Cinco
Quando Flora despertou, atraída pelo diálogo de Philip e Jasper que pareciam discutir algo importante próximo a ela, preferiu manter-se imóvel e de olhos fechados, contudo, atiçou a audição, principalmente quando ouviu seu nome sendo pronunciado pelo mais jovem.
— A senhorita Jasmim parece ter pressa, senhor. Se prosseguirmos com esse plano...
— A senhorita Jasmim é um infortúnio diante da importância de nossa missão — Philip, impaciente, cortou a fala do rapaz. Nessa hora, Flora decidiu que não gostava mais tanto assim do cavaleiro, mesmo estando sobre a manta que ele outrora havia estendido especialmente para seu conforto. — Manteremos o nosso objetivo, Jasper. Comprometo-me em protegê-la enquanto estiver sob nossa guarda, contudo, não mudarei meus planos.
Ouve uma pausa e Flora pensou bem se não deveria interromper a conversa para deixar suas considerações. Contudo, achou por bem ouvir um pouco mais, uma vez que o homem parecia bem convicto sobre suas resoluções.
Philip ainda segurava um mapa em suas mãos quando afirmou sem dar espaço para questionamentos que não seria influenciado por uma jovem em apuros. Um lampejo nos olhos de Jasper e um sorrisinho denunciaram de antemão que ele diria algo que irritaria seu mestre.
— Bem, você já alterou seus planos. — E então, ele apontou para a dama dormindo no chão, depois para o mapa nas mãos de Philip. — E com esse adiamento inesperado, precisaremos modificar toda a nossa rota.
Philip bufou. Não gostava quando Jasper o contrariava e usou seu olhar mais autoritário para fazer o rapazinho reconsiderar o que dizia. Porém, o leal escudeiro conhecia o mestre suficiente para saber quando poderia troçar e quando deveria temer sua repreensão.
E, naquele instante, preferiu continuar a se divertir implicando com ele.
— Quando foi a última vez que uma dama fez Philip de Baruch descansar por quatro horas seguidas a beira de um riacho?
Nesse momento, Flora sobressaltou-se, abriu os olhos e levantou-se de uma só vez.
— Estou dormindo a quatro horas seguidas? — questionou sobre olhos arregalados dos dois homens.
Philip demonstrou estar um pouco em choque com o súbito movimento da garota e em segundos uma ideia invadiu sua mente.
— Você estava ouvindo nossa conversa? — indagou exasperado, embora já soubesse a resposta.
Flora levantou-se aflita sem se dar conta da indelicadeza denunciada. Enrolou a manta sem muita habilidade, levantando um pouco de poeira com a pressa em que o fez e caminhou até os dois homens, entregando para Philip o objeto de sua gentileza — agora não tão mais apreciada por ela.
— Podemos partir, imediatamente!
Jasper e Philip observavam boquiabertos o comportamento da ansiosa jovem. O primeiro riu e se levantou, pronto para cumprir a incumbência dada a ele quando ela ainda dormia. O segundo não se moveu encarando o rosto amassado de Flora, uma combinação perfeita com os desordenados fios de cabelo. Suaves olheiras marcavam o rosto pálido e então ele se compadeceu um pouco, embora estivesse levemente irritado.
— Senhorita, suponho que seja seu desejo e necessidade se lavar e se compor antes de tudo — ele disse desviando os olhos para o chão. — Depois, fará uma refeição adequada antes de partirmos.
Flora deveria protestar e exigir o retorno imediato, mas o olhar de Philip distante foi um aviso bem recebido de seu estado. Levou as mãos até o cabelo e murmurou baixinho quando imaginou sua condição. Logo ela, sempre tão bem arrumada! Ainda que apenas os criados e convidados especiais tivessem tido a oportunidade de apreciar sua arrumação diária.
Seguindo os conselhos do homem, foi até o riacho a uma distância considerável que a proporcionaria certa privacidade e lavou primeiramente o rosto. Estremeceu diante do contato com a gélida água, mas continuo em sua tarefa, lavando os braços e umedecendo a nuca com a mão. Soltou então os cabelos e com as pontas dos dedos desembaraçou os fios, sentindo a poeira já impregnada. Ela riu. Sim, nunca estivera em condições tão desagradáveis, mas não conseguia deixar de apreciar um pouco toda aquela aventura. Voltou a trançar os cabelos, dessa vez, sem ajuda, deixou-os caindo na lateral.
Antes de retornar, um pouco mais apresentável, precisou encarar a tarefa de aliviar suas necessidades. Esgueirou-se atrás de uma moita e corou embaraçada por estar agindo muito divergente dos protocolos exigidos para uma princesa.
Jasper a recebeu com um sorriso amigável que foi igualmente retribuído. Com um tom muito gentil, instrui a sentar-se em uma pedra incumbida em desempenhar o papel de uma cadeira. Estendeu então um prato de comida quente cujo cheiro exalado atingira em cheio o estomago da princesa. Ela aceitou de bom grado e passou a degustar, delicadamente, com uma colher, o conteúdo de sua refeição.
Ela soltou um ruído de prazer quando seu paladar aprovou o sabor do alimento, proporcionando-lhe um íntimo contentamento. Só então se deu conta de como estava faminta.
— Isso está delicioso, do que se trata?
Jasper juntou as mãos e desviou o olhar para Philip. Ficara combinado que, diante da impossibilidade de conseguir uma comida mais apropriada na pequena vila próxima, a dama não saberia o teor da constituição do prato que a alimentava.
— Uma sopa típica dessa região — Philip esclareceu rapidamente. Ele se repreendeu internamente por se divertir com a ênfase do elogio da mulher que, provavelmente, agiria de maneira distinta se soubesse exatamente o que estava consumindo.
Flora continuava se deliciando com o alimento e só então percebeu a sua deselegância.
— Os senhores não comerão?
— Já o fizemos, senhorita, enquanto dormia — Jasper esclareceu.
Flora nada mais disse a respeito.
— Senhorita, creio que o momento é ideal para esclarecermos sobre as circunstâncias de seu repentino aparecimento no nosso caminho. Por que, diabos, havia um homem a perseguindo tão distante da cidade para onde pretende retornar tão depressa? — Philip questionou analisando os modos delicados dela ao levar a colher a boca, embora estivesse claramente faminta e empregava-se com um pouco mais de disposição do que uma dama se comportaria na mesa.
Flora parou por um momento e sentiu-se envergonhada ao pensar em sua condição e como havia acabado ali. Corou e descansou a colher no prato tentando organizar suas palavras diante da pressão exercida pelo olhar do cavaleiro.
— Bom, a situação é um pouco complexa e eu não tenho como explicar exatamente. — E com um olhar de súplica tentou conseguir o bom favor dos homens a deixar o assunto de lado.
— Perdoe a minha impertinência ao perguntar, mas a senhorita está envolvida com assuntos indecorosos? Porventura não está fugindo de um matrimônio, está? Ou estava indo ao encontro de um pretendente?
Chocada demais com a pergunta direta e ainda mais embraçada, sentiu o rosto arder.
— Claro que não! O senhor me rebaixa insinuando algo assim — ela protestou veemente. Não aceitaria ser acusada por algo tão absurdo. Não quando estava prestes a receber uma proposta honrosa de um homem honroso. — Eu só dei uma escapulida do palácio e tudo aconteceu como aconteceu.
— Do palácio? — Jasper indagou surpreso. — É uma criada por lá?
Philip estava certo de que qualquer dia cortaria a língua de seu escudeiro.
— Uma criada? — Flora perguntou e a ideia lhe pareceu interessante. — É, talvez sim.
— Talvez sim! — Philip repetiu se divertindo. — A senhorita não sabe se é uma criada?
Lógico que ele não acreditava naquela posição. Não quando a jovem dama apresentava modos tão refinados até mesmo comendo sentada numa pedra.
Sem escapatória, Flora voltou à tarefa de se alimentar. Como explicaria que era a princesa prestes a ser apresentada e mesmo assim havia fugido atrás de uma tarde de aventura, tendo acabado como estava? Não, ela precisava manter sua reputação e identidade escondida.
— A senhorita pertence a uma família nobre, não tenho dúvidas. Apenas gostaria de saber a qual delas — Philip falou convicto, embora começasse a desconfiar de uma ideia um tanto absurda. — E porque está sozinha tão distante de casa.
Flora nada disse e se concentrou completamente na colher cheia de sopa a caminho de seus lábios.
— Senhorita, creio que pelo seu bem e também o nosso, precisa nos informar qual a sua causa e a quem devo entregá-la em segurança.
Flora continuou fingindo desinteresse no interrogatório.
— Muito bem, então. Teremos ao menos três longos dias pela frente e em algum momento acabaremos por saber a história completa. — Philip levantou-se bruscamente deixando claro a breve partida.
— Três dias, senhor? — Flora o encarou, assustada. — Mas, eu preciso retornar antes. Minha presença é esperada no palácio e eu... — Então ela se calou novamente e baixou o olhar. — Apelo por sua boa vontade e solicito que me leve agora mesmo para meus parentes.
— Bem, se sua presença é esperada no palácio, creio que possa fazer algo a esse respeito sem alterar meus planos iniciais. — Philip sentiu-se vitorioso, bastante ciente de que alcançaria o êxito com sua astúcia. — Jasper, deixarei em sua incumbência escrever um telegrama urgente para o palácio informando que uma dama do nome Jasmim, cuja parentela é um mistério para nós, encontra-se sob nossos cuidados e havendo necessidade de seu retorno antes da nossa data prevista, que enviem alguém para buscá-la. Nisso, transfira os caminhos de nossa rota.
— A quem devo endereçar, senhor? — Jasper, alheio ao plano do mestre, questionou pronto para ser útil.
— Ao rei — ele respondeu com os olhos fixos no rosto de Jasmim.
A princesa fechou os olhos e soube que estava encrencada, de uma maneira ou de outra.
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