Seis

Um escândalo! Sim, assim seria aludido o espantoso sumiço e retorno da princesa se um telegrama denunciasse seu paradeiro e acabasse em mãos erradas. Ah, se soubessem das circunstâncias de seu desaparecimento tudo seria ainda mais vergonhoso para seu velho pai.

Não, não poderia permitir algo assim.

Relutante, admitiu que estava a mercê da boa vontade daqueles homens, aparentemente decentes cavalheiros, segundo sua intuição — e lembramos aqui que até então ela não tinha tido sucesso em diferenciar um cavalheiro de um malfeitor. Pobre menina! — Precisaria contar a verdade e suplicar para que aceitassem sua companhia até que pudesse ser entregue em segurança nos portões do palácio. Lá ela se humilharia perante os pés do rei e tentaria de alguma maneira explicar tudo. Para isso contava também com a astúcia de Amelie, sua melhor amiga e cúmplice em sua pequena façanha.

— Senhor, preciso pedir que reconsidere isso — Flora suplicou com delicadeza. Fazia um enorme esforço para não parecer afetada com os arranjos do homem.

— A única maneira de eu cogitar essa possibilidade, é a senhorita revelando exatamente quem é e o porquê de estar sendo perseguida na ocasião de nosso encontro.

— Ora, senhorita! Que mal haveria nisso? — Jasper adiantou um passo e encarou os olhos da jovem um pouco assustada. — Somos guer, é verdade, mas também homens honestos e de boa reputação, não desejamos fazer o mal. Asseguro que pode confiar seus segredos ao nosso cuidado.

— A não ser que esteja intimamente envolvida em algum escândalo, não vejo motivações para se esconder, uma vez que estamos prontos para cumprir com o nosso dever diante de uma dama em apuros — Philip continuou sem desviar o olhar da expressão de Flora.

Flora mordeu o interior da boca desesperada por encontrar uma saída. De alguma maneira ela sabia que eles estavam certos e, talvez, não houvesse nenhum mal em confessar a verdade. Por outro lado, ela ainda estava submissa às ordenanças do rei, cuja orientação era que ela escondesse sua identidade até o baile.

Philip viu que a garota estava prestes a ceder. A colher movimentava a sopa já fria e quase era possível enxergar a dança da indecisão brincando na cabeça da jovem.

— A senhorita não acreditaria nas histórias que vivenciamos em nossas viagens. Já vimos de tudo um pouco. Então, de verdade, não nos surpreenderíamos com o relato de suas realizações. — Jasper deu uma risadinha divertida, recordando-se das muitas aventuras ao lado de Phil e declarou com entusiasmo. — Só me surpreenderia de verdade se você se revelasse uma princesa.

Flora deixou o prato desiquilibrar e cair quando levantou a cabeça bruscamente para encarar o jovem. A boca entreaberta e os olhos arregalados foram muito bem interpretados por Philip, mas não apercebidos por Jasper que ria de sua piada tão pontual. Então, quando o silêncio se instaurou, o jovem, notando a tensão no ar, encarou Flora ainda em estado de choque.

— Espera, a senhorita é uma princesa? — ele indagou surpreendido.

Flora puxou o ar com força inflando os pulmões, ainda de boca aberta e no instinto voltou seus olhos para o chão.

— Não sei do que está falando, senhor — ela respondeu sem muito segurança.

— Já lhe disseram que a senhorita mente muito mal? — Philip questionou retoricamente. Ela não ousou levantar os olhos, dando sua atenção para o prato de sopa no chão.

— Espera! A senhorita é a princesa misteriosa do Reino? Oh, céus! Eu estou diante da princesa! — Jasper não conteve sua animação e como mandava o protocolo, ou como ele imaginava que deveria mandar, ele se ajoelhou de frente a ela, retirou a espada e a colocou no peito, inclinando sua cabeça. — Sou seu servo, alteza.

Philip observava a cena, atônito. Contudo, Flora gostou do gesto gentil e decidiu, em seu coração, que se afeiçoaria a Jasper. E, talvez por isso, ela tenha decidido não esconder a verdade. Deixou a sopa no chão, levantou-se e, com uma reverência, segurando a saia, apresentou-se da maneira devida.

— Princesa Flora Jasmim, do Reino de Ach. É um prazer conhecê-los, cavalheiros. — Ergueu a cabeça e encarou Philip tentando soar um pouco mais autoritária. — Eu estou longe de casa e preciso retornar a tempo para o meu Tsalach daqui a dois dias. Por favor, levem-me ao palácio.

Embora tentasse dar uma ordem, soou mais como um pedido de um cachorrinho perdido, desesperado para voltar ao dono.

Philip pigarreou e colocou as duas mãos para trás das costas. Encarou a princesa dos pés a cabeça e repetiu a si mesmo que não deveria ser tão duro com a pobre menina, porém, sua pose de um guerreiro prestes a fazer um interrogatório fez Flora retroceder dois passos e ajeitar a postura.

— Posso saber, alteza, que raios estava fazendo em Gebol, desacompanhada e com trajes — ele desviou o olhar para a barra suja do vestido —, tão desapropriados para uma nobre em sua posição?

— Estava dando um passeio? — ela tentou escapulir com uma voz inocente.

Philip crispou os olhos e estufou o peito, parecendo duas vezes maior. Flora, rendida, achou melhor ser verdadeira. Sempre aprendera que não haveria mal em ser sincera e leal com as pessoas. Então, andando de um lado para o outro, passou a relatar seu insucesso diante de um plano não tão bem bolado.

— Eu cresci dentro do palácio. Meus quase vinte e um anos, confinada dentro daquela muralha. Oculta a um mundo desconhecido. Veja bem, tudo que eu sei do mundo exterior, bom, ao menos até ontem, se dava pelos meus livros de estudos e pelas constantes descrições de meu irmão, príncipe Fergie, sobre suas viagens. Também ouvia os relatos dos guardas, quando retornavam de uma missão e ficava admirada, sonhando com o mundo exterior. Eu queria... Não, eu ansiava pela oportunidade de experimentar um pouco dessa vida normal das pessoas.

Flora disse tudo de uma só vez. Encarou os homens esperando alguma interrupção, e ao nada dizerem, sentiu encorajada a falar mais.

— As poucas vezes quando saí daquele palácio, estava escondida debaixo de véus, dentro de uma carruagem e com ao menos uma dúzia de soldados ao meu redor. Claro, com meu pai e Fergie atento a todos os meus movimentos. Não posso me esquecer de minha querida governanta, a senhora Pontife, corrigindo todos os meus modos. Nunca, nunca mesmo pude experimentar o que eu experimentei nesses dias. — Ela parou e, olhando para eles, deu de ombros. — Embora, claro, eu não gostaria de repetir a experiência de ser raptada. Sim, eu fui sequestrada e estava fugindo dos meus raptores quando o senhor me encontrou, senhor Philip. E sou grata por me livrar de tal infortúnio.

Flora sentou-se novamente na pedra e seus dedos alcançaram o pequeno ramo de folhagens ao lado. Brincando com as folhas verdes, ela deu um sorriso triste.

— Eu serei apresentada no meu baile e todos me reconhecerão a partir de então. E eu nem tive a chance de atingir meu objetivo ao fugir sozinha. — Ela suspirou e os pés passearam pela terra, levantando um pouco de poeira. — Eu só queria um dia longe das cobranças, descaracterizada de meu título, para poder vivenciar pequenas e desconhecidas coisas antes de minha vida mudar completamente. Eu gostaria de ter tido a chance de conhecer um pouco mais do meu Reino antes de me mudar com Henry para Goy. — Flora assumiu a postura derrotada, reconhecendo sua incapacidade de agir de maneira distinta. — Eu me perdi, encontrei três viajantes no caminho, pedi ajuda e fui pega. Eles eram homens muito maus, sabe? Eu não esperava encontrar tanta maldade e homens tão gananciosos no meu Reino.

Jasper riu da ingenuidade da princesa.

— Não se engane, princesa. Esse mundo está cheio de pessoas perversas e a palavra ganancia e maldade costumam andar sempre juntas. Nosso rei sempre diz que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. A concupiscência e cobiça estão associadas à ruína e perdição — discursou com dignidade.

Flora recebeu aquelas sábias palavras em seu coração. O dinheiro, como percebeu, poderia ser a ruína de muitos, contudo, observando a bondade dos dois homens a sua frente, resolveu acreditar que eram poucos os de má intenção e cruéis.

— Mas percebo que os senhores são diferentes e apelo para sua extrema bondade, para me conduzir em segurança de volta ao palácio. Meu pai deve estar muito preocupado comigo.

Philip ainda encontrava-se calado, apenas observando a jovem inocente à sua frente. Não queria, mas seu coração se quebrantou ao ouvir o triste relato dela. Sim, ele compreendia. Quantas vezes não ouviu as lamentações do príncipe Queves, devido a sua reclusão e grandes responsabilidades? Sim, ele mesmo testemunhara e ajudara o amigo a sair às escondidas para juntos se aventurarem desbravando novos lugares na calada da noite, retornando antes que o dia amanhecesse e dessem falta dos dois.

Sem perceber, Phil riu. Sim, eles haviam aprontado muito em sua juventude e não conseguia se arrepender totalmente de suas imprudências. Com esses pensamentos positivos, decidiu ajudar a princesa a retornar para o palácio da melhor maneira e, se possível, contribuir para que ela não recebesse uma bronca devido ao seu desaparecimento.

— Sairemos daqui a cinco minutos — ele informou voltando a seu estado normal. — Vamos partir em direção a Gadol e se formos rápidos, amanhã cedo estaremos na porta do palácio.

Flora sentiu-se agradecida por estar correta. Havia, sim, bondade no mundo. Sem pensar muito, correu em direção ao cavaleiro e o surpreendeu jogando os seus braços ao redor dele, exatamente como fazia com Fergie, quando ele a mimava com algum presente especial.

— Obrigada, senhor Philip! — agradeceu e depressa se voltou para ajuntar o prato de sopa caído no chão para partirem rapidamente, completamente alheia ao estado aturdido de Philip.

Philip demorou a se recompor e quando o fez, precisou ignorar a risadinha e os olhares zombeteiros de Jasper, dizendo claramente:

"Você mudou seus planos!"

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