Quinze

Há algo na personalidade de nossa heroína que merece ser destacado: a facilidade com que Flora abandonava seus dilemas e perdoava as falhas dos outros. Não foi preciso mais que uma longa noite de sono para que ela esquecesse qualquer menção indesejável sobre o amado escolhido por seu coração, feita pelos dois homens que pareciam, na noite anterior, muito interessados em discutir sobre o futuro dela — mesmo ela não estando presente.

Contudo, outro aspecto importante é a aguçada curiosidade que, inclusive, a colocou em muitas enrascadas, como a que ela se encontrava naquele instante, viajando pelo país em cima de um cavalo, na companhia de dois guers desconhecidos, quando deveria estar anunciando seu noivado após o grande e esperado baile de apresentação. E essa curiosidade não permitiu que ela esquecesse, como fez com o assunto mencionado anteriormente, a ideia de desvendar os mistérios do cavaleiro Philip e a temível Morgana, cujo nome nem deveria ser mencionado. Essa característica era um prenúncio trágico do que sucederia caso ela continuasse com suas especulações e terminasse dando com a língua nos dentes.

A noite na cabana foi muito mais calma do que ela imaginava. Esperava serem surpreendido por alguma criatura assustadora da floresta soturna, contudo, exceto a presença do gato do mato no telhado, nada mais foi capaz de estragar o sossego da princesa. Dormiu feito uma pedra e acordou devido ao excesso de barulho vindo do andar inferior.

— Bom dia, Jasper e Philip! — ela gritou quando abriu os olhos e subitamente todo o barulho cessou.

Flora riu da criatividade de seus companheiros depois de eles retribuírem o cumprimento. Obviamente ela não esperava que um deles subisse até o quarto e a encontrasse dormindo, porém, se tivessem chamado o nome dela, teria, supostamente, acordado. Mas nada como um plano elaborado para parecer natural o barulho provocado por objetos sendo sacudidos e batidos de uma maneira bem escandalosa.

Philip tentou de toda maneira manter a naturalidade diante da jovem. Estava claro que a conversa da noite anterior o afetara de maneiras indescritíveis. Contudo, se há algo que devemos destacar na personalidade de nosso herói, é sua péssima atuação e dificuldade em esconder o que sente.

Apesar de tudo, o café da manhã rico, preparado por Jasper, foi uma refeição tranquila. Os homens foram compreensíveis e deram tempo para que a mulher se lavasse e se preparasse para mais um dia da jornada. Eles já tinham organizado tudo e esperavam que Flora descesse, quando Phil achou oportuno fazer um comentário.

— Percebe porque não posso ter uma esposa? — Ele arriscou a brincadeira e Jasper manifestou-se com um olhar incrédulo.

Pouco tempo depois, após a princesa alongar bem as pernas, o trio estava de volta na estrada, a caminho da Torre do Refúgio.

O grupo faria uma parada necessária em um vilarejo onde Philip tinha negócios a tratar. Ele pensou em adiar sua ida devido a presença de Flora, contudo, decidiu ser melhor se livrar de uma vez por todas daquele serviço. As entranhas dele se reviravam só de pensar no lugar hostil onde teria que parar para fazer a entrega de uma mensagem. Sempre quando a determinada vila estava em seu caminho, seu humor mudava drasticamente.

— Por que Philip está tão calado, Jasper? — Flora questionou depois de notar que em grande parte da viagem, apenas ela e o escudeiro conversavam animadamente sobre a natureza ao redor.

— É sempre assim. Philip não gosta nenhum pouco de parar no Vilarejo das virgens. Creio que ele preferiria enfrentar o pântano da aflição mil vezes a precisar repousar no lugar — Jasper respondeu dando uma olhadela para o mestre.

— Mas por quê? O que tem lá? Há muitos perigos nessa vila?

— Oh, sim! É muito perigoso até mesmo para um guerreiro como Philip. Aliás — Jasper riu —, principalmente para um guerreiro como ele.

Flora não conseguiu imaginar o que poderia ser tão perigoso em um vilarejo a ponto de mudar o comportamento do forte e destemido cavaleiro. Era certo que ele estava um pouco estranho desde a manhã, mas a cada distância percorrida, ele se mostrava mais ansioso e desconfortável.

Quando o portão do vilarejo apareceu às vistas do grupo de viajantes, Phil interrompeu a cavalgada, forçando os companheiros a pararem. Ele desceu do cavalo, sob os olhares curiosos da princesa, pegou algo dentro de uma das bolsas e depressa se adiantou até Flora, estendendo para ela uma peça de roupa preta.

— O que é isso? — ela questionou ao ver a insistência dele em entregá-la o objeto.

— Uma capa. Por favor, vista.

Flora obedeceu e ainda de cima de sua montaria, abriu a capa e colocou sobre as costas.

— Quando entrarmos no vilarejo, a senhorita deverá colocar o capuz e permanecer o tempo todo ao lado de Jasper, afastados da praça principal até que eu cumpra com meu dever e volte em segurança — Phil instruiu e subiu novamente no cavalo. — Não iremos demorar por aqui.

Sem mais conversa, Philip guiou seu cavalo pela estrada principal em direção ao portão.

Quando o trio adentrou no vilarejo chamou imediatamente a atenção dos moradores. Flora colocou o capuz que escondia parcialmente seu rosto e não precisou de muito esforço para perceber que a grande maioria dos moradores eram mulheres jovens, que imediatamente se alvoroçaram diante da presença de Phil e Jasper no local. O murmúrio feminino ressoou ao redor e portas e mais portas foram sendo abertas e as mais variadas das mulheres surgiam às vistas do grupo, ajeitando vestidos, erguendo costas e posicionando-se de maneira que seu perfil se iluminasse sob a luz do sol.

A princesa estava admirada com tanta beleza feminina reunida em um só lugar. Havia meninas bem mais jovens do que ela, outras mais velhas, loiras, morenas e ruivas, da pele branca, à pele negra, altas e baixas, corpulentas ou magrelas. Todas elas pareciam muito animadas com a presença dos cavaleiros. Phil, por sua vez, mantinha a rigidez da postura e apenas cumprimentava quando não havia outra maneira de desviar-se do público. Jasper, contudo, parecia se divertir com aquele assédio.

Não havia apenas mulheres no vilarejo. Aos poucos alguns senhores e outros rapazes surgiram para observar o tumulto gerado pelos visitantes. Alguns pareciam irritados, sobretudo os mais jovens, outros riam diante da inusitada situação.

— Vocês podem parar por aqui — Philip declarou interrompendo o desfile do grupo pelas ruas da vila. Ele desceu do cavalo com a expressão séria. — Vou até a casa do Sr. Braun e retorno.

Flora observou, ainda de cima de seu cavalo, Philip retirar um envelope endereçado ao homem, enfiar dentro do casaco e a passos apressados dirigir-se até uma casa no final da rua. Ele bateu duas vezes e a porta foi aberta. Um senhor já dos cabelos grisalhos recebeu-o com entusiasmo e com um caloroso abraço, instruindo-o a entrar em seguida.

Flora e Jasper desceram dos cavalos e aproveitaram a ocasião para oferecer água e fazer um afago nos animais. Ela percebeu algumas mulheres rodeando, contudo, aparentemente, a saia à mostra por baixo da capa manteve todas as solteiras afastadas deles.

— Nós sempre temos negócios por aqui. Philip é o partido mais cobiçado pelas moças dessa região — Jasper explicou evitando olhar em direção às mulheres rodeando, ciente de que qualquer gesto poderia ser encarado como um incentivo. — Em uma cidadezinha onde oitenta por cento dos habitantes são mulheres solteiras, não fica difícil compreender todo esse alvoroço.

Flora riu e continuou acariciando o animal dela e de Philip. A visita realmente foi muito rápida. Antes que percebesse, Phil estava saindo de dentro da casa onde fora recebido e caminhava em direção aos dois.

Tudo tinha saído dentro do planejado e eles logo saíram daquele lugar pavoroso para o cavaleiro. Contudo, ele não esperava ser abordado por três lindas mulheres que sem se preocupar com a discrição, colocaram-se em frente ao nosso herói quando ele estava há poucos metros do lugar onde seus companheiros o esperavam.

— Oh, Sr. Philip, já está partindo? — uma jovem menina dos cabelos dourados e olhos azuis indagou com ares de sedução, incomodando nitidamente o rapaz.

— Sim, meus negócios foram tratados, devo partir — respondeu secamente, contudo, cuidando para não soar grosseiro. A família do Sr. Braun era muito importante e não gostaria de ser recebido com hostilidade, ainda que fosse muito tentadora a ideia, em vista das investidas das mulheres.

— Mas tão depressa? — outra jovem dos cabelos escuros indagou um tanto decepcionada.

— Sim, devo cumprir com meu dever — Philip respondeu e sua mão apertou com força o cabo de sua espada embainhada.

Uma terceira mulher, mais tímida — e menos oferecida — mantinha-se calada segurando uma cesta de palha na mão. As outras duas continuaram tentando, a todo custo, manter uma conversa com o homem, atrasando sua partida. Phil tentava se desviar do interrogatório com respostas evasivas e frias, contudo, as meninas não pareciam compreender a falta de interesse dele.

Flora observava de longe a situação de Philip. Ela não conseguiu evitar rir, principalmente quando via o cavaleiro tentar, em vão, dar um passo para frente, sendo fechado pelo trio de jovens apaixonadas. Porém, quando o tempo passou e ela observou a incapacidade dele de sair daquela enrascada, ponderou se havia algo que ela pudesse fazer para livrá-lo dos avanços femininos.

Phil, por sua vez, começou a entrar em pânico a cada investida e quando se viu dando passos de recuou, preocupou-se, incapaz de traçar uma rota de fuga. Por fim, a jovem tímida deixou a cesta de palha no chão e as outras duas, dando-se por vencidas, despediram-se e partiram, para desespero do cavaleiro que se encontrava agora a sós com uma única donzela.

— Aceite, por favor, senhor, um chá especialidade de minha família antes de partir — ela disse um pouco constrangida, mas se abaixou e pegou uma caneca e encheu até a borda com o líquido morno presente no bule.

Philip, prevendo que não faria mal nenhum, aceitou a caneca e tomou todo o conteúdo de uma só vez, apreciando o adocicado chá. Depois, fez uma mesura e estava prestes a se retirar, quando a menina tímida segurou delicadamente em seu braço e sem aviso prévio, deu alguns passos puxando Philip consigo.

— Meu pai, Sr. Philip, deseja vê-lo. Segundo ele, tem negócios a tratar com seu rei.

Philip travou os pés no chão, obrigando a garota a parar sua caminhada. Ela o encarou com um sorriso tímido e olhares inocentes que o fizeram crer que talvez fosse verdade e algum daqueles homens tivesse tido conhecimento da mensagem do rei de Or, e era tarefa dele ir atrás de informações.

Flora assistiu de longe Philip aceitando o chá, depois sendo puxado pela garota. Contudo, ela tinha uma vantagem em relação a Phil, ela podia enxergar tudo que estava acontecendo ao redor, e rapidamente suspeitou de algo, quando dois grupinhos de garotas, cujo um deles estava as duas primeiras jovens que jogaram todo o seu charme e encanto para cima do cavaleiro, riam e cochichavam diante da cena presenciada entre o "casal" no meio da rua.

Algo não estava certo, Flora teve uma certeza incomum e sabia que precisava interferir, principalmente depois de ter ouvido na noite anterior a conversa sobre a vida íntima de Phil. Sem pensar duas vezes, ela retirou o capuz e deixando os gritos de Jasper para trás, caminhou segura até o lado do cavaleiro.

Philip estava prestes a oferecer o braço direito para acompanhar a menina, quando sentiu as mãos de outra mulher repousando-se com certa força no esquerdo.

— Ah, querido! Quanta demora! Precisamos partir!

Flora precisou de toda sua força de vontade para não rir diante dos olhares espantados tanto do homem quanto da donzela ao lado. Phil abriu e fechou a boca quatro vezes, incapacitado de falar, principalmente diante do sorriso aberto de Flora para ele.

— Jasper nos espera, você prometeu que seria rápido, Phil — ela reclamou terminando com uma expressão apaixonada.

— Eu já estava partindo — Philip respondeu ainda aturdido com a reação de Flora. — Eu apenas acompanharia a senhorita até sua casa.

— Phil! — Flora exclamou e fez de tudo para parecer triste diante da confissão dele. — Não esperava isso de sua parte. Pensei que sua palavra valesse alguma coisa.

E cheia de afetação, ela retirou o braço, virou-se com um enorme bico no rosto e voltou a caminhar rígida até onde Jasper a esperava pronto para receber uma série de reclamações de seu superior por não ter impedido Flora de ir até ele. Entretanto, Philip despediu-se da moça com quem conversava, caminhou até os companheiros e sem dizer uma só palavra, montou em seu cavalo.

— Vamos partir depressa — ele disse sem muitas explicações e não esperou nenhum segundo para incitar seu animal a trotar.

Flora riu satisfeita e trocando olhares divertidos com Jasper, montaram e seguiram atrás de Philip.

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