Quatorze

O sol estava prestes a se por. O prenúncio de uma noite fria surgiu com rajadas de vento que cortavam a pele do inusitado grupo viajante e balançava as folhagens das copas das árvores.

Flora agradeceu internamente quando viu a esperada cabana de madeira, escondida no meio da mata. Estava exausta, com fome e com frio, e duvidava muito que conseguiria ficar mais tempo em cima do cavalo.

Philip percebeu o cansaço estampado no rosto de Flora e lembrou-se da postura dela quando pararam na cidade, por isso adiantou-se para auxiliar a jovem. Ela teve dificuldade em passar a perna para descer, e aceitou de bom grado a ajuda do homem que com grande facilidade a retirou de cima da montaria.

— Obrigada — ela agradeceu sentindo que a relação deles havia melhorado muito durante o trajeto.

— Ajuda se você... — Phil coçou a cabeça e desviou os olhos antes de continuar a falar. — Alongar as pernas.

Flora assentiu e enquanto os homens descarregavam os cavalos, alongou o corpo, sentido dor em toda a sua perna, contudo, a ardência na musculatura da virilha era quase insuportável. Precisava descansar as pernas e preparar um chá para amenizar a dor. Respirou aliviada ao se recordar das ervas que convencera Phil a comprar no mercado na cidade, estas lhe seriam muito úteis no momento oportuno.

A cabana era completamente diferente do que Flora imaginava. Era rústica, sim, bem distinta das acomodações onde Flora já repousara - se bem que àquela altura, para quem havia dormido numa carroça e numa caverna, o casebre de madeira era bastante luxuoso nas devidas condições -, contudo, ela se encantou com os detalhes que tornavam o local aconchegante.

— A senhorita terá uma boa noite de sono hoje — Jasper declarou ao passar por ela e notar o quanto ela contemplava o lugar.

— Esse lugar é seguro? — Flora questionou olhando ao redor, abraçando os próprios braços quando o ventou tocou sua pele.

— Sim, contato que estejamos lá dentro quando anoitecer — Philip respondeu e adiantou-se até a porta.

Flora não viu como os homens destrancaram a cabana, estava observando além das árvores, se perguntando que espécies de animais viviam na floresta soturna.

— Flora! Entre! — Jasper parado à entrada, instruiu.

Flora sorriu e lentamente caminhou até a escada. Quando ergueu a perna para subir o primeiro degrau, a ardência nos músculos a lembrou da atividade incomum e puxada da qual estava sendo exposta. Usando o corrimão, venceu o obstáculo sentindo as fisgadas dolorosas a cada esforço feito.

Quando adentrou ficou ainda mais encantada com o lugar. A decoração interior parecia cuidadosamente pensada para fazer brilhar os olhos de quem entrava ali. Os móveis de madeira eram grandes, mas esculpidos à mão, formando desenhos e arabescos em suas extremidades. Não era grande, mas os ambientes eram muito bem divididos, uma mesa redonda recepcionava os visitantes. Havia um andar superior aberto. Não podia negar que o lugar era bem romântico, lembrava as cabanas de contos de fadas onde coisas importantes aconteciam e ocasionavam reviravoltas nas histórias.

— Esse lugar é incrível! — ela exclamou admirada, unindo as mãos em frente ao corpo enquanto dava um giro completo para contemplar bem o ambiente. Então, parou de frente para Philip, levemente hipnotizado com os movimentos da jovem. — Como descobriu essa maravilha?

— Ora — Jasper iniciou a resposta, cruzou os braços em frente ao peito e riu —, essa é fácil! A cabana...

— É de alguém e temos o privilégio de poder usufruir do abrigo, uma vez que devemos ficar longe de hospedarias ou lugares com outras pessoas — Philip respondeu com rigidez e deixou claro que o assunto estava encerrado. — Jasper preparará nossa refeição, a senhorita deveria descansar. O quarto fica lá em cima.

Flora olhou na direção apontada pela mão de Philip pronta para acatar a sugestão. Deveria se encantar com a delicadeza do mezanino, contudo, sua mente apenas detectou os degraus que a levariam até lá. Suspirou um tanto decepcionada.

— Se não se importa, gostaria de fazer um chá.

Phil sorriu e deu espaço para ela seguir em direção ao fogo. A princesa acabou auxiliando Jasper enquanto Philip saía e entrava novamente na cabana, carregando lenha suficiente para esquentá-los durante toda a noite. Depois, ele passou a organizar ao redor, tentando deixar o lugar mais arrumado e agradável aos olhos da jovem.

Em um curto espaço de tempo o fogo estava aceso, aquecendo o local, e o jantar pronto e servido em cima da mesa.

— Creio que o momento é adequado para transmitir as notícias vindas de Gadol — Phil expressou tão logo iniciaram a refeição.

— Oh! Claro, por favor, Philip! — Flora sentiu-se de repente ansiosa. Com toda a intensidade dos acontecimentos, envergonhava-se de assumir que mal se lembrou de sua situação como princesa desaparecida.

Ela observou Philip apreciar o conteúdo do prato antes dele voltar os olhos em sua direção.

— Não há relato ou qualquer alarde sobre seu desaparecimento que seja do conhecimento do povo. Segundo minhas fontes, houve um adiamento na data do baile de Tsalach da princesa, porque o príncipe de Goi sofreu uma pequena inconveniência durante o trajeto que o traria até o Reino. — Phil disse e apenas Jasper conseguiu notar o traço de ironia na voz dele quando mencionou Henry.

— Por mil pastos! Henry está bem? — questionou Flora aflita enquanto mil possibilidades ruins invadiram sua mente sobre o que poderia ter acontecido com seu amado.

— Sim, sim. Ele está bem. — Philip pigarreou e voltou sua atenção para a sopa. — Parece se tratar apenas dos caprichos de um príncipe.

— Ele pode ter esquecido algum bem valioso para trás, talvez meu presente. Ou, quem sabe, um anel? — O rosto de Flora se acendeu diante da perspectiva de um anel de noivado. Phil resistiu bravamente à vontade de revirar os olhos ou retrucar com rudeza. — Pode ter sido alguma notícia ruim de Goi que o fez retornar, ou então, descobriram alguma emboscada no caminho. Oh! Ele pode ter sido acometido por uma febre, ou uma grave doença! Quem cuidará do meu pobre Henry?

Flora tornou-se emotiva, para desespero de Philip.

— Tenho o prazer de informar que o príncipe encontra-se em excelente estado de saúde. Não se preocupe. — E entre dentes, remendou baixinho. — E com toda certeza não faltariam mulheres para cuidar dele.

Flora estava ocupada demais com seus pensamentos para tentar entender a indireta de Phil. Esqueceu até do alimento esfriando no prato, enquanto o cérebro maquinava dentro da cabeça.

— Mas como não perceberam o sumiço da princesa? A essa altura toda a guarda real deveria estar nas ruas caçando a Flora! — Jasper interrompeu o silêncio à mesa.

— Amelie... — Flora sussurrou e levantou os olhos com um sorriso no rosto. — Com certeza, Amelie deve ter conseguido bolar uma desculpa qualquer para meu sumiço, conhecendo bem a incrível capacidade de minha amiga. Sabe, ela deveria ser da guarda real, daria uma excelente estrategista.

— Flora associou imediatamente a sentença à outra figura. — A essa altura, Adrey e seu batalhão devem estar à minha procura.

— Adrey? — Jasper fez a pergunta que também martelava na mente de Phil.

— Irmão de Amelie, é um soldado. Bem, ele faz parte da minha guarda pessoal e posso dizer que tem encoberto algumas desventuras minhas desde criança. — Flora voltou a se dedicar a comida enquanto sua mente se enchia de boas lembranças dos irmãos a quem tanto considerava. — Nada como a situação de agora, claro! Mas várias peraltices dentro do castelo.

— Espera! Esse tal de Adrey sabia de sua aventura e permitiu que a senhorita saísse sozinha? — Phil questionou atônito com a falta de responsabilidade do rapaz.

— Não! Ele não sabia do nosso plano. — Flora sentiu a face esquentar e decidiu que não tinha porque esconder a verdade. — Amelie providenciou dois guardas para me seguirem de longe fazendo a segurança, entretanto eu posso ter conseguido escapar dos olhos deles com um pouco de facilidade. — Ela apertou os lábios e deu de ombros.

— Por mil pastos! Princesa, a senhorita é uma verdadeira caixa de surpresa — Jasper exclamou com graça.

Philip lembrou-se de fechar a boca antes que fosse pego admirando a princesa relatando seus feitos. Repousou o talher no prato já vazio e empurrou o objeto que deslizou sobre a mesa.

— De qualquer forma, seu baile foi adiado para daqui uma semana — Philip informou mantendo o olhar fixo no prato vazio. — Se sabem de seu desaparecimento, souberam encobrir muito bem.

Flora não soube explicar de pronto, mas uma alegria repentina rompeu em sua alma com a informação. Só mais tarde deu-se conta de que estava apreciando sua estranha aventura e estar consciente de que provavelmente sua fuga não tivesse afetado o Reino tanto quanto imaginava, trouxe alívio e consolo para os poucos momentos de divagação sobre as consequências de seus atos. E Henry não chegaria antes de cinco dias, ela estava livre para aproveitar seus últimos instantes como uma jovem comum e desbravar o mundo além dos livros e dos muros do palácio.

— Flora! — A voz de Jasper ressoou ao lado dela, despertando-a de seus sonhos e planos secretos sendo tecidos dentro de sua mente. Ela encarou o jovem e sorriu ao se dar conta de que não ouviu nenhuma palavra dita por ele. — Posso recolher?

— Ah! — Flora deixou o talher no prato e sorriu. — Obrigada. Precisa de ajuda?

Jasper sorriu abertamente.

— Não, acho melhor a senhorita ir descansar. Temos uma longa estrada pela frente.

Flora aceitou a sugestão. Precisaria enfrentar as escadas, mas sabia que no final haveria uma cama como recompensa para o corpo cansado. Ela serviu uma caneca com o chá preparado para aliviar as dores, despediu-se dos homens e ouviu as instruções de Philip sobre o quarto antes de se retirar pronta para enfrentar os degraus de madeira.

Foi com um pouco de dificuldade e dor que ela chegou ao topo do mezanino. Havia uma cama grande com um colchão convidativo. Philip tinha arrumado o lugar e a cama estava forrada com lençois limpos e uma coberta dobrada ao pé da mesma. Havia um aquecedor a lenha esquentando o ambiente e tudo o que ela desejava era repousar a musculatura. Bebeu o chá, trocou suas vestes por um vestido mais simples e deitou-se para descansar.

Flora estava exausta, mas ao contrário do que imaginou, não conseguia desligar-se e dormir. Ouvia o barulho da movimentação dos homens no andar interior e sentiu pela primeira vez certa medida de solidão. Sentiu falta de seus amados e conhecidos, principalmente de Fergie e Amelie, com quem constantemente se abria a cerca de suas emoções e descobertas.

Fechou os olhos e permaneceu imóvel, buscando lembranças felizes para povoarem sua mente e tentar relaxar o corpo. A imagem de Henry sorrindo para ela provocou um sorriso apaixonado. Sentia falta dele, de seus elogios, da prova de seus sentimentos. E em breve dariam o primeiro beijo de amor, provando a todo o mundo que eles haviam sido feitos um para o outro.

E foi assim, em meio ao silêncio de suas recordações, sem mover uma parte de seu corpo, que seus ouvidos captaram a conversa dos dois homens no andar de baixo.

— Por que você não contou que a cabana é sua, Philip? — Jasper questionou.

Flora aguçou a curiosidade instantaneamente.

— Seria estranho trazer uma mulher aqui, mesmo nas devidas condições em que nos encontramos — Phil respondeu um tanto injuriado. — Sabe muito bem que só viemos para cá porque é inviável expor a princesa em uma hospedaria.

Houve um pequeno instante de silêncio, enquanto Jasper ponderava se prosseguia com sua intenção inicial.

— Morgana já esteve aqui.

Flora ficou bastante tentada a engatinhar pela cama e se aproximar da beirada do mezanino para poder ver a reação de Phil. Ele sempre se mostrava inquieto e transtornado ao ouvir o nome da dita mulher. Contudo, a entonação da resposta deixou clara o descontentamento dele.

— Quantas vezes, Jasper, será preciso que eu te diga para não tocar no nome dessa mulher?

— Phil — Jasper suspirou —, você precisa superar isso.

— Eu já superei. Morgana faz parte de um sombrio passado.

— Não, você a deixou, e fez muito bem, contudo, não superou o que ela fez a você — Jasper declarou muito convicto.

— Eu superei, Jasper!

Phil ergueu-se da cadeira subitamente e caminhou até a mesa em busca de água para tentar aliviar o nó formando em sua garganta. Jasper levantou-se e foi atrás, disposto a continuar aquele assunto.

Flora não resistiu à tentação e virou-se com cautela na cama de modo que sua cabeça — e seus ouvidos — ficasse mais próxima da beirada.

— Não! Olhe para você! — Jasper ergueu as duas mãos em direção ao peito do rapaz. — Fechou-se para o presente. Desde que Morgana arrebentou com a sua vida, não quis sequer cogitar a possibilidade de construir uma família.

Phil bebeu um longo gole de água antes de encarar o jovem que parecia disposto a atormentá-lo naquela noite.

— Eu não tenho condições de formar uma família. Sabe muito bem da minha escolha de servir Sua Majestade, não poderia deixar esposa e filhos enquanto passo todo o tempo viajando.

— Nós dois sabemos que isso é uma desculpa sobre o real problema, Phil. O erro do passado...

— Meu erro! — Philip disse entre dentes se esforçando para não erguer a voz e acordar Flora, embora ela estivesse muito bem acordada e ouvindo tudo. — Reconheço meu erro e lamento, todos os dias, por ter me deixado levar por uma mulher... Uma mulher como aquela!

Flora prensou os lábios temendo manifestar-se diante daquela revelação. Philip tinha se envolvido com uma mulher...

— Porque os lábios dessa mulher destilam favos de mel, e as suas palavras são mais suaves do que o azeite; mas o fim dela é amargoso como o absinto, agudo, como a espada de dois gumes. Os seus pés descem à morte. Ela não pondera a vereda da vida; anda errante nos seus caminhos e não o sabe. — Jasper recitou um dos sábios conselhos do Rei de Or. — Confesso que Morgana tem o poder de insunuar o que deseja, eu mesmo me deixei enganar por sua postura. Nunca imaginaria quem ela de fato é.

— Seduziu-o com as suas muitas palavras, com as lisonjas dos seus lábios o arrastou. — Philip declarou com o olhar fixo em um ponto a sua frente, evitando encarar Jasper. — Reconheço, Jasper, que fui um tolo insensato. Deixe-me levar, como o boi que vai ao matadouro, como o cervo que corre para a rede, como a ave que se apressa para o laço, sem saber que isto me custaria a vida.

Flora sentiu o pesar do cavaleiro estampado no tom de voz e por um momento sentiu vontade de consolar o homem que a protegia naquele instante.

— Contudo o senhor reconheceu seu erro antes que fosse tarde demais, arrependeu-se, corrigiu o que deveria ser corrigido e deve deixar isso para trás, no esquecimento. Phil, isso não significa que você vá cometer o mesmo erro.

— Já caí uma vez, Jasper. Não confio em meu próprio julgamento. — Phil caminhou até o sofá onde repousaria e deixou o corpo cair sobre o móvel.

Jasper juntou-se a Philip e olhou em direção ao andar superior onde Flora supostamente deveria estar dormindo.

— Flora é uma mulher como Morgana?

Phil se surpreendeu com a pergunta e não precisou pensar muito para negar veemente com a cabeça. Flora, por sua vez sentiu o coração disparar ao perceber que virara o centro da conversa.

— Flora é completamente diferente de Morgana. Flora é uma princesa, Morgana é uma guerreira — Phil tentou ser evasivo em sua resposta, embora tivesse completa ciência que as diferenças notadas iam muito além da personalidade ou postura das duas.

Jasper juntou as duas mãos e se preparou para uma pergunta arriscada.

— Phil, você já pensou... A princesa está aqui e ela é uma mulher com muitos atrativos...

— Jasper! Você está insinuando...

Antes que a exasperação de Phil pudesse ser completada, ouviram um barulho que vinha do alto. Flora assustou-se com o ruído em cima do telhado, prendeu a respiração e fechou os olhos temendo por sua vida.

Phil se levantou e os dois olharam para o Mezanino, ambos com o mesmo pensamento na mente, preocupados de terem acordado a princesa que poderia ouvir um assunto muito íntimo que de certa forma a envolvia.

— É só um gato do mato no telhado — Jasper declarou com convicção levando alívio tanto para Flora quanto para Philip. Os dois voltaram a se sentar e o jovem encarou seu mestre com seriedade. — Ela é uma mulher de grande valor, Phil.

Flora mordeu o lábio inferior sentindo-se agraciada pelo elogio de Jasper.

— Dispenso a necessidade de comentar que mesmo diante de todos os motivos que tornariam uma relação dessas impossíveis e fora de qualquer cogitação de minha parte, essa mulher de grande valor está com o coração comprometido e perdidamente apaixonada.

Flora sorriu ao concordar com Philip. O coração dela tinha dono.

— Pelo príncipe de Goi! — Jasper declarou com desgosto e Flora não gostou da forma como ele destratou seu quase noivo. — Phil, por isso mesmo você deve...

— Eu não devo nada, Jasper! Flora não é minha responsabilidade. O pai e o irmão devem estar bastante cientes do caráter do homem em questão e cabe a eles defenderem os interesses e a felicidade da princesa.

Jasper tentou interromper, mas Phil ergueu a mão, pronto para colocar um fim na questão.

— Quanto a mim, em nada interferirei. Ela que se case com o homem que bem desejar. — Philip deitou-se e cruzou os braços em cima da cabeça. — E eu seguirei com minha vida exatamente como tenho feito. Boa noite, Jasper.

Flora tinha a boca seca quando ouvir Jasper despedir-se de seu mestre e a escuridão tomar conta da cabana. Que conversa estranha aquela! Muitas informações para processar de uma só vez, ainda mais estando tão exausta. Decidiu manter seus pensamentos focados na história de Philip com Morgana, imaginando o que existiria por trás de tal envolvimento e fez questão de apagar de sua mente toda a parte da conversa em que ela era mencionada, principalmente porque ficara muito incomodada com as insinuações dos dois cavaleiros que, querendo ela ou não, seriam seus companheiros de viagem pelos próximos dias.

Sentir-se-ia ofendida com as declarações dos rapazes apenas quando estivesse segura no castelo nos braços de Henry.

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