a chama de seu coração, no mais profundo íntimo de seu ser, ele tinha expectativas de conseguir conquistar a afeição da princesa para si. E para isso, ele precisava abrir os olhos dela.
— As pessoas nem sempre são o que demonstram ser, Flora. Creio que talvez desconheça um pouco da dura realidade do mundo.
— O que você quer dizer com isso? — ela indagou surpresa com a diferença do tom de voz empregado. Ela parecia ainda mais arredio que de costume.
Philip voltou a caminhar e Flora o acompanhou. Ele pensou como iniciar o assunto. Há tempos evitava até mesmo pensar em sua derrota, porém, ele precisava tentar, ainda que colocasse tudo a perder.
— As pessoas sabem parte da minha história apenas. Todas às vezes que mencionam com orgulho sobre minha fidelidade a Queves por ele ter me salvo em campo de batalha, eu me sinto, na verdade, confrontado pelos meus próprios erros e escolhas inadequadas — falou lentamente, fixando seus olhos no horizonte à frente deles.
— Como assim? — Flora indagou confusa. — Não foi uma traição?
— Sim, uma traição. Porém, não isenta minha responsabilidade. Eu era um dos responsáveis pela segurança das tropas. Precisava estar atento e era minha função traçar planos e rotas, prevenir ataques surpresas e pensar nos nossos homens a cada decisão tomada. E, bem, eu era realmente bom nisso. Raramente fomos pegos de surpresa.
Philip podia sentir o estômago se embrulhando.
— Porém, naquele dia, aquele trágico e infeliz dia... — Phil riu debochando de si mesmo. — Eu havia presenciado uma cena que alterou meu humor. O ódio consumiu minha alma, deixei meus sentimentos sobressaírem à minha razão e fui tolo suficiente de permitir o acampamento no local onde as tropas se acomodaram. Um prato cheio para nossos inimigos, à espreita por dias esperando o momento certo para atacar.
— O que você viu?
— Morgana — Phil respondeu e seu rosto se tornou sombrio por um momento.
Se Philip estivesse atento à expressão de Flora, com toda certeza teria notado o espanto e a curiosidade aguçada. Quem era aquela cujo nome nos lábios do guerreiro costumava deixá-lo profundamente afetado?
— Quando meu pai faleceu, eu senti uma amargura profunda consumir meu coração. Eu perdi a razão deixando-me ser consumido pela sensação de abandono e desespero.
Flora apertou os lábios recordando-se da triste história do órfão perdido e pensou em quão difícil deveria ter sido para ele lidar com as perdas em sua vida, compadecendo imediatamente de suas dores.
— Aos poucos deixei meu coração duro se obscurecer um pouco mais a cada dia e piorou ainda mais após a morte de minha mãe. Esqueci, enquanto lutava por Or, dos princípios ensinados pelo nosso rei Chesed e também pelos meus pais. Eu não queria me apegar a nada e consumido pela insatisfação fui uma presa fácil para a perversão. Meu ser foi entregue ao meu coração teimoso a fim de seguir os meus mais vis intentos e desejos. Eu pensei, tolamente, que sabia o que era melhor para mim. Mas, quando vem o orgulho, chega a desgraça. O Orgulho vem antes da destruição e o espírito altivo, antes da queda.
Phil fez uma pausa. Como um guerreiro tão corajoso poderia ser tão covarde para lidar com aquele assunto?
— E minha queda tem um nome, ela se chama Morgana.
— Você falou sobre ela das vezes que esteve inconsciente — Flora ousou dizer quando Phil não prosseguiu com sua fala.
Philip olhou rapidamente para Flora e apertou com força o pomo da espada.
— Temo que ela me assombre para sempre. — Phil manteve a postura rígida. — Contudo, eu fui imprudente, fui presa fácil, mesmo me vangloriando de minhas conquistas e do meu posto. O grande soldado descobriu que a mulher que age como armadilha, cujo coração é uma total cilada e as mãos correntes ardilosas, é mais amarga que a morte.
Ele suspirou precisando lidar com as lembranças.
— Eu a conheci na guarda amarela. Ela não só era linda, como uma guerreira de primeira linha fenomenal. Destacava-se, seja montando, seja manuseando uma espada, ou simplesmente não se deixando diminuir entre os homens. Seu comportamento era exemplar, não havia uma queixa se quer contra ela. Era uma mulher cuja aparência e a postura não podia ser reprovada por ninguém.
Phil mal podia pensar em como um dia considerou aquela o exemplo de mulher que desejaria eternamente ao seu lado. A simples constatação fez um nó se formar em sua garganta. Porém, mesmo que seu intento fosse outro, fosse alertar Flora de seu próprio engano, falar sobre aquilo parecia aliviar de si um fardo há tempos carregado e nunca compartilhado com outra pessoa.
Flora distinguiu, impressionada, como seu coração reagiu àquela revelação. A curiosidade que envolvia o nome daquela misteriosa mulher tornou-se, de modo brusco, repulsa. Sentiu suas entranhas se contraírem e algo completamente novo dominar sua alma.
— Morgana tornou-se, pelo acaso do destino, minha subordinada. Eu havia me destacado naquela época por alguns feitos corajosos e imprudentes de minha parte em minhas missões quase suicidas. Bem, talvez tenha sido isso que atraiu os olhos dela para mim. Fui o escolhido de seus olhos e ela passou a dedicar seu tempo livre para me dar atenção.
Flora sentiu o mal estar aumentar. Suas mãos formigavam e suas emoções estavam inconstantes. Que raios de sentimentos eram aqueles que tiravam sua paz e faziam seus ouvidos desejarem se fechar?
— “Os lábios da mulher estranha destilam favos de mel, e o seu paladar é mais suave do que o azeite. Mas o seu fim é amargoso como o absinto, agudo como a espada de dois gumes. Os seus pés descem para a morte”. Descobri tardiamente o significado desse ensino tão precioso. Meu pai me advertiu diversas vezes sobre essa mulher imoral, de palavras lisonjeiras, cuja conversa é uma cilada profunda, capaz de iludir até um homem exemplar, mas que não dá ouvidos à instrução e se desvia do caminho da retidão.
Philip se esqueceu, por um momento, com quem ele estava falando. Suas palavras, de repente, pareceram assumir um caminho próprio, enquanto ele revelava as profundezas de seu coração.
— Morgana é engenhosa, competente em tudo o que faz. Como um assaltante que espreita sua vítima, cheia de palavras doces, conduziu perfeitamente meus olhos e minha alma para si. E eu fui idiota o bastante para cair, entregando a cruéis alguns anos de minha vida, desperdiçando-os, iludido o bastante para deixar ela me fazer acreditar que me amava e que o coração dela era todo meu. E conduzido por uma cega paixão, deixei o guia da minha mocidade, esqueci-me da minha aliança com meu rei. Fui desencaminhado por uma mulher imoral, inclinei, sem perceber, meu caminho para a morte. Caí em uma armadilha profunda e mortal.
Phil estava extremamente incomodado. Parou por um minuto, mas não ousou olhar para Flora nem mesmo para conferir se ela ainda o ouvia.
— Acontece que eu descobri, tardiamente, que o amor e o coração dela se inclinam de acordo com seus interesses próprios e ele pode, inclusive, pertencer a muitos homens de uma só vez. Não só seu coração...
Phil interrompeu seu discurso. Pouparia Flora de um relato explícito sobre a maneira como Morgana conduzia os homens até a porta de sua casa e os deixava completamente enfeitiçados por seu poder de sedução. Seria imprudente confessar sua fraqueza e era um assunto sobremodo constrangedor. Ele entregara, em uma única noite, sua honra e jurou fidelidade a uma mulher, descobrindo tardiamente que aquela pouco se importava em como arrancaria dos homens seus favores, não tendo nenhum escrúpulo para atingir seus objetivos.
Ele era culpado, claro. Nada justificaria sua conduta ridícula e apressada. Mas Phil tinha um sincero desejo de despojar a mulher a quem um dia entregou seu coração de maneira imprudente e trocou a decência por um momento de prazer passageiro e imperfeito. Não havia desculpas. Morgana o enlaçara exatamente como ela sabia fazer, e sua queda foi facilmente conduzida devido ao seu orgulho e coração ferido.
E só então ele pensou, pela primeira vez, que acabara de deixar claro para Flora a natureza de sua história sombria, de sua conduta infiel, de como perdera sua honra sendo guiado por seu próprio caminho, um caminho que lhe parecia direito, mas, no fim, era um caminho de morte.
— Você pode adicionar isso para sua lista de imperfeições desse falso guilbor — ele declarou sem ousar olhar para ela e, com o coração ferido, virou-se e com passos apressados e duros, distanciou-se de Flora.
A princesa se viu dominada de uma maneira intensa. Havia dentro de si tantos sentimentos controversos que ela sentiu uma dor latejante na cabeça ao tentar compreender tudo. No instinto, olhou para trás a tempo de enxergar a postura de derrota de Philip. Não, ele não era aquele homem que ele tentou denunciar. Ela poderia ser ingênua, mas havia vivido o suficiente para entender que as pessoas poderiam cometer erros, mas se arrepender e mudar a direção novamente, voltar para as veredas da verdade e da vida. Sem pensar, correu em sua direção.
— Phil! — ela chamou. Quando sua voz chegou aos ouvidos os guerreiro, ele parou imediatamente. — Espere, por favor.
Ofegante, ela conseguiu alcança-lo. Encheu o pulmão de ar e novamente sua mão seguiu o caminho até um dos braços de Philip.
— Você pode ser sim, imperfeito, mas não é um falso guilbor. E nada disso mudou a minha admiração por você, e eu acredito que todos à sua volta pensam o mesmo. Não são suas falhas, principalmente as do passado que dirão quem você é hoje. Eu vejo, Philip, vejo a beleza de algo novo que brotou dentro de você — ela confessou tomada por uma coragem que a conduziu para um posterior embaraço.
— Flora — Philip pegou a mão dela e colocou entre as suas, dando um passo para frente, aproximando-se mais. — Você é uma mulher pura, tão cheia de qualidades que eu sequer posso imaginar... — Ele engoliu em seco e fechou os olhos por um momento.
A respiração de ambos estava acelerada. O calor das mãos, unidas, despertou em Phil ainda mais ternura por ela. Flora, por sua vez, nunca havia sido arrebatada por algo tão intenso como foi naquele momento, e ela nem sequer sabia nomear o que era aquele “algo”.
A atmosfera poderia ser perfeita para revelar sentimentos impróprios, porém, Philip já havia caído uma vez no engano de seu coração e sentimentos, por isso, usando a razão, soltou a mão dela e se afastou um pouco.
— É por isso que eu não posso imaginar sua união com o príncipe de Goi.
— Henry? — Flora, então, foi desperta por outro sentimento. — O que tem Henry? Por que você se opõe a nossa união? Não, espere! — Flora deu um passo para trás e suas feições se tornaram duras. — Toda essa conversa... Você quer me fazer acreditar que eu estou errada em entregar meu coração a ele? É isso?
— Flora...
— Não! Não ouse dizer uma só palavra sobre isso! Você não entende! — Flora negou com a cabeça algumas vezes, inconformada. — Sabe para que servem as princesas aqui em Ach, senhor Philip? Bem, nós não podemos reinar, em nenhuma hipótese. Somos meramente objeto de negociações e acordos diplomáticos. Nos tornamos apenas parte de alianças vantajosas, de uniões sólidas. É assim, pelo casamento, que nós fazemos algo pelo nosso reino. E você quer insinuar...
Flora molhou os lábios diversas vezes, indignada por Phil querer, de alguma forma, afetar seus sentimentos. Por um instante passou por sua cabeça a minúscula ideia de que o guerreiro poderia ter algum tipo de sentimento por ela, e essa constatação acabou aplacando um pouco sua ira.
— Conheço Henry desde criança, ele é um homem honrado e fiel. Como eu, ele sempre soube que nosso futuro está determinado e da mesma maneira, nutre por mim carinho, respeito e amor, transformando nosso destino em um desejo mútuo de vivermos uma linda história. Por um presente do acaso, eu posso entregar meu coração sem medo a um homem íntegro e o senhor quer plantar a dúvida em mim? Pois eu não permitirei! Em nenhuma hipótese!
Phil observou, assustado, o comportamento implacável da princesa. Soube, ali, que nada poderia ser feito. Nada que ele dissesse a convenceria e a dura realidade exposta por Flora apenas fez com que toda emoção evaporasse de si. Ela estava certa e não havia nada que ele pudesse fazer para mudar o futuro.
Com uma pequena reverência, ele despediu-se.
— Creio que se sentirá melhor sem minha presença. Não a importunarei mais. — E, não resistindo a seus instintos, completou: — Eu tinha a melhor das intenções, lamento se feri seus sentimentos.
E assim ele partiu certo de que ele continuava um idiota, que deixava-se mais uma vez ser levado por uma mulher.
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