A VERDADE VOS LIBERTARÁ

O MUNDO É UM MOINHO que vai girando e triturando tudo que existe em você, até restar-se o pó; pronto, você não é mais nada. A verdade é que nunca fomos, mas precisamos dar sentido à vida e por isso nos sentirmos importantes, julgamos ser alguém.

Mais uma noite mal dormida. Sonhei com ela correndo pela casa, tentei segurar sua mão e ela virou fumaça entre meus dedos. Depois sonhei que estava me afogando. O lugar era escuro, não havia nada e nem ninguém, estava frio e eu sentia muito medo. Tentei gritar, mas a água prendeu-se em minha garganta e entupiu minhas narinas. Tentei me debater, nadar, sobreviver, porém quanto mais eu fazia esforço, mais meu corpo cansava. Então, quando parei de resistir, tudo ficou preto e enfim acordei, ainda sem fôlego; parecia que eu estava vivendo cada momento infeliz dos "prováveis" últimos minutos da minha irmã. Ela também esteve debaixo d'água, sozinha, sem ninguém para ajudá-la, mesmo tendo feito tanto pelos outros.

A festa da noite passada havia sido tediosa e eu sentia que este sábado seria ainda mais. Ouço vozes no corredor, meus pais finalmente estão em casa. Eu não sei o que temo mais, a ausência ou a presença deles. Não posso mais me iludir, fingindo ser uma solteirona que mora sozinha, pois a realidade me espera e eu tenho de enfrentá-la.

Caminho desanimada, arrastando os pés. Minha cabeça lateja, a poluição sonora da noite anterior não fez bem ao meu cérebro, consigo senti-lo vibrar até agora. Tenho medo de chegar na cozinha e me deparar com DJ Dedé tocando mais uma das suas músicas desastrosas.

Ouço vozes e um bater de panelas, vindos da cozinha.

— Betty me pediu para levar a assadeira. Você a viu, Marco? — pergunta a progenitora da minha existência.

— ... Não, não, Jhonny, escute o que eu tô te dizendo. A Maria não pode pegar aqueles papéis, entendeu? — indiferente ao questionamento, meu pai esbraveja ao telefone.

— O que disse? — Mãe o encara, ajeitando seus cabelos dourados, que batem na altura dos ombros.

— Eu já disse que não vi aquilo, Lia — o homem responde. — Não, Jhonny, eu tô falando com a Talia. Ainda tá me ouvindo? — Ao não receber resposta, ele fecha a cara e aperta o celular, gesto impaciente que dá a impressão de aumentar sua altura já superior e o ar intimidador.

— Marco, a comitiva da Betty é hoje à tarde, você disse que ia dar um jeito de achar a assadeira. Também precisamos de um vinho, sem Merlot, por favor. — Minha mãe abre a geladeira e vasculha as coisas. — Cruzes!

— O quê? — Meu pai afasta o celular do rosto, o tapando com uma das mãos.

— Eu disse sem Merlot, Marcos. Jesus Cristo! Em que planeta você vive? — Ela fecha, com força, a porta.

— Sem Merlot, certo. — Mais do que depressa ele volta ao telefonema. — Jhonny, passe pra Flávia, eu quero remarcar essa reunião... O quê? Como assim ela não está?

Continuo observando a cena, encostada na parede; a situação me lembra uma feira. Com tal capacidade vocal, eles até poderiam abrir a própria igreja, e nem precisariam de amplificadores sonoros.

Sobre a mesa onde, por lógica, deveria estar o café da manhã, há um monte de folhas espalhadas, dentre as quais os olhos exaustos do meu pai parecem procurar por algo específico — quando ele não acha, esbraveja e bate com força na superfície de madeira.

Mamãe o encara, séria.

— Ei, isso foi um presente da minha tia-avó, tenha cuidado.

— Jhonny, eu quero falar com a Flávia, se vire. Vou chegar no escritório em uma hora e quero ela aí.

— Escritório? Marco, e o buffet da Betty? Será que só eu me importo com compromissos nesta casa? — Ela enche uma jarra de água e coloca sobre a bancada ao lado do fogão.

— Bom dia — digo por fim, passando por entre a bagunça e indo à geladeira.

Ninguém responde; já era de se esperar.

Pego uma garrafa de suco e vou até o armário. Quando o abro, vejo várias sacolas amontoadas, formando uma armadilha que está prestes a cair na minha cabeça.

— Nãooo! — Ouço minha mãe gritar. — Valentina, não é pra mexer aí.

— O que é isso? — pergunto, enquanto ela me afasta de lá e fecha a porta.

— Aquilo é da arrecadação, a Betty e eu estamos levantando alimentos para doar à igreja. Não é ótimo? — ela indaga, com um sorriso nos lábios.

Seu rosto parece desfalecido, envelhecido; pés de galinhas se formam na curvatura dos olhos castanhos, sempre que ela sorri e tal olhar transmite uma tranquilidade ilusória — quando quer, mamãe pode ser mortal, e geralmente ela quer. Enfim, eu até entendo todo esse estresse que ela conserva, não é fácil salvar vidas ou trazê-las ao mundo.

— É maravilhoso — respondo, ríspida.

— Você deveria ir com a gente.

— Onde? À igreja? — Eu a encaro, perplexa.

— Sim, onde mais seria?

— Muito engraçado, mãe, mas piadas não são o seu forte. — Dou um tapinha no ombro dela e caminho em direção ao corredor, pensando que foi uma péssima ideia ter entrado no cômodo e interagido com eles.

— Não é piada, Valentina. Você acha que a casa do Senhor é uma brincadeira?

— Isso vai depender de qual senhor estamos falando.

— Marco, ouviu só o que essa menina acabou de dizer? Que insolência! No meu tempo...

Deixo-a falando sozinha e, quando entro no quarto, ainda posso ouvi-la reclamar; a mulher é incansável... Como tinha fôlego para encher o saco dos outros, mesmo depois de atuar num plantão médico de vinte e cinco horas?

Sento num canto do quarto, o chão está gelado, abro a garrafa e tomo o primeiro gole de suco, observo as estrelas no teto. Tudo está igual, ou talvez esse seja o mecanismo que eu desenvolvi para camuflar a ausência dela, acreditando que se tudo está como antes, ela também está; apego-me a esses lapsos de esperança, me sustento neles, afastando a sensação horrorosa de estar sempre prestes a desabar; eu não quero ruir.

Penso na cena que presenciei há pouco, e me indigna a forma como meus pais parecem não sofrer da mesma tortura mental que eu, daquele constante medo de desmoronar, para eles, é como se Kat nem houvesse partido. Mergulhar ainda mais no trabalho, ou em atividades beneficentes, seria a maneira deles de fugir? Pois se não fosse, e eles estivessem realmente mais preocupados em seguir o cronograma social do que sentir a falta dela, eu jamais os perdoaria.

Ainda assim não justifica a total indiferença que eles parecem sentir aos fatos, a menos que... Eles soubessem de algo que eu não tenho conhecimento e por isso estão tranquilos diante tal situação... Estão escondendo algo, provavelmente camuflando isso com a normalidade forçada que a pouco testemunhei. Seja o que for, é a hora de encarar a realidade e buscar uma respostas para todas essas dúvidas que me assombram.

Levanto-me, bruscamente, e caminho em direção às janelas, abro-as. Sinto a luz do sol invadir minhas retinas e seu calor aquecer meu rosto.

Chega de frio e escuro; se eu realmente quero enfrentar todas as dúvidas referentes aos acontecimentos que levaram minha irmã a fazer o que fez, é recomendável começar a transformar minha mente num espaço mais claro, do contrário eu acabarei como ela: afogada na escuridão.

São quinze pras seis da noite, o sol está se pondo. Enquanto caminho, consigo ouvir o cântico infeliz das cigarras e o bater de asas dos pássaros que seguem em conjunto para os seus ninhos. O crepúsculo borra as nuvens com cores amarelas, alaranjadas, corais e um leve arroxeado; uma linda tela para se observar.

Neste horário, o parque São Luís está repleto de pessoas, casais fazendo caminhada, pais levando os filhos para dar uma volta de bicicleta, crianças brincando; ouço suas vozes chacoalhando entre a brisa, como folhas no outono; algumas são agudas, outras graves, cada qual representando a intensidade do corpo em que habita.

Eu não costumo fazer isso, sair pra caminhar, mas li na internet que ajuda a pensar e eu preciso disso, organizar as ideias. Passei três meses sendo comida por dúvidas, mas agora eu irei saciar a minha fome. Não sei por onde começar a procurar, nem pelo que procurar, só sentia que para aquela dor passar algo novo deveria brotar no espaço que ela deixaria, e eu decidi que fosse a verdade.

Fico ofegante, o parque São Luís fica há duas quadras de casa, mas meu corpo fadiga como se tivesse corrido uma maratona. Avisto um banco, de frente para um campo de areia, e me sento. Um grupo de rapazes joga futebol, suas figuras furiosas e cheias de adrenalina gritam, xingam e esbravejam, o tempo todo; deve ser o excesso de testosterona num único lugar.

Desvio a atenção da disputa de egos e a transfiro ao rapaz que corre com o seu cachorro, da raça São Bernardo. A pele do garoto é tão clara, que se o sol tivesse no auge, provavelmente atravessaria o corpo dele; os cabelos são castanhos escuros e suados, lambem a sua testa. Seu peito ofega, tem algo muito familiar na forma como ele se estica enquanto corre. Quando chega perto o suficiente para que eu consiga de fato ver seu rosto, um ar frio comprime minha barriga: é Cadu — tudo bem eu não reconhecê-lo, mas como eu fora capaz de negligenciar até mesmo Athila, um inconfundível gigante?

Cadu está distraído, e de fones, penso que é melhor ficar na minha, mas assim que esse pensamento me ocorre, sou notada por seus olhos. Primeiro seu rosto ganha uma expressão de surpresa, depois um sorriso vivo, cresce.

— Se eu não tivesse passado o dia me livrando da ressaca, poderia jurar que ainda estou bêbado e tendo alucinações — ele diz, ofegante, sentando o corpo suado ao meu lado.

— Ha ha ha, muito engraçado.

Athila senta-se entre as pernas de Cadu, com a enorme língua para fora da boca. Passo a mão sobre a cabeça dele.

— O que você tá fazendo aqui? — pergunta, passando o braço suado pela parte traseira do banco, exalando um cheiro forte de desodorante.

— Existindo.

— Tô falando sério — insiste.

— Athila, por que você trouxe esse animal intrometido pra passear sem focinheira? — pergunto ao cachorro, que responde com uma lambida na minha perna.

— Dá pra parar de me difamar pro meu cachorro? — ironiza, puxando a coleira de Athila, deixando-o mais perto de si. — Agora, sem gracinhas, responda a pergunta que eu te fiz.

Suspiro, decepcionada, eu não sei porque ainda tento esconder alguma coisa dessa praga. Se eu tivesse feito uma tatuagem na bunda, ele descobriria, só de olhar pra minha cara, nem tinha graça guardar segredos deles.

— Meus pais estão em casa.

— Ah, isso explica tudo.

— Mas não é só isso... Eu andei analisando algumas coisas e cheguei à conclusão de que eles estão escondendo algo — falar isso em voz alta é estranho e, ao mesmo tempo, aliviador.

— O quê? — Ele sorri, sem me dar credibilidade. — Outro jantar beneficente na igreja?

— O assunto é sério, Cadu, eu não percebi antes, pois eles estavam meio afastados, mas eles estão muito tranquilos para quem acabou de perder a filha favorita num desastre. Eu não entendo, é como se eles estivessem pouco se fodendo pro que aconteceu.

Cadu engole em seco e fica em silêncio por um tempo, encarando o pelo do cachorro.

— Talvez você ache isso exatamente porque não os vê o tempo todo.

— Você não entende, Katarina era tudo pra eles e, de repente, ela faz aquilo e os dois não parecem se estar nem um pouco abalados. Fora isso, há o carro. Alguém foi roubado naquela noite, então porque não houve queixa? Tá certo que geral gostava da Kat, mas eu não consigo pensar em alguém aceitando um prejuízo, de perda total, sem ao menos fazer um telefonema aos responsáveis pelo dano — digo, notando sua mudança de expressão.

A confusão se mostra evidente em cada franzir de cenho que Carlos dá. Ficamos em silêncio durante uns minutos e eu procuro resgatar o máximo detalhes estranhos dos últimos meses.

entende que não é normal, né? A filha morrer e eles estarem conversando, tranquilaços sobre que vinho levar num buffet com a comitiva sei-lá-das-quantas da Betty? É como se eles estivessem conformados, o que eu afirmo não ser possível, pelo menos não se, assim como eu, eles não soubessem o que levou Kat a fazer aquilo. Sinto que eles podem estar escondendo algo.

— Não pode ser, se seus pais soubessem o porquê dela ter morrido, não teriam motivos para esconder. — Ele engole em seco, desviando o olhar, parece ter medo até de dizer o nome dela.

— Pense bem, meu pai é um advogado muito influente, assim como minha mãe é uma médica, os dois teriam muito a perder se algo tivesse acontecido naquela noite; algo que manchasse a reputação deles. Principalmente se for com a igreja, minha mãe não suportaria ser julgada pelos fiéis. — Faço uma pausa e umedeço os lábios. — O status social deles vale muito, ao ponto de que, possivelmente, alguém foi silenciado, para não dar queixa de roubo pelo carro.

— Mas o que sua irmã teria feito de tão grave, além do roubo, para manchar a reputação deles? — ele se questiona, voltando a me encarar. — Ela era uma garota muito correta pra fazer algo tão ruim.

— Talvez não tenha feito de propósito. E se foi um deslize? Um pequeno erro, que acabou resultando em tudo isso? — Coloco a mão na cabeça, sentindo-a latejar.

— Como uma grande bola de neve...

— Exatamente. E se, naquela noite, ela não terminou com você porque quis, se estivesse tentando proteger você?

Sofro de um pressentimento ruim ao levantar tais questões, como se paredes invisíveis me separassem do que realmente acontecera, e odeio essa cegueira que me rouba a visão sobre a realidade dos fatos. Eu não sou burra, noto a sujeira sendo varrida para debaixo do tapete, mas, bem, quando o assunto é sujeira, não importa quão grande fosse, minha capacidade de superá-la é maior.

— Tina, você tá viajando, ela não teria do que me proteger e, do jeito que você está falando, até parece que seus pais são assassinos. — Ele coloca a mão sob meu ombro.

— Não acho que sejam, mas isso não altera o fato de que estão escondendo alguma coisa. Eu preciso checar, tirar o peso da consciência, mas não sei se consigo sozinha, então você irá me ajudar.

— Ajudar com o quê? Tina, cê tá me assustando. — Seus olhos verdes estão arregalados.

— Antes, você disse que não estava preparado, mas eu preciso que esteja, porque nós vamos descobrir a verdade.

— Tina, eu não posso...

— Não pode porque? — Desvia o olhar, tentando não aprofundar o assunto, porém estou tão atônita, que as palavras saem no automático. — Por que a sua covardia prefere viver na dúvida que sofrer com a verdade? Você não está cansado? Sabe, de sentir essa ânsia que parte o peito em dois, as perguntas constantes, a culpa... Não quer acabar com tudo isso? — Encaro-o, em desespero, preciso da conivência dele.

Cadu fica em silêncio, posso ouvir seus batimentos cardíacos acelerarem; sua respiração também parece incontrolada. Observo-o cerrar os punhos com força; está confuso, bom sinal, significa que ele saiu da zona de conforto e está se questionando.

— E co-como pretende fazer isso? — Percebo um brilho esperançoso brincar com o verde apagado de seus olhos.

— Isso significa que você vai me ajudar?

— Supondo que sim, como exatamente isso seria?

— Não posso me dar ao luxo de avaliar a possibilidade. Você vai ou não? — insisto.

Ele suspira pesadamente e assente com a cabeça.

— Vou... Talvez esteja certa...

— Talvez?

— Eu não sei. — Ele engole em seco mais uma vez. — Eu só... Você parece ter mais certeza do que eu, só isso.

— Não toda a certeza que eu preciso, mas o bastante para não aceitar a situação como um "simples acaso". Acho que, pela primeira vez, estou pronta para encarar as coisas.

— Isso me impressiona, ao mesmo tempo que assusta.

Olho para ele, de canto, e sentimentos vêm; medo, insegurança, esperança, alívio, dor e libertação. Apesar de cética quanto a existência de um deus, eu concordava que a bíblia continha muitas verdades — dentre elas, havia uma no livro de João, que se aplicava muito à ocasião: "A verdade vos libertará".

Eu estou pronta para ser livre.

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