Trinta e um

— Muito bem, alteza — o médico do rei disse após fechar sua maleta. — A senhorita está completamente curada.

Flora cruzou os braços encarando o doutor. Ele estava ciente de que ela não estivera doente por nenhum momento nos últimos dias, embora não fosse de seu conhecimento o real motivo para a invenção de tal doença misteriosa e altamente contagiosa, responsável por isolar a princesa de todo e qualquer contato exterior. Como você, leitor, deve imaginar, uma das características principais para alcançar cargos de confiança da realeza — e aqui não excluímos os de caráter medicinais — era o alto poder de manter-se calado, discreto e evitar perguntas desnecessárias. Mesmo assim, insistiu em fazer uma avaliação minuciosa do quadro de saúde dela e apenas deu-se por satisfeito após ter certeza de que ela estava livre de qualquer infecção.

— Comunicarei a sua majestade da perfeita condição de saúde da princesa — ele se levantou e colocou o chapéu de volta na cabeça —, e farei conhecido entre os funcionários do palácio de que o quadro evoluiu além do esperado e sua alteza está livre para transitar por onde desejar.

Onde desejar... Como se fosse possível alcançar novamente a liberdade estando encarcerada dentro dos muros do palácio.

Disposta a não descontar suas frustrações no homem dedicado, ela encolheu-se por debaixo das cobertas após ele fazer uma pequena mesura e se retirar sendo guiado até a porta por Amelie.

— Dormi quanto tempo? — Flora indagou quando sua leal amiga retornou para o lado de sua cama.

— A tarde toda — Amelie respondeu e unindo as mãos, tentou reprimir a empolgação que viria acompanhada do assunto a seguir. — O que importa agora é concentrarmos nossa atenção a todos os detalhes do seu baile confirmado para o sábado.

Aqui ela não se controlou e deu pulinhos de alegria.

— Ame! — Flora repreendeu a amiga, mas sorriu. — Controle-se!

— Oh, alteza, sinto muito, mas nada nesse mundo poderia me dar mais prazer do que a perspectiva de seu baile. — Amelie sentou na cama e segurou a mão de Flora. — Sabe o quanto isso significa para mim também. Mamãe esperou por esse dia e espero poder contar todos os detalhes a ela.

O sorriso de Flora desapareceu lentamente. Sentiu uma tristeza repentina ao pensar que nenhuma das mães estaria presente naquele momento importante da vida dela.

— Meu pai não deve estar nada feliz com a mudança da data — a princesa desviou o assunto para evitar uma dose de emoção não desejada.

— Com toda certeza não — Amelie afirmou. — Contudo, quando recebemos a carta do senhor Philip, tivemos esperança de seu breve retorno e os preparativos estavam sendo organizados para a data estabelecida.

Flora deu um salto da cama, assustando sua companheira.

— Por mil pastos! Esqueci-me de Philip e Jasper! — Ela não esperou Amelie esboçar alguma reação e caminhou em direção a seu armário. — Eu espero que tenham sido bem recebidos. Com toda confusão que Adrey fez quando nos encontrou, temo que não tenham sido simpáticos com ele. — Ela procurou entre as peças um vestido azul do qual achava que realçava o tom de sua pele, mesmo estando bronzeada. — Poderia enviar um comunicado de que os aguardo para o chá?

Houve um pequeno silêncio. Flora, voltou-se para sua companheira e encontrou nela uma expressão estranha. Com a testa franzida, a princesa aguardou que ela se manifestasse.

— Eles foram embora, já partiram — ela informou e mordeu o lábio inferior.

Flora sentiu o efeito daquelas palavras atingirem-na em cheio.

— Foram embora? — Ela desviou sua atenção das roupas e esperou alguns segundos para processar a informação. — Como assim, partiram? Quando? Como?

Amelie umedeceu os lábios e piscou algumas vezes, percebendo a agitação de Flora.

— Ame, você tem certeza?

— Sim, Adrey e Fergie estiveram aqui enquanto você dormia e me informaram. Eles partiram pouco depois que chegaram.

— Sem se despedir? — Flora indagou e, um tanto frustrada, deixou o corpo cair sobre uma das poltronas do quarto. — Nenhum bilhete? Nada?

— Sinto muito, Flora. — Amelie negou com a cabeça.

O coração de Flora, de alguma maneira, se partiu com a informação. Deveria ter algo errado, não deveria? Eles não partiriam assim, não depois do laço de amizade construído entre eles. Algo deveria estar errado. Sim, Amelie não havia compreendido direito e tudo não passava de um mal entendido.

Flora pulou do assento e passou a caminhar de um lado para o outro no quarto, pensativa. Talvez Phil não tivesse por ela a mesma consideração que ela tinha para com ele. Provavelmente suas atitudes na Torre e dos seus ao receberem-no tenha afastado o guerreiro. Ou talvez ela fosse realmente apenas uma ingênua menina aos olhos dele.

Foi atormentada por esses pensamentos que o seu irmão, príncipe herdeiro do trono, adentrou nos aposentos. A princípio, ela sentiu alívio por vê-lo, mas logo o sentimento foi substituído por apreensão ao observar a expressão não tão amigável em seu rosto.

— Deixe-nos a sós, Amelie — ele ordenou sem desviar o olhar da irmã.

Amelie fez uma mesura e apressou-se para obedecer as ordens.

Flora soube que seria duramente repreendida quando Fergie sentou-se no sofá e apontou para a poltrona onde outrora ela estava sentada, intimando-a a prestar contas. Ela obedeceu, também prontamente.

— Fergie, eu...

Ela interrompeu a fala quando ele ergueu a mão direita. A princesa surpreendeu-se em como seu irmão estava cada vez mais parecido com o pai, aprendendo, inclusive, como intimidar com sua autoridade pessoas em apuros — como ela se encontrava naquele momento.

— Flora, eu não precisaria discorrer o quanto estou decepcionado com você, porque de fato você deve ter uma ideia dos meus sentimentos. — Ele fez uma pequena pausa proposital, disposto a dar mais ênfase à bronca do que realmente demonstrar o que sentia. — Você fugiu, saiu sem avisar, distanciou-se de sua guarda, deixou todos preocupados, além de quebrar inúmeras regras sem sequer considerar o que estava prestes a fazer. Viajou pelo reino sem ponderar sobre o escândalo que seria se descobrissem sua verdadeira identidade, além de se aliar a pessoas desconhecidas, que você não sabia quais eram as reais intenções.

Aqui ela sentiu-se na obrigação de se manifestar.

— Philip e Jasper não são más pessoas, Fer — ela defendeu sem muito pensar. — Pelo contrário, nunca conheci gente mais leal e fiel.

Fergie franziu a testa e sua expressão se abrandou um pouco, embora ele tenha tentando esconder o interesse que aflorou.

— Supondo que conhece tão pouca gente, não me admira que os ache melhor em qualquer coisa, uma vez que se apegou a eles — disse, tentando assim provocar uma abertura na irmã.

Flora mexia as mãos no colo. Estava nervosa, ainda abalada pela partida dos amigos, sentindo a pressão da cobrança do irmão e cheia de incertezas sobre seus sentimentos.

— Não, eles são de fato homens bons. Philip assumiu a responsabilidade por mim, mesmo quando não tinha nenhuma obrigação, antes de saber quem eu era, ainda que assim eu tenha atrapalhado seus planos. — Ela desviou o olhar do irmão e fixou-o num ponto qualquer do quarto. — Protegeu-me, preocupou-se com meu bem estar e foi sempre respeitoso. Tornou-se meu amigo... Bem, ao menos assim espero.

Fergie observou bem a expressão e o modo que a irmã falava. Compreendeu, então, que ela já sabia da partida brusca do guerreiro e notou como fora atingida por tal fato.

— Soube parte da história. Acompanhei metade da conferência com o rei.

Flora ergueu a cabeça de imediato.

— Como nosso pai o tratou? Oh! Temo ter sido duro demais com Philip. Isso justificaria a partida do modo que foi.

Fergie pensou por algum momento até onde deveria informar o que sabia. Poderia magoar ainda mais a irmã, embora tivesse uma leve compreensão das motivações por trás das atitudes do senhor De Baruch. Porém, talvez ele próprio pudesse ter uma breve noção sobre os sentimentos da irmã, uma vez que ela estivesse a parte das palavras do homem antes de partir. E foi a segunda opção que pesou mais em sua escolha.

— Encontrei-o quando partia. Certamente tinha pressa e, ao ser abordado, disse que "não tenho mais nada para fazer por aqui. Cumpri com minha promessa e com meu dever. Devo retornar para Or ainda na próxima hora". Foram essas suas palavras antes de se despedir com uma mesura e sair das minhas vistas.

— Oh!

A mágoa foi nítida em todas as atitudes da princesa. Fergie julgou até mesmo que os olhos dela estavam brilhantes por causa de lágrimas contidas, e se estivesse mais próximo, teria confirmado suas suspeitas. Flora, entretanto, conteve-se como pode e, sentindo o nó em sua garganta, esforçou para que sua voz fosse firme o bastante para parecer inabalada.

— Bem, creio que é isso que fui todo esse tempo para ele. Uma missão. E considero-o ainda mais nobre por ter sido tão diligente em sua função, essa que não lhe era cabível. — Flora ficou de pé e, ignorando a autoridade do irmão, afastou-se sem saber onde ou o que deveria fazer. — Devo começar a me preparar para o Tsalach. Em breve nossos convidados chegarão e eu devo estar pronta para recebê-los.

Fergie continuou em silêncio, observando a agitação da princesa. Flora voltou até onde estava, apoiou as mãos no encosto da poltrona e o encarou, os olhos cheios de sinceridade.

— Perdoe-me por minha atitude egoísta e mal pensada. Eu realmente fui inconsequente em minhas atitudes e sinto muito por ter feito as pessoas que amo sofrerem. Não era a minha intenção, posso dizer, com toda verdade. Contudo — ela suspirou e deu a volta, sentando-se outra vez no lugar anterior, sabendo que poderia confiar em seu irmão —, eu não consigo olhar para esses dias que passaram e sentir realmente por ter vivenciado as aventuras que vivi. Senti-me livre, Fergie. Eu vivenciei coisas realmente incríveis e provei emoções indescritíveis.

Fergie sorriu e inclinou o corpo para frente.

— Mal posso esperar para saber em que tipos de enrascadas você se meteu!

Então, Flora viu a figura autoritária do irmão sumir completamente, dando espaço para o irmão mais velho, cúmplice de suas peraltices. Ela sorriu de volta e entendeu que ele estava ali não somente para reaprendê-la, mas porque queria fazer parte de sua vida, como sempre havia sido.

— Posso contar, se quiser — ela disse num tom brincalhão. — Garanto que não acreditará que a princesa fez certas coisas que não eram apropriadas nem mesmo para pebleias.

Fergie relaxou o corpo e sorriu.

— Tenho bastante tempo livre.

Assim deu-se inicio aos relatos dos dias antecedentes ao retorno de Flora. Inicialmente, falar sobre Philip e Jasper fora levemente doloroso, quando ela associava à partida e palavras dele. Porém, o sentimento logo foi substituído pelo prazer de poder contar sem reservas ao príncipe tudo que sentira em relação ao guerreiro e ao rapaz que o acompanhava. Cuidou de esconder apenas a parte que lhe foi pedida, sobre Or, os refúgios e o nobre trabalho de Philip e de seus companheiros.

Fergie era um ouvinte interessado e observador. Nada lhe passava batido, nem mesmo a maneira quase apaixonada que Flora descrevia os atos e qualidades de Philip De Baruch. Com toda certeza, sua irmã havia experimentado muito mais do que ela realmente assumia ter vivido. Porém, guardou para si, porque sabia que tal constatação não seria aceita por ela de imediato.

Havia se passado mais de uma hora, quando ela terminou de contar com todos os detalhes sua viagem. Houve momentos de risadas, outros de uma divertida repreensão, outras de admiração por parte do Fergie. E quando não havia mais palavras a serem ditas, Flora fez mais uma pergunta cuja resposta ela sabia que seria perturbadora.

— Papai está muito furioso? — ela indagou apreensiva.

— Muito! — ele respondeu e resolveu alertá-la das consequências da aventura que ela tanto apreciara. — Não deseja vê-la e acredito que manterá distância até o baile, quando não poderá fingir os sentimentos negativos para com a filha diante de tanta gente. Creio que até lá ele encontrará outra maneira de puni-la.

Flora mordeu o lábio inferior. Já esperava tal atitude vinda do rei. Porém, ela riu depois.

— Não poderá ser algo muito sério, a não ser que me impeça de casar. Henry em breve será o responsável por minha vida e papai não poderá fazer mais nada sobre isso.

Fergie ergueu as duas sobrancelhas e Flora teria notado sua surpresa se, como convocado pelo nome, uma criada não tivesse batido na porta para avisar, um pouco hesitante:

— Príncipe Henry chegou, altezas.

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