VOCÊ NÃO PODE FUGIR DE QUEM É

O MUNDO GIRA; AS VEZES VOCÊ ACABA EM CIMA, outras em baixo, e, em algumas, raras, no meio; bem ali, na divisa do improvável e do ilógico; onde você se questiona se de fato deveria estar, mas gosta da sensação de pertencer a algo, mesmo que seja a uma frágil incerteza.

Esse dia incerto apresenta uma paleta de cores vibrantes, o céu azul faz com que o sol tome força e aqueça fortemente os corpos perambulantes que caminham debaixo dele. São oito da manhã, os alunos chegam aos poucos na escola e me sinto ansiosa; pela primeira vez, algo depende da minha atitude. É estranho se sentir capaz mesmo que seja disso; embrulhar presentes ou fazer meras ligações; mas, ainda sim, quando fiz essas pequenas coisas, elas se tornaram grandes.

Minha camiseta rosa, com o símbolo do feminismo, está em atrito com o suor nas costas, fazendo o tecido me pinicar. O diretor, a todo momento, vem checar se tudo está de acordo; seu calculismo começa a me irritar.

O homem lança-me sorrisos estranhos vez ou outra.

— E aí Val, tudo certo? — Vivian pergunta, se aproximando com seus cabelos amarrados no topo da cabeça, num grande rabo de cavalo.

Nossa palestra acontecerá no auditório, e mesmo não sendo eu quem irá falar de um assunto tão delicado, na frente de um monte de jovens, sinto o nervosismo roer minhas veias.

— Sim — respondo.

Ela acena com a cabeça e, em seguida, coloca a mão sobre o meu ombro.

— Ei, relaxa — ela diz.

— Eu tô relaxada — minto, e pela sua expressão é óbvio que não sou tão boa mentirosa, quanto penso que sou.

— Vai dar tudo certo.

Assinto com a cabeça, mordendo o canto do lábio, incerta se deveria crer em tais palavras ou não.

Às nove em ponto, os alunos entram no auditório. A quantidade de pessoas me deixa impressionada. Em dias de eventos, todos são liberados de suas obrigações, porém, a grande maioria vai embora e o restante nem se ocupa em vir — hoje a situação é diferente.

Ocupo-me de entregar o folheto na porta do auditório e, a cada minuto, mais indivíduos aparecem. Tento esboçar uma expressão amigável para todos que passam e me cumprimentam, disfarçando o nervosismo que se faz mais evidente.

Distraída com a multidão, não percebo uma mão agarrar com força o papel que seguro. Levanto os olhos e sinto um soco no coração, ao ver a expressão sarcástica que Luíza direciona à mim, sem o menor pudor.

— Interessante, a manada usa até uniforme — comenta ela, com o garoto de cabelos azuis ao seu lado; Júlio, é seu nome.

— É pra identificar aqueles que lutam por uma boa causa — respondo, exibindo um sorriso irônico para minha ex-melhor amiga, que torce o nariz em resposta ao comentário.

O garoto diz algo em seu ouvido, que a faz rir alto.

— Você costumava admirar esse tipo de atitude — digo, sem pensar, me arrependendo imediatamente.

— Os tempos mudam — ela diz.

— Não, os tempos, não, só as pessoas mesmo. — Desvio a atenção dela e entrego um folheto para outro aluno.

Quando olho para o lado, vejo Luíza encostada no tronco de uma grande árvore do pátio, acendendo um cigarro, rindo com o garoto de cabelos azuis. Os grandes responsáveis da instituição, sequer notam o desprezo da garota pelo patrimônio e por tudo ao seu redor, mas eu sim; por mais que eu odeie o fato de me importar com alguém tão sem pudor como ela. O que me angustia mais, é ter sido avisada por algumas pessoas que ela só andava com alguém quando lhe era útil e depois o descartava, como um lenço de papel velho e sujo.

Afasto tal pensamento da mente, não posso me dar ao luxo de deixar algo tão frívolo se tornar o regente dos meus pensamentos e atos, não agora, quando finalmente faço algo que importa.

Quando a palestrante chega ao salão, um misto de sentimentos me percorre. Nós havíamos conversado por cerca de cinco minutos no telefone, porém, nesse meio tempo, eu idealizei uma pessoa completamente diferente da qual apareceu. Antônia Tereza, é uma mulher alta, com a pele crispada pela idade; sua postura imponente demonstra uma confiança jovial, que se confirma bem com seus fios de cabelo cor-de-rosa. Ela veste um kaftan floral e exibe um sorriso para a plateia, enquanto se apresenta.

Eu e o restante das organizadoras assistimos à primeira fila.

Pessoalmente, a voz da mulher é acalentadora e envolvente. Ela sorri com graça e explica de forma compreensiva, como se identificar atos abusivos dentro de um relacionamento.

Antônia é terapeuta e já lidou com milhares de casos de abuso; ela fundamentava que, às vezes, o abuso acontece de forma inconsciente, tão pequeno e insignificante que nem se faz perceptível. Em seu quadro, ela mostra diversos sinais que passam batido pelas vítimas.

Percebo Vivian se remexer de forma desconfortável na cadeira. Encaro-a e ela exibe um sorriso amarelo.

— E agora, gostaria de falar do mais importante. — A palestrante ergue o indicador. — Relações abusivas não se restringem às amorosas, mas também podem ser familiares, profissionais, educacionais ou até mesmo entre amigos. Uma relação de poder, inferiorização, controle e pressão sobre outrem, o torna vítima de um abuso, mesmo que tal não veja com esses olhos.

Ao final da palestra, antes de começar o debate, as duas visitas que dariam depoimentos chegam. Uma aparenta ter oitenta e poucos anos, e a outra vinte. O interessante é a análise entre duas situações tão parecidas, em espaço e tempo distintos, com mentes e criações diferentes. Absorver cada palavra da apresentação me revitaliza. Mesmo não me identificando como uma vítima de abuso, ainda assim, se eu olhar fixamente para os rostos ruborizados atrás de mim, veria diversos alunos tentando esconder a perplexidade por descobrir que algo "normal", não é bem assim.

Aplausos recheiam o auditório, enquanto todos se levantam para prestigiar a coragem daquelas mulheres. Uma por esclarecer algo para todos de forma compreensiva e inteligente, e as outras por exporem suas vivências pessoais sem medo de julgamento ou algo do tipo. Sinto-me orgulhosa por ter contribuído para uma ação tão significativa assim.

Coloco-me de pé e vejo as meninas virem em minha direção.

— Temos que entregar as lembrancinhas, onde tá, Val? — pergunta Carol.

Encaro-a, confusa.

— Lembrancinhas?

Vivian afasta o cabelo do rosto e explica:

— As que você tava fazendo ontem, eu deixei na sua casa antes de ir embora e pedi pra você trazer hoje.

Uma onda de ignorância cai sobre mim, como se eu fosse o ser humano mais burro do universo.

— É... — começo, incerta se devo dizer ou não que as lembrancinhas foram deixadas em algum lugar do escritório do meu pai.

— Valentina, onde estão? As mulheres precisam ir embora — Bianca me apressa.

Passo a mão pelo cabelo, nervosa.

— Eu esqueci — confesso.

A luz fraca do auditório não é suficientemente escura para esconder o desapontamento na face de todas. Encolho o corpo, me sentindo desprotegida diante da situação.

— Você o quê? — Paula, que estava atrás de Carol, toma a frente e se aproxima de mim. — Cê tá maluca? As lembrancinhas eram o ponto chave do encerramento.

— Eu... — Recuo um passo e arrasto os olhos depressa pelo salão, procurando um lugar para me esconder.

— Eu não acredito. — Bianca apoia a testa em uma das mãos, com um olhar aflito. — Sem lembrancinhas, sem encerramento... O que faremos agora?

Bianca encara as outras, que me dão um olhar frio.

— Eu avisei — a voz de alguém se sobressai.

O sorriso de Larissa aparece, vitorioso.

— Ninguém quis me dar ouvidos, agora todas nós vamos pagar por isso. — Ela se acerca de mim, espreitando cada parte do meu corpo.

Retribuo o desdém, porém, estou em minoria aqui e minha cabeça começa a latejar.

— Val, você precisa ser mais atenciosa. Poxa, cara, isso aqui num é brincadeira — o tom de Vivian é alarmante.

— Não acham que eu fiz de propósito, né? Se quiserem...

— Não, Katarina, você já fez o bastante... — Bianca diz e, logo em seguida, arregala os olhos, apertando a mão contra a boca.

Esse momento me arremete àquele, no qual a merda é jogada no ventilador e se espatifada contra as hélices, atirando excremento para todo lado — tais palavras fazem uma luz se acender na minha cabeça, e o sentimento de culpa se tornar de indignação.

É nítido agora que, para essas pessoas, eu realmente sou o peixe fora d'água; mais do que isso: sou o patinho feio, no meio dos bonitos e peludos cisnes. Quem eu quero enganar? A verdade está diante de mim; para aquelas garotas, eu não sou a Valentina e sim a Katarina que restou.

— Val, eu não quis... — Bianca começa.

— Quis sim — digo, conformada demais para quem acaba de ser pega de surpresa. — Mas agradeço pelas palavras. Sem elas, eu nunca ia acordar pra vida...

— Eu só confundi os nomes.

— Sim, mas todas confundiram as gêmeas. Eu sou a Valentina, e não vou deixar que se esqueçam disso.

Pego meu celular e envio uma mensagem para minha mãe trazer — para minha sorte, ela não foi trabalhar hoje.

— O problema foi resolvido — digo, encarando-as e, depois, dando-lhes as costas.

Caminho apressadamente em direção à porta do auditório. Escuto alguém chamar meu nome, mas não dou importância; nada mais importa.

Quando a rajada da brisa bate em meu rosto, volto a sentir tudo o que eu fingia não sentir nos últimos dias. Minhas pernas ganham força e eu corro; não olho para onde, só corro sem rumo, querendo fugir de quem quer que seja a pessoa ao meu encalço.

Avisto uma porta entreaberta e me enfio no cômodo, batendo-a atrás de mim. A escuridão do ambiente me envolve, enquanto caio no chão, sentindo o peso do mundo apoiar-se em mim. Ouço o silêncio dizer: "Você não pode fugir de quem é", "Não pode fingir ser o que não é".

Quem eu sou?

O que eu sou?

Eu sou a Valentina ou os restos da Katarina?

Os olhos ardem e eu pisco forte, para que nenhuma lágrima se atreva cair; não darei esse gostinho ao universo, às amigas da Vivian, nem a mais ninguém. Um soluço escapa da minha boca e eu fico ali, soluçando, esperando a dor dissipar-se. Mas os minutos correm como ponteiros furiosos no tempo e nada acontece, nada muda.

Quando as horas assemelham-se à dias, ouço o girar da maçaneta.

Levanto os olhos, aflita, e me escondo atrás de algumas vassouras. Um rosto velho espia para dentro da escuridão. A mulher entra, acende a luz do quartinho e encara a prateleira à sua frente. Ela pega algo e sai. Agradeço por não ter me notado; seria embaraçoso explicar o porquê de eu ter me escondido no armário de limpeza — porém, a ironia do momento me faz pensar que talvez seja hora de limpar as coisas. 

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