Prólogo

Nashville, Tennessee 1849

Andando sozinho, por uma encruzilhada erma e escura, completamente desidratado, sentindo febre e náuseas, seu único objetivo era também uma incógnita. Não haviam garantias quanto a veracidade do que estava prestes a fazer, mas como não lhe restavam muitas escolhas, usou seu último resquício de força para cavar um buraco raso naquele solo arenoso.

No decurso de um grande surto de cólera, que se espalhou por todo o rio Mississipi a partir dos navios de imigrantes irlandeses vindos da Inglaterra para os Estados Unidos, atingindo Nashville entre 1849 e 1850, Charles Aloysius Baltimore se encontrava falido e a beira da morte.

Comprado aos dezessete anos por um abolicionista inglês, o homem que beirava os trinta anos, como a maioria dos escravos libertos ou fugitivos, decidiu por se refugiar no Tennessee, vindo a ganhar seu sustento através de muito esmero, em uma fábrica de peixes enlatados.

Sendo Charles vítima da pandemia, já podia sentir os primeiros sintomas da doença bacteriana que se alastrava com força pelo estado. As condições precárias do alojamento onde vivia e o consumo de peixes e mariscos malcozidos foram os fatores de maior risco para a doença que o assolava.

O pequeno buraco que havia feito serviu perfeitamente para acomodar a trouxinha de linho, que continha todos os ingredientes necessário para o feitiço. Após enterrá-la, Charles ergueu-se e pronunciou as palavras de conjuração:

"Invoke mali spiritus, veniunt ad me, et faciem ejus revelare".

Um vento forte soprou, balançando os galhos secos das árvores e agitando as poucas folhas que ainda restavam nelas, num assovio feral que o fez estremecer.

─ Ora, ora, ora... vejamos o que temos aqui! ─ disse uma voz feminina e bastante atrativa.

Charles virou-se para olhar a forma que se materializara a poucos metros dele ─ Quem é você? O diabo? ─ perguntou ele, assim que se deparou com uma mulher negra e extremamente bonita.

─ Errou por pouco! ─ riu ela, de modo debochado ─ Sou um demônio e meu nome é Freya, mas creio que já devas saber disso, pois foi você quem me invocou!

─ Sim, é verdade, eu invoquei-te ─ admitiu o homem, aproximando-se um pouco mais ─ Embora nunca houvesse imaginado algo tão belo assim.

─ Essa é apenas uma de minhas muitas formas ─ seu sorriso brilhava, ao refletir a luz do luar ─ Achei que fosse gostar!

Subitamente, os olhos da mulher, negros como a noite, mudaram de cor, transformando-se em um vermelho vivido e aterrorizante, fazendo Charles recuar, visivelmente assustado.

─ Calma! Não há o que temer ─ disse o demônio ─ Estou aqui apenas para dar-lhe o que deseja, basta me pedir.

Levando a mão ao estômago, sentindo a dor lhe assolar outra vez e entendendo que lhe restava pouco tempo, ele pleiteou, sem nem ao menos hesitar ─ Quero ser abastado, ter riquezas e viver bem, como quem um dia me escravizou.

─ Vejo que também precisará de saúde renovada para usufruir do que me pede ─ afirmou ela. Sua expressão apática contrastando fortemente com um sorrisinho ladino, repleto de ponderações ─ O que achas de eu lhe dar dez anos de uma vida bem melhor do que a que tens hoje?

Charles uniu as sobrancelhas, desconfiado ─ E o que ambiciona ter de mim em troca disso, já que não possuo nada que possa ser de seu interesse?

A figura negra e libertina soltou um gargalhar quase teatral que se misturava a uma postura levemente zombeteira ─ E o que mais um demônio de encruzilhada poderia querer se não a alma de seu freguês?

Charles sorriu com desdém, vendo a forma feminina se aproximando dele aos poucos e murmurou ─ E como faremos para selar o pacto?

A mulher então tocou-lhe o rosto, anuiu a cabeça levemente de um lado ao outro e o beijou, num ato timbrado de que o espírito de Charles agora pertencia a ela, firmando o contrato mais tolo de sua vida.

Posteriormente, uma fumaça preta se formou a frente do homem, fazendo com que o demônio desaparecesse por ela, mas quase que instantaneamente houve o regresso do mesmo, agora munido de um pequeno baú de madeira.

─ Aqui está seu ouro! ─ disse-lhe Freya, abrindo a arca que continha algumas poucas moedas douradas.

─ Somente isso? ─ questionou ele ─ Isso mal dá para comprar uma velha choupana, como pensas que viverei dez anos com essa ínfima quantia?

─ Esse é o maior equívoco da raça humana, desconhecem o poder do oculto ─ a ironia presente na fala da mulher lhe deixava ainda mais atraente aos olhos de Charles ─ Essas moedas são de ouro fundido nos mais profundos confins do inferno, são mágicas e assim que uma deixa o baú, outra prementemente a substitui. Observe!

A demonstração do que ela dizia fez os olhos do rapaz brilharem, diante do que lhe parecia impossível. Daquele momento em diante, ninguém mais o trataria com qualquer indiferença, tudo o que quisesse ele teria. Finalmente poderia casar-se com a mulher que amava, sem que o pai da moça se opusesse, pois, em sua percepção o dinheiro comprava até mesmo o mais honesto dos homens.

A fumaça preta voltou a se formar, se dissipando no ar em segundos, dessa vez levando o demônio de volta ao abismo, mas o baú com as moedas permanecia ali, ao chão, aguardando por seu novo possuinte.

A medida que Charles ia andando e se afastando da encruzilhada, com o tesouro em mãos, as manifestações da doença começavam a desaparecer gradativamente, até não lhe restar mais nenhum incomodo. O demônio havia cumprido com a segunda parte do trato, ele parecia estar curado.

Com o passar dos anos, o antigo escravo adquiriu tudo o que almejava ter. Comprou uma propriedade luxuosa e também a fábrica de enlatados a qual fora empregado. Mesmo contrariado, Edgar Lynch concedeu a ele a mão de sua única filha Gwyneth, uma típica moça irlandesa, com belos e expressivos olhos verdes e com ela Charles tivera um filho.

A proximidade do fim do contrato fez com que Charles passasse a pesquisar um pouco mais sobre a prática que realizara, o levando a descobrir que a danação eterna era mesmo real e da maneira mais cruel, deu-se conta de que dez anos de bonança não valiam uma eternidade de dor e sofrimento.

Sua nova vida era boa, mas as consequências de seu acordo macabro passaram a lhe assombrar e motivado pela certeza de que não merecia padecer no inferno por querer um futuro diferente do que lhe havia sido escrito ao nascer, Charles transformou sua mansão em um santuário de estudos ocultos.

Ele passou a visitar bruxas e xamãs por todos os continentes, viajando com sua esposa e filho pelos mais diversos antros de bruxaria e magia negra, tentando entender tudo sobre a vida após a morte. Se tornou assim um homem culto e de inteligência genuína, capaz de desvendar códigos e achar brechas nos mais variados contratos, até mesmo sendo eles redigido pelo próprio diabo.

No dia de sua morte, em uma clareira na floresta, quando o ceifador se aproximou dele, disposto a levá-lo para as trevas, Charles preparou um ritual, ajudado por Gwyneth que em meio ao choro incessante pela eminente perda do marido, tratou de agrupar todos os ingredientes para o feitiço.

 ─ Adeus, minha querida Gwyneth ─ balbuciou o homem, já quase sem forças ─ Não chore, pois, tua tristeza me faz querer encarar a besta e vencer, mesmo sabendo que esse feitiço és o único modo para tal façanha.

─ Será deveras doloroso viver sem você, mas mais aterrador seria pensar em uma eternidade de dor para aquele que mais amo ─ os lábios dela se juntaram aos dele pela última vez ─ Adeus, meu amor.

Ela não era capaz de ver o que ele via, pensava se tratar apenas de uma alucinação, mas a sombra da morte rondava sua matéria, sugando a essência que em breve seria levada a um destino cruel.

No entanto, quando as chamas do inferno já surgiam em seu caminho, as palavras ditas por ele, em seguida fecharam o portal de labaredas altas.
As batidas do coração de Charles Aloysius Baltimore cessaram, a exatas três horas da manhã, mas inexplicavelmente sua alma não foi para o inferno como pretendido pelo demônio e desde então, uma atroz maldição foi atada aqueles que herdassem seu sangue.

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