Treze
Flora estava bastante ciente dos aborrecimentos causados por ela quando partiram da cidade uma hora mais tarde. Entretanto, era para si desconhecido o verdadeiro motivo de Philip apresentar-se circunspecto e distante durante o trajeto.
Embora ela tenha considerado a possibilidade, não, não era porque Philip precisou desembolsar alguns léchem a mais, além dos vinte cobrados pelo padeiro, e ainda ter de usar toda a lábia e humildade necessária para se desculpar com o homem diante do comportamento incomum de Flora. Nem tampouco o fato de ter se colocado em risco para defender sua virtude, mesmo a princesa tendo sido tão irresponsável ao adentrar numa taverna cheia de Acher — e devemos considerar o agravante dela ter rebaixado Philip à mesma condição daquele povo de duvidosa dignidade por serem, um e outros, guers, estrangeiros de outros Reinos.
Philip estava, na verdade, absorvido por suas resoluções.
A princípio, o fato de que a misteriosa identidade e aparência da princesa apenas se fazia conhecida pelo tão divulgado nome Flora — que inclusive foi constantemente adotado por centenas de mães patriotas, dando à suas filhas o aclamado nome real da segunda herdeira do trono de Ach —, e através de uma pintura reproduzida por diversos artistas de todo o Reino, da menina ainda criança ao lado de toda a família real antes da morte da rainha, o deixou mais confortável em levá-la com eles em sua jornada. Contudo, não esperava que a princesa se metesse em tantas confusões. Dado às constantes e inevitáveis interferências dele em favor de Flora, a situação tornou-se consideravelmente complexa.
Estava ciente de ter tido um pouco de dificuldade para apresentar explicações à senhora McLee sobre Flora, e estava quase certo de que ela imaginou se tratar de uma possível pretendente do cavaleiro. Contudo, esse era o menor de seus problemas. Aquela família era querida e discreta, coisa que ele não foi ao dizer em alto e bom som que Flora era sua propriedade. Por pouco ela não ocupou o cargo de uma reconhecida esposa, e sua atitude de responsabilidade por ela diante do padeiro o elevavam à posição de guardião íntimo da moça. Isso para não mencionar o tempo decorrido na companhia um do outro naquelas estradas, cruzando com outros viajantes curiosos.
O fato é que a princesa em breve teria seu baile de Tsalach, lembrança que fazia as entranhas de Phil se contorcer, e todos tomariam conhecimento da fisionomia dela, inclusive, era esperado que artistas de todo o Reino reproduzissem a jovem em suas vestes festivas e saíssem pelas cidades e vilarejos para expor — e se gabar — a sensibilidade de suas pinturas. O assunto seria comentado por toda a região. E se, porventura, alguém reconhecesse a menina, sobre a guarda de dois homens que não faziam parte da guarda real, viajando sozinhos pelas estradas do Reino e deixando sua presença registrada e muito bem notada em cada cidade ou povoado?
Não, isso não poderia nem deveria acontecer. Philip estava colocando em risco a reputação de uma nobre, e não qualquer nobre de Ach. O cavaleiro suspirou tendo, enfim, acordado para a grande enrascada na qual havia ele mesmo se colocado. O pior é que ele não conseguia se arrepender e mais tarde até riria ao se lembrar das realizações de Flora. Porém, ele estava certo, não deveria arriscar ainda mais colocar a imagem da princesa em jogo e junto atar seu pescoço e — ou — liberdade.
— O senhor ainda está muito bravo comigo? — Flora interrompeu os pensamentos do homem, a voz demonstrando remorso e constrangimento.
— O que? — Phil, assustado com o questionamento, endireitou a postura e a encarou ainda sério, de cima de seu cavalo. — Eu não estou bravo com a senhorita.
— Ah... — ela murmurou e segurou as rédeas de sua montaria, ainda evitando o olhar condenador de Philip.
— É verdade, eu não fiquei bravo com suas... — Ele fez um gesto com a mão no ar, procurando uma palavra adequada e a pausa atraiu os olhos de Flora.
— Ousadas façanhas? — ela tentou ajudar e quando viu a feição dura do cavaleiro suavizar e um quase sorriso se formar no canto da boca, relaxou e num instante esqueceu todo o silêncio presente entre eles no caminho até ali. — O senhor deve estar pensando que eu sou uma tonta devido à minha habilidade em me meter em confusões.
Phil também relaxou e toda a tensão se dissipou ao contemplar o sorriso iluminado no rosto juvenil dela. Compadeceu-se da princesa, compreendendo sua falta de experiência com o mundo exterior.
— Nunca pensei desse modo. Não a acho uma tonta e não fiquei bravo com a senhorita. Estou apenas preocupado. — Resoluto, resolveu mudar de assunto. — O caminho adiante é perigoso e devido ao atraso, precisaremos dormir na floresta soturna para evitarmos o contato com as mariposas da noite.
Os olhos de Flora acenderam diante da perspectiva de mais aventuras. Jasper, que um pouco distante acompanhava o diálogo dos dois, sentiu-se impelido a entrar no assunto.
— Garanto que o encontro com uma dessas criaturas não é nenhum pouco agradável — Jasper disse e não segurou a risada. Phil também o acompanhou, recordando-se de dias distantes.
— Jasper tem grande conhecimento da causa. Ele teve o enorme desprazer de se deparar com algumas delas em nossa primeira viagem juntos — Phil contou tendo uma espectadora bem interessada no caso.
— O que elas fazem? — Flora indagou.
— São animais voadores, extremamente ágeis, mais ou menos desse tamanho — Phil indicou com as mãos uma distância de aproximados dez centímetros. — E o ferrão é...
— Excessivamente doloroso! — Jasper concluiu um pouco afetado, provocando a risadas de todos. — Nem as grossas agulhas de minha mãe poderiam se comparar àqueles ferrões. Desde então, mantenho uma distância segura de qualquer bicho voador.
A princesa logo passou a projetar em sua mente a imagem de seres terríveis e tentou imaginar a sensação de Jasper diante do temível encontro com um desses seres.
— Mas não é apenas a ferroada o pior dos problemas de quem é atingido por uma mariposa da noite — Phil continuou com a explicação. — O veneno provoca uma reação alérgica de grandes proporções, causando uma coceira aguda que demora a cessar.
— Raiz de fulvo — Flora disse sem pensar. Phil e Jasper a encararam, confusos. — É excelente para reações alérgicas, cessa a coceira. Pode ser administrado como um chá, ou aplicar a pasta no local afetado.
— Phil, precisamos tomar nota de todos os conhecimentos curandeiros da princesa! — Jasper, admirado, exclamou. — Teria sofrido bem menos se tivesse tomado esse chá. E eu garanto, eu sofri muito.
Phil espiou Flora e sorriu.
— Sim, ela foi muito útil ao me auxiliar depois de ser atingido pela chuva ácida da tempestade do norte. Creio que ainda não fui grato o suficiente por sua bondade.
Embora o agradável comentário tenha surtido um efeito positivo e um tanto quanto impetuosos na alma da jovem, ela tentou transparecer naturalidade, dando de ombros antes de encarar fixamente os olhos de Philip.
— O senhor fez muito mais por mim nesses últimos dias, Sr. Philip. Eu quem devo minha gratidão.
— Philip — ele disse e o próprio se surpreendeu com sua ousadia. Flora, espantada, sustentou o olhar esperando ele explicar suas intenções ao oferecer àquela liberdade. Ciente da complexidade dita, ele sorriu tentando parecer descontraído. — Creio que depois de salvar a senhorita algumas vezes, receber cuidados médicos de sua parte, alimentá-la, pagar por suas despesas, resolver seus problemas e ainda sim mantermos algum nível de conversa sadia como bons companheiros de viagem, nada mais esperado que me trate apenas pelo primeiro nome, como já fez algumas vezes. Não é preciso tanta formalidade no tratamento durante nossa jornada. Aceitável, inclusive, uma vez que não a tratamos pelo seu título, princesa.
— Convincente seus argumentos — Flora deu uma pausa proposital —, Philip.
—E logo, logo a senhorita estará chamando-o de Phil — Jasper não pode deixar de acrescentar.
— Na verdade, sinta-se a vontade para me chamar como desejar, Flora — Phil disse, acrescentando um pouco de ênfase no nome dela.
A princesa pensou um pouco e quando as engrenagens de sua mente trabalharam ativamente, ficou óbvio a todos que ela estava planejando algo muito mais divertido do que Phil.
— Sim, senhor, destemido cavaleiro.
A pequena brincadeira desencadeou uma conversa satisfatória entre eles, quando os laços de amizade aos poucos foram sendo tecidos, entrelaçando de uma maneira misteriosa aquele inusitado trio. Jasper foi quem começou a relatar alguns pequenos feitos de Philip, tomando cuidado para cumprir um antigo pedido do mestre para não revelar alguns de seus atos mais nobres, entre eles, o que lhe garantiu o título de Guibor.
Nosso herói, por sua vez, conhecendo o demonstrado interesse de Flora por conhecimento, não perdeu tempo em guiar a conversa até as histórias da Guerra de Qualah. Contou, sob o olhar atento e curioso da princesa, os grandes feitos dos Reinos, quando se uniram contra Acher, ao se recusar aceitar o acordo de paz, ocasião em que fora assinado o Tratado de Berit, que garantia a paz entre os três reinos divididos, Or, Ach e Goi, e o livre acesso de seus cidadãos.
Flora estava fascinada por ouvir, através das lentes de outro povo, as histórias que tanto amava. Desde criança, passou horas e horas sendo ensinada sobre a importância do passado dos três Reinos aliados e a constante vigilância contra o murado Reino de Acher, sempre disposto a dificultar qualquer transação necessária pela paz e crescimento dos quatro Reinos de Chail.
Phil narrava muitas das batalhas com uma riqueza de detalhes que impressionava a princesa. Ele parecia ter vivenciado cada uma, ainda que isso fosse naturalmente impossível, dado a idade dele e as épocas mencionadas. Desperta pela curiosidade, ela avaliou cuidadosamente o rosto do cavaleiro, tentando imaginar a idade exata dele. Bem, não sabia se a postura de guerreiro atribuía a ele mais anos do que realmente tinha, contudo, ele parecia mais velho do que Fergie, nos seus vinte e seis anos. E também não se assemelhava muito ao príncipe Henry, um ano mais velho do que o seu irmão. E, em suas indagações, por pouco não chegara à idade exata de nosso herói, em seus vinte e nove anos de uma agitada vida, carregada de incríveis, e às vezes tristes, acontecimentos.
Embora Phil não soubesse exatamente onde estavam os pensamentos de Flora, as conversas interessantes surtiram o efeito esperado e a princesa pouco questionou sobre as informações colhidas por ele na cidade, durante suas investigações. É claro que o encontro na taverna fez os assuntos perderem um pouco a urgência de serem notificados, e, se tudo desse certo, só relataria as boas notícias quando estivessem assentados diante da lareira da cabana na entrada da floresta soturna.
Seria lá, inclusive, que traçaria os novos planos de viagem com Jasper, decidido a evitar o máximo possível às cidades e vilarejos mudando um pouco a rota, e trocando o repouso merecido que seria feito em conhecida hospedarias, para outras opções que os mantivessem o máximo possível distante de pessoas, como a cabana onde passariam aquela noite.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top