Abri a dor
"A parte que dói é a parte mais importante."
(John Green - Tartarugas até lá embaixo)
Abri a dor.
Esses dias, eu peguei um abridor de latas prateado, o qual se encontrava escondido nas sombras da terceira gaveta do móvel da cozinha, e o finquei no canto esquerdo de meu peito. De inicio, enquanto um filete de sangue caminhava e criava Monalisas macabras sobre a minha pele acre, eu sentia apenas uma fisgada incômoda me hipnotizar pouco a pouco. Mas aquilo não bastava para mim - aliás, nunca bastaria para ninguém um enterro em seu próprio raso. Então, eu passei meus dedos pelo objeto e o girei.
Girei.
Girei.
Girei.
E girei mais infinitas vezes.
Minha superfície epidérmica se contorcia e se desfazia na mesma velocidade que eu afundava o abridor de latas nas profundezas do meu ser. A ardência se misturava loucamente com o meu suor e com a tinta vermelha que não sabia mais como terminar os próprios desenhos. Pela primeira vez, estava tudo perfeito.
Eu confesso, entretanto, que não fiz isso porque eu acreditava fielmente que meu coração era algum metal barato esperando ser retorcido e escancarado, mas sim porque, no fundo, eu só queria saber se, ao me abrirem, ainda haveria certo líquido a derramar. Se haveria sentimentos para encher e, quem sabe, transbordar um daqueles copos decorados com desenhos de Natal. Se eu sangraria o suficiente para encharcar o chão e marcá-lo como a prova não tão viva de que eu ainda sou feita de carne, ossos, vazios, solidões, emoções e plasma; de que eu ainda não sou apenas uma programação barata que não sabe mais o motivo de querer ver o sol raiar; de que eu não sou apenas mais uma fábrica de produzir dor.
Eu queria saber se era possível estourar esse casulo de alumínio fajuto que me prende e voltar a sentir o que de fato nunca me pertenceu. Queria ver meu sangue escorrer o suficiente para poder sussurrar aos ventos:
"Eu estou viva! Vejam! Não sou como vocês. Não, eu não sou! Vocês somente sobrevivem, mas eu vivo. Eu vivo!"
Mas no final do dia, quando o atual curativo já estava sendo traído pela terceira vez e o abridor de latas se refugiara novamente nas sombras, eu não pude ter certeza se meu coração batia. E, para ser honesta, quase fui capaz de ouvir o Universo debochando de mim, baixinho, ao perguntar:
"O que realmente significa estar vivo?"
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