GAROTAS MENTIROSAS SÃO PERFEITAS

TENHA CUIDADO COM O QUE DESEJA, os desejos são poderosos, ainda mais em tardes sombrias como esta, quando o silêncio do mistério se torna comovente e transcende pelas paredes.

Eu gostaria de voltar a algumas horas atrás, quando ainda era a garota envergonhada encostada no portão, relembrando a impulsividade. Mas não sou; a do presente momento está embriagada de verdade. Uma dose tão intensa, que me causa overdose.

O quarto gira, enquanto, deitada sobre o chão, tento encontrar uma forma de lidar com as informações que tenho. O dilema é: se não sou capaz nem de enfrentar o que acabo de descobrir, como posso passar isso adiante?

Estou segurando a maldita granada, prestes a destruir uma das pessoas que mais me importo no mundo, sem poder avisá-lo com antecedência do estrago que estou prestes a fazer.

Não há tempo para ensaios, mas eu preciso praticar, para amenizar a dor que estou prestes a causar.

— Ei, Carlos. Eu descobri a verdade, o problema é que ela não é tão bonita quanto Katarina era.

Será assim um bom jeito de destruir um coração?

Algumas horas antes...

Silêncio, doce silêncio, que atormenta os meus ouvidos, e não se cala em minha mente. O ruído dos segredos presos entre os rejuntes das paredes dessa casa, me deixam ansiosa e desesperada para encontrar qualquer informação que me seja relevante. Conhecendo a ardilosidade dos meus pais, sei o quão inútil é procurar por evidências em seus quartos. Nenhum advogado que se preze, deixaria provas contra si, dando sopa no próprio leito.

Mas eu conheço alguém que deixaria.

Aguardo meus pais irem para a igreja e vou para o quarto de Katarina.

Abro a porta devagar, observo que está tudo arrumado, como na última vez que estive aqui. Porém o cheiro agridoce de desinfetado, denuncia a limpeza frequente que é feita pelo cômodo. Ainda não é fácil estar aqui. Mas preciso enfrentar o desconforto interno; não posso superestimar meus sentimentos, afinal, quem os controla sou eu.

A luz do sol entra pela janela, iluminando os móveis. Ando devagar, pisando com cuidado. O maldito espelho ainda está ali, então evito encará-lo. Abro o guarda-roupa e passo os olhos pelas roupas que, por muito tempo sem tomar o devido ar, cheiram a mofo. Passo a mão num vestido alinhado em um cabide; é azul pastel, com girassóis amarelos cobrindo toda a superfície do tecido.

Tudo está organizado, exatamente do jeito que ela costumava deixar. Será que era assim que ela camuflava a verdadeira personalidade?

Fecho o móvel e volto a andar pelo quarto.

Meus pais devem ter se adiantado com o trabalho e passado aqui antes, para cobrir os vestígios de suas sujeiras. Porém, uma pontada de esperança me faz pensar que a verdade se esconde em lugares discretos. Caminho até a escrivaninha, passo os olhos por ela, tentando encontrar algo que passou batido na última vez em que estive aqui. A caixa a qual encontrei a pulseira da boate, está no mesmo local. Vasculho as gavetas, procurando por qualquer pista.

Dou-me por vencida, não há nada ali, então passo adiante, para a estante de livros. A busca é mais demorada, levo certo tempo folheando cada página do livro, no objetivo de achar algo relevante. Vou de A à Z,, e nada. Ela não deixou nada, em nenhuma página, nem mesmo em seu escritor favorito, cujas obras sempre eram alvo de anotações.

Investigo tudo que meus olhos veem, desde o tapete até a sapataria, e todos os caminhos acabam no mesmo lugar, ou melhor, em lugar nenhum.

Jogo-me na cama, cansada e derrotada demais para buscar mais alguma coisa. De certo, eu estou fazendo algo errado.

— Me ajude, Kat, por favor. Você me deve isso — desabafo, esticando os braços sobre o colchão. — Eu não estaria nessa situação se você não tivesse morrido. — Bufo e bato a cabeça no travesseiro. — Sininho, por favor...

Espreguiço e me sento na beirada da cama. Apoio os cotovelos sobre o joelho e massageio as têmporas. Após alguns segundos assim, percebo que ao me mexer, um lado da cama se afunda mais do que o outro. Ajeito meu corpo e dou dois pulos, batendo as nádegas contra o colchão. Ambos os lados da extremidade parecem aderir ao seu tamanho original, somente o lugar onde me encontro sentada é que possui certo relevo.

Levanto-me e puxo a borda do colchão.

— Bingo! — exclamo, recuperando o ânimo ao ver algo preso sobre o estrado da cama. — Por que você tá aqui?

Pego o notebook com uma das mãos e abaixo o colchão depressa, deitando-me sobre ele novamente. Ao abrir o computador de mão, tenho outra surpresa: colado na tela escura do eletrônico, há um post-it amarelo. Assim como o outro, escrito a mão, com a letra impecável de Katarina. Experimento um leve aperto no peito, acompanhado de um arrepio na espinha.

Agarro a folha de anotações e a leio.

"Não é só porque costumávamos brincar na Terra do Nunca, mas, se existisse uma, minha irmã, eu gostaria de nunca ter feito as coisas que te fiz; fui muito egoísta com o mundo, quando se tratava de você. Val, você é boa demais para o universo, e eu sempre soube disso, então tentei te preservar dele, mas ao invés de te proteger, te exclui e te deixei acreditar que você era ninguém."

Essas palavras são mais profundas do que as do último post-it. Pelo modo apressado como estão escritas, e pela falta de coerência no início na frase, entendo que o texto anterior complementa esse. Tirarei a dúvida mais tarde, quando uni-lo ao que guardei.

Mordo o lábio inferior, tentando absorver as palavras tão duras e diretas, preparadas para atingir profundamente o meu coração. A confissão escrita ali, me faz ter um novo ponto de vista sobre muitas coisas; coisas que não tenho tempo para raciocinar agora. Faço uma nota mental, para enfrentar esses sentimentos mais tarde.

Presto atenção no notebook em meu colo. Alguém estava escondendo aquilo, porém, não tenho como saber quem. Aperto o botão que o liga e aguardo a máquina funcionar.

Quando a tela se acende, uma aba inicial aparece, pedindo senha.

— Tava fácil demais. — Solto um riso sem humor.

Nesse momento, tem poucas coisas que eu tenho certeza sobre Katarina. A pessoa que eu pensava que ela era e a quem ela é de verdade oscilam constantemente. Mas algo que eu sei que nunca mudaria nela, é a necessidade de ser prática; agilidade era coisa dela. Então sua senha tinha que ser algo funcional, fácil de lembrar, mas não tão fácil para que qualquer pessoa desconfiasse — porém, eu não sou qualquer pessoa.

Tento nossa data completa de aniversário e, em seguida, somente o ano e o mês. A próxima tentativa cai sobre nossos signos; ela era cética, o que podia fazer da senha algo não tão óbvio. Continuo tentando várias combinações de nossos nomes, sua idade, o nome de Carlos e o de Áthila...

Uma tela vermelha aparece, dizendo que eu só tenho mais uma tentativa antes do computador bloquear.

— Não fode comigo. — Bato as mãos no teclado.

Uma nova tela surge, perguntando se desejo acessar a pergunta de segurança e eu aceito imediatamente.

— Qual é sua matéria favorita? — leio com entonação, achando a pergunta ridícula.

Ótimo! O destino da minha investigação está nas mãos da questão mais besta do universo; Katarina gostava de estudar, não importava a matéria. Fazia até aulas de reforço, só para ficar mais tempo na escola. Com ela, não havia seleções; uma coisa não era melhor que outra, ela gostava de tudo igual.

— É isso!

Escrevo depressa a palavra "todas", na esperança de ainda saber alguma coisa sobre minha irmã.

Aperto o enter e a próxima tela carrega. Comemoro, fazendo gestos irregulares com as mãos, esperando a área de trabalho carregar por completo. Sinto uma pontada de orgulho, estou começando a acreditar que eu não sou tão inútil quanto pensei.

O plano de fundo é a foto de nós duas nos abraçando, em um de nossos aniversários. No canto direito, há centenas de pastas enfileiradas; a desgraçada tem uma pasta para cada coisa que fazia: igreja, escola, eventos e até do namoro... Não media esforços, quando assunto era organização.

— Bom, se você tá escondendo algo, não vai deixar dando sopa na área de trabalho, né?

Como fiz com o quarto, reviro tudo no computador, tentando encontrar qualquer mini pista que me leve para algum lugar. Em certo ponto, já entediada, clico no ícone de atalho de um jogo, que me redireciona para uma página da web, onde sou invitada a criar um avatar.

— Uma musiquinha, pra alegrar. — Busco pela pasta de músicas.

Seleciono a playlist de nome "Meu sol" e escuto a seleção de estilos variados, a maioria bem difícil de se escutar até o final — que péssimo gosto musical, hein.

Volto para o joguinho e, após concluir o processo de criação do personagem e entrar na interface, recebo um convite para visitar alguns perfis, dentre os quais está o de Katarina. O avatar dela não se difere muito de nossa aparência, a única exceção é a mecha preta sobre a face da boneca virtual. Que tédio, penso.

Olhando o catálogo de roupas, à procura de algo interessante vejo um novo recado; este apresentando uma lista de mais perfis recomendados. O último nome me chama a atenção: @MeuSol. Abro depressa a playlist de música e noto que a última canção também possui tal nome — situação peculiar, mas que não desperta em mim nenhum pensamento relevante.

Abro o programa do computador e pesquiso por "Meu Sol". Há muitas coisas referentes: jogos, arquivos, imagens, pastas, mas o que realmente me chama a atenção é o hiperlink de um site. Clico nele e o que se abre é uma conta fake em uma rede social.

Enfim, a página carrega por completo e me vejo em uma conversa privada, entre a conta fake e outra que possui o nome @MeuSol.

@Ka_anonima diz: Preciso te ver hoje.

@MeuSol responde: Vc precisa ficar suave, amor.

Um ponto de interrogação bem grande se forma na minha cabeça. Será que esse user era de Carlos? Impossível, ele teria me dito algo.

@Ka_anonima diz: Tem que ser hoje, a gente não pode mais esperar.

@MeuSol responde: Mais tarde a gente fala sobre isso...

O que tem que ser hoje? Quem é essa pessoa?

Percebo que a data da conversa condiz ao mesmo dia em que ela... Caralho! Isso é grave, muito mais do que eu esperava encontrar.

Subo a conversa; minhas mãos tremem, sinto uma palpitação ruim no peito. Não posso parar agora. A conversa parece comprida, quanto mais eu rolo, mais coisas carregam.

Isso é invasivo demais. Não posso invadir a privacidade dela assim...

— Para com isso, Valentina — peço-me.

Sei o que estou fazendo, criando um obstáculo para não me arriscar. Quando a situação se torna comprometedora, eu caio fora. Porém isso não é somente uma simples situação. O que eu estou prestes a descobrir, mudará tudo. É isso que a verdade faz, revira tudo, ou não; talvez ela só coloque as coisas no devido lugar.

Busco ar para acalmar minha respiração, as palmas das mãos suam e eu sinto uma pontada na cabeça. Não estou pronta, mas a vida é assim, nunca espera que você esteja preparado.

Aspiro o ar novamente e então continuo.

@Ka_anonima diz: É melhor a gente conversar por aqui, é mais seguro. He he.

@MeuSol responde: KKK, a famosa Katarina não é tão corajosa assim.

@Ka_anonima: Famosa, eu? Jamais he he.

As primeiras conversas são somente flertes, e tudo se resume àquela enrolação cômica de começo de relação, com trocas de palavras muito bem colocadas e tudo mais. Com o decorrer da leitura, concluo que não é Carlos o confidente das mensagens íntimas; ele tem uma forma única de se expressar, e eu saberia com certeza se essas palavras fossem dele.

Isso é terrível.

O fato dele não ser o user, só aumenta a minha preocupação, à medida que o assunto esquenta.

@Ka_anonima: Acho que te amo.

Ao ler isso, sinto um embrulho gigantesco no estômago.

@MeuSol: Quando vai terminar com aquele moleque? NÃO dá pra continuar ficando assim...

@Ka_anonima: Não é tão fácil assim.

Nesse instante, abandono o notebook sobre a cama e me levanto. Não sei o que estou sentindo. É uma coisa ruim, misturada com outra pior. Tudo parece subir depressa pela minha garganta, o que a faz arder. Não quero acreditar que acabei de ler isso... Não posso.

Saio do quarto e corro em direção ao banheiro do corredor. Agacho-me sobre o vaso e o vômito escapa pela boca; não há cor, nem cheiro; ele insiste em sair mais algumas vezes e, quando finalmente acaba, um gosto amargo domina minha boca.

Uma agitação irritante circula meu corpo, agora a sensação que tenho é de formigamento. A cabeça dói e o peito clama por um alívio. Katarina simplesmente não pode ter feito aquilo.

— Por favor, Sininho, não mude tanto. Se não, eu não vou saber te reconhecer — reclamo, afundando as mãos sobre o rosto suado.

É um pesadelo, concluo, dando alguns tapas no rosto, tentando me acordar. No entanto, nesse terrível pesadelo, eu vivo acordada. Levanto-me do chão e lavo o rosto, esperando aliviar o tremor com o gelado da água, mas nada muda. Volto ao quarto, pego o notebook, o post-it, e me arrasto em direção ao meu quarto. O sentimento que tenho é de estar em uma queda livre constante, sem saber no que me agarrar.

A verdade não é nada gostosa de se digerir. Principalmente essa, que faz de mim a mensageira do diabo. Carlos teria que saber, mas Katarina fez questão de que eu desse conta da tarefa e esmagasse o coração dele com minhas mãos.

Jogo o maldito notebook sobre a cama e me estiro no chão gelado; sinto-o oscilar. As estrelas no teto brilham com a ausência de luz no ambiente. Sem que eu perceba, a noite vem, calada e ardilosa.

O que ela havia feito era imperdoável e o que eu teria que fazer também.

Coloco as mãos sobre o rosto, está quente e, provavelmente, ruborizado; é a vergonha; primeira vez que sinto vergonha de ser gêmea de Katarina.

A terrível descoberta me faz entender que garotas mentirosas são perfeitas.

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