Trinta e quatro
Flora aguardava atrás de duas pesadas portas de madeira que seu nome fosse anunciado no salão principal para que ela pudesse, enfim, ser apresentada ao Reino. Era a data exata de seu 21º aniversário e ela não apenas assumiria oficialmente o título de Princesa, como também estava deixando de ser menina para se tornar uma mulher pronta para ser entregue aos cuidados de um noivo a quem deveria responder como marido em pouco tempo.
Não é necessário que eu esclareça ao leitor o conjecturado plano de unir ainda mais os dois Reinos, Goi e Ach, através do esperado casamento entre o príncipe e a princesa das respectivas nações. Nossa heroína também estava a par disso e tentava, a todo custo, ser forte e aceitar o futuro que outrora ela tanto fantasiou.
Entretanto, ali, com o destino parecendo gritar em seus ouvidos sobre um amanhã incerto, sentiu uma onda de desespero a consumindo. Não compreendia o motivo de se sentir assim. Sim, havia a mudança brusca de seus sentimentos, convertendo suas emoções no sentido de certo guerreiro cujo altruísmo fez-se notável para ela, principalmente depois de retornar a convivência com Henry, tão oposto a ele em praticamente tudo.
Henry! Um de seus maiores sonhos passados tornou-se um de seus maiores problemas atuais. Não parava de pensar em como o destino pregara uma peça, transformando seu conto de fadas em uma história de terror, exatamente como vivenciara sua mãe. Seria entregue e levada a um lugar desconhecido que agora lhe provocava angústia.
Não entendia como tudo havia mudado tão inesperadamente. Naquilo que antes ela via cor, felicidade e satisfação, se tornou então algo repugnante a seus olhos. E não era apenas a perspectiva de ser esposa de Henry. Parecia que sua alma havia sido deslocada a outra dimensão e ela podia então enxergar tudo com uma nova ótica. E nesse novo prisma, via-se adicionada a um lugar ao qual não pertencia. Não a Goi, não a Ach, não àquele palácio, àquelas festas, àquele arco-íris encantado que ofertava tesouros que não tinham mais cor, nem brilho, nem valor.
Mas ela não podia fazer nada. Por mais que desejasse fugir, mudar a curva de sua vida, ela não tinha esse poder nas mãos.
— Alteza? — um de seus guardas a chamou, um pouco assustado. Só então Flora percebeu que havia lágrimas escapando de seus olhos. — A senhorita está bem?
A princesa ergueu a cabeça e secou a face molhada.
— Estou pronta — declarou sabendo o que precisava ser feito e pronta para se sacrificar.
O homem, imaginando que aquele fosse apenas um dos ataques comuns que sobrevinham a mulheres perturbadas emocionalmente ante ao que estava prestes a acontecer, providenciou que as portas fossem abertas. Trombetas ressoaram, o barulho da festa foi substituído pelo silêncio respeitoso, mas recheado de expectativas por parte de todos os presentes prestes a conhecer a jovem e bela filha do soberano do reino. O nome de Flora foi anunciando pelo mestre de cerimônias e ela forçou um sorriso, adiantando os passos até a parte mais alta da escada que dava acesso ao grande salão.
Se o leitor tivesse tido a oportunidade de estar entre os convidados do baile, nada notaria no semblante da princesa que denunciasse sua aflição. Veria, como os demais, a figura de uma bela mulher de estatura mediana, cujo cabelo negro estava parcialmente preso, com mexas soltas escapulindo de uma deslumbrante tiara cravejada de brilhantes. O vestido vinho era adornado por pedrinhas preciosas no corpete de um tom um pouco mais escuro, a saia rodada e levemente armada era digna de vestir uma princesa. Assim como boa parte dos presentes, admiraria a beleza estonteante da mulher, sabiamente valorizada pelos responsáveis em cuidar da aparência da jovem, ou invejaria a posição em que ela se encontrava, atraindo boa parte dos olhares masculinos para si.
Mas apenas Flora tinha conhecimento do pavor que lhe acometera, escondido atrás de seu sorriso, principalmente quando visualizou a figura do príncipe de Goi subindo as escadas em sua direção. Precisando disfarçar sua inquietação e até mesmo insatisfação com a atitude inusitada de Henry, ela sorriu discretamente diante do beijo que ele deixou em sua mão.
— Está simplesmente maravilhosa, Flora. Deixou-me sem ar por um momento — ele declarou com sinceridade, já que realmente estava deslumbrado com a beleza da mulher a quem ele imaginava ter em breve espaço de tempo em seus braços.
— Henry — Flora advertiu delicadamente, puxando sua mão e olhando o magnífico salão rapidamente. Ainda não tinha se dado conta da quantidade de pessoas com os pescoços erguidos espiando sua tão esperada aparição. — Você não deveria...
— Sei que não, minha querida — ele se desculpou. — Contudo, todos imaginam que em breve seu pai anuncie nosso noivado. Não acredito ter escandalizado, ou mesmo impressionado, ninguém.
Flora observou o sorriso no rosto do rapaz. Ele era realmente muito bonito, principalmente vestido com trajes reais de festa que valorizavam ainda mais seus dotes físicos. Contudo, ela só conseguia ficar enojada com si mesma por ter depositado seu amor numa farsa, preocupada com o exterior e com suas fantasias sobre um príncipe encantado aparentando perfeição.
Henry estendeu o braço e antes que ela pudesse pensar como responder àquele gesto, ele segurou a mão dela e repousou na curva do seu braço. Os dois desceram as escadas lentamente. O pavor começou a se tornar raiva pela atitude invasiva e imprudente do príncipe, e justamente por todos os olhos estarem no casal é que ela não podia fazer nada além de fingir tudo estar sob o mais completo controle.
Enquanto descia, Flora conseguiu ter um vislumbre maior dos convidados. Viu o pai, no palanque dedicado a ele com um sorriso orgulhoso. Apesar de tudo, sentiu certa emoção. Não havia tido nenhum contato com o rei desde seu retorno e apenas o vira de longe, da sacada de seu quarto, quando ele fazia a sua habitual caminhada matinal indicada pelo médico para melhorar sua condição física. Viu também Fergie logo no fim da escada, a postura ereta e intimadora, tão insatisfeito quanto ela com a atitude de Henry. A cada degrau seus olhos passeavam pelo local e assim ela encontrou outros rostos desconhecidos no meio da multidão. Estavam ali conselheiros do rei, nobres de Ach, Koachs dos Reinos aliados, homens e mulheres bem vestidos não escondendo a satisfação por fazer parte de um baile tão importante como aquele, quando apenas convidados de honra tinham a oportunidade de participar.
Ao findar do lance de degraus, Fergie veio no auxílio dela e apenas com um olhar repreensivo, retirou a irmã dos braços do atrevido príncipe, levando-a consigo para a pista central do salão, onde, tradicionalmente ela abriria o baile com a dança de apresentação. Deveria dançar com o pai, contudo, era de conhecimento do reino as limitações físicas do rei — limitações essas que apenas apareciam quando ele queria fugir de algum compromisso indesejado, como danças e reuniões com plebeus —, sendo deixado a cargo do príncipe herdeiro a honra de conduzir a jovem princesa ao som da música tocada pela orquestra real.
— Você se tornou uma linda mulher — Fergie disse após se curvar em uma reverência e se posicionar para a valsa. — E não apenas exteriormente. Estou orgulhoso, muito orgulhoso.
Flora sorriu verdadeiramente pela primeira vez quando olhou dentro dos olhos do irmão e aquele pequeno gesto a livrou de uma grande carga de tensão em suas costas.
— E você também não é um príncipe de se jogar fora — replicou repousando uma mão no ombro dele. — Sentirei sua falta quando as coisas não forem mais as mesmas.
Fergie endureceu o olhar e segurou na cintura dela.
— Acharemos uma solução, Flora. Não permitirei que se case com aquele... Não deixarei que papai aprove. Aquele idiota que teve a audácia de expor você daquela maneira subindo as escadas à vista de todos. — Fergie bufou impaciente. — Nem que seja necessário declarar guerra com Goi, eu não vou...
— Fergie — Flora murmurou num fio de voz e suspirou, fechando os olhos.
— Tudo bem, esse não é o momento para isso. Mas, ouça bem, Flora — ele declarou e esperou que ela o encarasse para dizer com segurança. — Você não se casará com Henry.
Ela queria ser forte e dizer que iria cumprir seu dever, que se casaria ou até mesmo tentar mentir e iludir o irmão sobre isso, mas foi incapaz. Na verdade, ela queria acreditar nas palavras de Fergie e de todo o seu coração desejou que houvesse uma solução para si.
— Agora, aproveite seu baile. É o seu Tsalach! O dia é todo seu, precisamos comemorar — ele aconselhou fazendo-a sorrir. — Deixe os problemas nas mãos de seu irmão mais velho.
Sem mais palavras, os dois dançaram em sintonia. Flora relutou um pouco no início, mas logo relaxou e passou a se divertir com Fergie. Ele tinha razão. Ela não poderia fugir do baile, então, melhor que tentasse ao menos torná-lo agradável. Poderia começar pondo em prática sua resolução de tentar ser mais do que apenas a princesa cuja existência era fazer um bom casamento político, e buscar entrar no mundo real para tentar fazer alguma coisa por seu povo. E para isso, as pessoas precisavam aceitá-la. Não sabia o que o futuro a reservava, mas faria do presente uma oportunidade.
Quando a dança terminou Flora estava se sentindo mais leve. Foi conduzida pelo irmão até o local onde passaria a receber os convidados. Uma fila se formou e não havia um que não desejasse ver mais de perto a linda mulher e poder trocar algumas palavras, quem sabe conseguir algo a seu favor, ou até mesmo poder se vangloriar a seus conhecidos por conhecer a princesa de Ach em sua primeira aparição pública.
— Sr. e Sra. Otsem, senhores das maiores terras de Ach.
— Sr. Lamad, estudioso do clima e mestre de Goi.
— Sua alteza real, princesa Kira do reino de Peri.
Pouco a pouco Flora era apresentada a pessoas que até então ela conhecia apenas pelo nome. Passou a achar divertido associar os nomes aos rostos e conseguiu manter conversas que julgou importante. Sentiu-se, particularmente, muito atraída pela conversa sábia de um ancião de Ach, lamentando não disponibilizar mais tempo para ouvir sobre alguns dos mais distantes vilarejos do reino e suas aventuras quando capitão da guarda real. Mas, de todas as conversações travadas, aquela que ela mais desejou ter tido mais tempo foi com o Dr. Azar, médico que encontrou na princesa uma ouvinte atenta e interessada sobre os últimos avanços na área medicinal.
Flora observava o homem se retirar entre a multidão, pensando em conseguir uma maneira de encontrá-lo novamente mais tarde, quando ouviu a apresentação que a fez gelar por inteiro.
— Don Phillip de Baruch, representante legal de sua majestade rei Chesed e irmão da princesa Katherine de Chanun, do Reino de Or.
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