Trinta e sete

Phil se martirizara mais cedo, quando conseguiu descobrir, precisamente, através de funcionários, qual era a janela do quarto da princesa. Envergonhara-se de ter permanecido alguns minutos no jardim observando a sacada que dava diretamente para o local onde ela estava, com esperança de vê-la antes do baile. Sim, agira como um tolo adolescente apaixonado. Mas, naquele momento, ele agradecia internamente pelo ato tão idiota de antes.

Não foi preciso muito para saber, por entre alguns criados, que a princesa havia se retirado do salão muito antes do baile acabar. Conseguira informações privilegiadas, a troco de alguns lechens, que ela havia subido aos seus aposentos um tempo depois dos homens se reunirem. E, embora não pudesse ter certeza de seu palpite, algo o levara a crer que Henry a procuraria no seu dormitório, lugar ideal para um libertino seduzir uma jovem.

Seria impossível entrar no palácio e explicar a todos os guardas que ele seguia rumo ao quarto da princesa porque acreditava que o príncipe de Goi tinha péssimas intenções, se é que ele estava realmente certo em seu palpite. Além do mais, ele sequer saberia seguir pelos corredores até a porta exata onde Flora estava. Sem saídas e com pouco tempo para pensar, agiu de ímpeto e optou por escalar pelas trepadeiras que cresciam na parede até a sacada de acesso ao quarto dela. Tampouco ponderou nos possíveis soldados que poderiam estranhar sua atitude completamente inexplicável.

A isso, devo acrescentar que era costume dos guardas serem mais preguiçosos em dia de bailes. Pode ter alguma coisa a ver com certas comemorações clandestinas regadas a álcool para alegrar a noite daqueles que estavam fazendo suas rondas. Penso que por isso nosso herói não foi pego.

Phil, impulsionado por suas emoções, sentindo o dever o chamar, agarrou-se como pode a cada galho da trepadeira, buscando lugares seguros para seus pés entre as falhas na parede, sem olhar para baixo ou calcular o risco que corria naquele instante.

— Por mil pastos! — murmurou baixinho quando seu pé pisou em falso e foi necessário usar a força do braço para manter-se preso à planta. — Maldita roupa! — reclamou mais uma vez, percebendo como aqueles trajes de gala limitavam seus movimentos.

Respirando fundo, deu um impulso e conseguiu alcançar o parapeito adornado da sacada. Com todo seu esforço, projetou seu corpo para cima e um tempo depois rolava silenciosamente pelo chão, aliviado por ter sucesso em seu plano. Ainda abaixado e em silêncio, avaliou as janelas fechadas do quarto. Podia ver, pelas gretas, que havia luz lá dentro, embora não fosse possível definir nenhuma movimentação. Lentamente, com a mão pronta para desembainhar a espada, aproximou-se da porta, levando o ouvido até a madeira, tentando descobrir se algo anormal acontecia lá dentro.

Seu coração disparou ao ouvir sons abafados vindo do interior do quarto. Avaliou a maçaneta da porta e lentamente a girou, segurando a respiração ao se dar conta de que a fechadura estava destrancada. Teria um problema a menos, pensou.

Lentamente empurrou a porta de modo tão sutil que o ranger da madeira se tornou imperceptível até para o atento guerreiro. Quando se abriu uma fresta suficiente para ver dentro do aposento, foram os ouvidos de Phil que capturam, primeiramente, a cena oculta aos seus olhos.

— Por favor, Henry — Flora murmurava chorosa. — Por favor, não faça isso. Meu pai mudará de ideia, tenho certeza. Não faça isso! Por favor, não se rebaixe... Por favor...

Phil não precisou raciocinar muito para compreender que a princesa estava sofrendo e, muito provável, correndo perigo. Precisava agir depressa, mas também precisava ter cautela, uma vez que ele ainda não estava a par do que de fato acontecia. Decidiu abrir um pouco mais a porta para tentar ter uma visão concreta da situação antes de romper pelo quarto.

— Colabore, Flora — a voz rígida de Henry acendeu a ira de Philip, ainda escondido atrás da porta. — Se você for uma boa menina, será muito melhor para nós dois. Acredite, você aproveitará muito mais se render-se a mim.

Philip ouviu os gemidos da princesa e compreendeu que não havia mais tempo a perder. Projetou sua cabeça para frente de uma maneira que pudesse ter uma visão de todo o quarto e quando seus olhos puderam enfim ver o que acontecia lá dentro, seu corpo reagiu e sua mão puxou a espada com a força de um guerreiro pronto para batalha.

Flora encontrava-se deitada na cama, com o corpo do príncipe de Goi por cima de si. Henry usava uma de suas mãos para segurar os braços da princesa em cima de seu corpo, enquanto suas pernas travavam as da jovem que se esforçava ao máximo para se livrar de seu opressor. Com a mão livre, Henry tentava despir a princesa, que lutava com todas as suas forças contra aquele abuso.

— Largue-a agora mesmo! — Phil ordenou aproximando-se com agilidade, a espada apontada em direção ao príncipe de Goi, sem hesitar em nada. — Que atitude feia para um homem que se diz um cavalheiro!

Henry demorou um pouco para se situar. Não era aquele homem quem ele esperava encontrar ali. De certo, esperava ser interrompido a qualquer momento, embora, por suas contas, deveriam demorar um pouco mais, para dar tempo de consumar seu plano. Porém, percebeu rapidamente, pelo olhar do guerreiro, que ele não estava encenando.

— Philip — Flora exprimiu soltando o ar, o olhar suplicante misturando-se com o alívio de ter sido salva.

Henry, percebendo o reconhecimento da princesa e vendo a espada do homem apontada em sua direção, largou a mulher que, com rapidez e pânico, se afastou, deslizando-se sem jeito até o outro lado da cama. Enquanto Flora se encolhia, ainda em choque com o que acabara de passar, o príncipe ergueu-se do colchão com um sorriso sínico no rosto, tentando parecer alguém descontraído, embora estivesse prestes a cometer um ato tão infame.

— Assim o senhor me ofende — Henry disse erguendo as mãos em rendição. Phil parou há uma distância considerável, embora mantivesse a espada apontada para o príncipe. — Sou um cavalheiro sim, mas como homem, tenho minhas necessidades. E não aconteceria nada aqui que não pudesse ser remediado depois. Eu arcaria com as responsabilidades dos meus atos com prazer, se é que me entende. Coisas que como homem o senhor compreende.

— Não compreendo seu jogo sujo, alteza — Phil respondeu sentindo seu sangue ferver. — Não me colocaria numa situação tão degradante para conseguir o que quero.

— Situação degradante? — Henry riu debochado, olhou em direção a Flora e voltou-se ao guerreiro. — Ora, ela é só uma mulher. E mulheres servem apenas para satisfazer nossa cama.

— Retire o que disse agora mesmo, ou eu o farei engolir as suas palavras! — nosso herói ordenou entre dentes.

Henry logo notou, pela reação do guerreiro, que havia alguma ligação entre ele e a princesa. Percebeu também, pela maneira como Phil manejava a espada, que ele precisava se prevenir. Dando um passo para trás, olhou em direção a Flora que permanecia quase imóvel e cruzou os braços.

— Agora entendi tudo. — Henry gesticulou a mão apontando para a princesa, depois para Phil. — A princesa Flora tem um amante. Quem diria que seria uma mulher tão fácil! Até outro dia estava rastejando aos meus pés e agora encontra-se envolvida com outro homem.

— Não é nada disso — Flora interrompeu chorosa, movida pelo impulso de se justificar, embora isso não fosse necessário.

Philip atentou-se ao desespero contido na voz da princesa. Não podia permitir que ela continuasse a sofrer aflita. Encarou Henry e apenas seu olhar firme foi um aviso.

— Saia daqui agora mesmo! — ordenou com a voz de quem não estava para brincadeiras.

— Para você ficar com toda a diversão? — Henry perguntou retoricamente e num habilidoso movimento, pegou sua espada que se encontrava ao lado da cama, empunhando-a com a desenvoltura de quem sabia combater um inimigo. Não poderia deixar seu plano dar errado tão facilmente. — Não, obrigado.

O gritou de Flora foi o prenúncio da pequena batalha que ocorreu dentro dos aposentos da princesa.

Philip era, sem sombra de dúvidas, um soldado experiente. Manejava sua espada com destreza e dificilmente perdia uma briga. Era conhecido por seus oponentes pela capacidade de manter-se centrado mesmo diante dos piores desafios. Entretanto, como Flora bem sabia, Henry, como príncipe herdeiro, havia sido treinado desde tenra idade, e um de seus passatempos preferido era demonstrar sua habilidade com a espada. Enfrentava os melhores guerreiros de seu reino apenas por diversão, muito embora nunca tivesse se envolvido em um combate com um inimigo real.

O primeiro tintinar das espadas em choque fez o corpo de Flora estremecer. Henry atacara seu adversário com força e eficiência, surpreendendo-se com a pronta defesa de Phil. O guerreiro, por sua vez, contra atacou pela direita, forçando seu oponente a desviar-se para o lado oposto. Por alguns minutos, tudo o que se ouvia era o barulho dos metais unindo-se com violência, além de urros contidos dos homens, esforçando-se para ganhar alguma vantagem durante o duelo. Vez ou outra, o barulho de algum móvel movendo-se do lugar pelo impacto do corpo de um dos espadeiros, ou o som de algum objeto caindo no chão, alertava Flora do mal a porvir.

A situação era tensa. Flora desesperou-se por imaginar o resultado daquele confronto. Não tinha certeza de que os dois sairiam ilesos daquela briga. E quando a lâmina afiada de Henry cortou o braço esquerdo de Philip em uma investida dura, temeu o que aconteceria com seu herói. Por mil pastos! Ela não poderia permitir que algo pior acontecesse a Phil! Interveria, se necessário, e sacrificaria sua vida para sempre para poupar a vida do homem a quem sua alma passara a apreciar.

O suor escorria da face de Phil. A dor era visível em seu rosto. O corte havia sido bem mais profundo do que apenas um raspão. E, para piorar, aqueles trajes atrapalhavam toda sua mobilidade, dificultando ainda mais sua atuação. Contudo, ele não desistiria tão facilmente. Não permitiria que a honra de princesa fosse violada de maneira tão violenta. Sentindo uma força nova surgir, a adrenalina correndo em suas veias, resolveu atacar Henry no ponto em que ele demonstrava mais fraqueza. Sabendo que abaixaria a guarda, mas disposto a arriscar tudo por uma cartada final, Philip instigou Henry até que as espadas de ambos estivessem unidas, a força do braço de cada um mantendo-as presa uma na outra. Assim, o nosso guerreiro, com sua desenvoltura, forçou as espadas para o alto, desunindo-as e, em uma volta completa, deu uma rasteira no príncipe de Goi que caiu ao chão completamente desarmado.

Henry sentiu a ponta da espada de Philip pressionando sua garganta. Sabia que havia perdido a batalha. Ergueu as mãos para o alto, em sinal de rendição. A situação era diferente naquele momento. O seu oponente não era um de seus soldados, pronto para deixar seu príncipe ileso caso saísse vitorioso. Sabia que sua vida corria perigo e, pela expressão de fúria do adversário, entendeu que seria mais sensato render-se.

— Você venceu! — ele declarou puxando o ar lentamente.

— Tenho sua vida em minhas mãos, príncipe de Goi — Phil exprimiu sentindo o prazer de colocar o nobre em seu lugar. — Então, escute bem o que você fará se quiser sair vivo e ileso daqui.

Phil moveu-se, chutou a espada de Henry para longe e depois se abaixou, mantendo a sua espada encostada na pele do rapaz. Puxou-o pelas vestes até colocá-lo sentado. Encarando-o de perto, deixou claro de que não estava para brincadeira.

— O senhor sumirá da minha frente e de perto da princesa. Sumirá desse castelo e da vida dela. Sairá daqui em silêncio e voltará para seu reino. Achará outra maneira de conseguir seus objetivos, mas não será colocando suas mãos na princesa de Ach.

Henry engoliu em seco ao se dar conta de que, provavelmente, ele se referia a seu plano de tomar o trono. Quem era aquele homem e como ele tinha informações privilegiadas?

— E saiba mais, eu moverei terra e céus e todo o exercito de Or, se necessário, para ir atrás de você, caso descumpra qualquer ordem e se aproxime da Flora novamente. Estamos entendidos? — indagou pressionando a lâmina de sua espada um pouco mais, de modo que Henry sentiu o início de uma perfuração em sua pele.

— Sim, estamos entendidos — ele respondeu forçando-se para manter a calma.

Phil esperou um pouco mais que o efeito de sua espada desse o recado necessário, para depois puxar o engomadinho pelo colarinho de sua roupa e o colocar de pé. Fez questão de acompanhá-lo até a porta, observando-o partir depressa pelo corredor vazio.

A respiração de Philip estava ofegante. Sentiu a dor latejante em seu braço, mas mal teve tempo de pensar em sua ferida. Flora já corria em sua direção, descabelada, com o vestido amarrotado.

— Você está ferido! — ela exclamou preocupada. — Deixe-me ver, por favor.

Sem dizer nada, ele permitiu que ela o ajudasse a retirar a pesada capa e o casaco de sua veste de gala. A ardência era grande e ele sentia o sangue escorrer por entre o tecido de sua roupa. Quando o corte ficou visível, não estava nada bonito.

— Precisamos estancar isso — ela disse, completamente nervosa, correndo até seu quarto de vestir atrás de toalhas e panos que pudesse usar para fazer uma compressa.

Quando retornou, ele estava sentado em uma das poltronas, os olhos fixos no pergaminho enviado pelo rei de Or, em cima de uma das mesas. Flora percebeu a direção do olhar dele, mas estava preocupada demais com a condição do corte para falar sobre aquilo. Ajoelhou-se em frente a ele e passou a limpar a ferida como podia.

— Você poderia ter morrido, Philip! Por todas as águas do grande rio, eu não suportaria...

— Não permitiria que ele fizesse algo contra você — ele respondeu em meio a uma careta de dor. — E estava tudo sobre controle — tentou completar para deixá-la menos tensa.

Phil observou o cuidado de Flora com seu braço. Após uma rápida limpeza, ela amarrou uma tira de tecido de maneira que manteria o corte pressionado e estancaria o sangue até ele ir à enfermaria do palácio. Contudo, sua aflição era tão grande, que ela passou a tremer todo o corpo.

— Você está bem? — Phil questionou ao ver as mãos dela vacilarem. — Você está ferida, Flora?

Sem ser capaz de responder, a princesa caiu em um pranto profundo. Phil, vendo o estado sensível da mulher a sua frente, não pode fazer outra coisa além de tomá-la nos braços e acolhê-la, tentando passar alguma segurança. Seu coração sentiu mais do que seu braço naquele instante e sem ponderar em seus atos, acariciou os cabelos dela tentando confortá-la.

— Está tudo bem agora, querida. Você está segura, nada acontecerá.

Aos poucos o choro foi diminuindo. Flora foi acalentada por seu herói e, quando enfim o choro cessou por completo e ela fez menção de se afastar dos braços de Philip, uma voz grossa e autoritária ressoou atrás de si, alertando-a de que o cenário de tensão estava longe de terminar.

— Mas que pouca vergonha é essa aqui?

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