Capítulo 3
"Gastronomia é a arte de usar comida para criar felicidade."
Theodore Zeldin, historiador e filósofo inglês.
Flora desperta pontualmente às cinco da manhã e sai para sua corrida matinal de quarenta minutos. Desde criança, sempre acordou com o galo cantando. Encanta-se em ver o dia raiar, faça sol ou chova. Praticar exercícios físicos e cuidar da saúde é de extrema importância para realizar seu trabalho com esmero. Cozinhar exige disposição e bom humor, além de uma boa dose de amor para preparar pratos com qualidade e apetitosos.
O bairro do Morumbi tem ruas arborizadas, que levam tanto a casarões imponentes quanto a condomínios modernos, e com muitas áreas verdes. Em seu trajeto de corrida diário, Flora passa pelo Palácio do Bandeirantes com sua imponente arquitetura e seus magníficos jardins; um local de história, cultura e arte.
Toda essa bela paisagem fazem o coração de Flora se encher de paz e gratidão. Tudo que ela sofreu anteriormente é compensado pelas oportunidades que a vida lhe apresenta.
Antes das sete horas, Flora está de volta à mansão. Um banho rápido e ela está pronta para começar mais um dia de serviço, na data em que completa uma quinzena na função de cozinheira da família Luterno de Moraes. Ela passou em todos os testes. Conhece a madame Cora Mirtes apenas pelo que lhe é dito e pelas fotos que vê nas redes sociais. Percebe que Stella se torna reticente ao comentar as opiniões da patroa, mas é fato que suas refeições devem ter sido aprovadas ou já teria sido demitida.
Flora tem se empenhado ao máximo para compor pratos que atendam à dieta da madame, com a sofisticação a que Cora Mirtes está acostumada, usando os recursos que aprendeu desde pequena. A cozinha é seu mundo mágico e nas panelas ela realiza as suas "feitiçarias" com as ervas e os temperos que agora enfeitam a janela do local. Ela percebeu que, além do temperamento difícil, pelo que diz a governanta, a madame também tem problemas físicos e emocionais. Associa aos pratos que prepara umas pitadas daquilo que possa trazer uma melhora para a patroa. Da sua pequena horta, compõe pratos salgados e doces utilizando orégano, manjericão, cominho, alecrim e o açúcar de melissa, que ela mesma prepara, com o qual adoça sucos e finaliza doces. Sabe que a chave de seu tempero é a poção de amor que deposita a cada ingrediente que acrescenta em seus preparos. E os efeitos dessa magia mostram sinais positivos.
A manhã parece seguir a rotina tranquila dos últimos dias até que um vendaval em forma de pingo de gente adentra a cozinha e estaca em frente a Flora com uma carinha de poucos amigos.
— Quem é você?
Flora olha para a Maura tentando entender quem é aquela menina.
— Essa é a Carola, filha do senhor Humberto, ou Beto como o chamam, um amigo de infância do senhor Paulo Henrique, o filho da madame.
A ira da garotinha se direciona para Maura.
— Quem você pensa que é para falar sobre mim ou sobre meu pai? Eu não perguntei nada para você. Perguntei para ela, que ainda não me respondeu.
Flora se surpreende com tamanha arrogância em uma criança de não mais de seis anos
— Meu nome é ...
Nesse momento, Stella surge na cozinha, chamando a atenção para si.
— Carola, querida, seu pai quer falar com você. A tia Cora Mirtes quer muito vê-la e a aguarda na sala. Vamos e no caminho você me diz o que posso preparar para você hoje.
As duas saem da cozinha sem que Flora pudesse se apresentar. Sua testa franze ao avaliar a situação que lhe deixou perplexa.
Maura toca em seu ombro de forma carinhosa.
— Não se aborreça com esse comportamento da Carola. Tudo isso é fruto da educação que ela teve ou, melhor dizendo, não teve. Os pais se separaram quando ela ainda era bebê, com um divórcio litigioso que foi até matéria de jornal e a menina cresceu em um ambiente hostil. Ela tem tudo o que o dinheiro pode comprar, menos atenção e carinho. Essa forma arrogante de ser ela aprendeu com a mãe, que é uma pessoa esnobe e insuportável. O pai é mais gentil, mas também não é flor que se cheire. Mantenha distância! O homem se gaba de ser irresistível e não pode ver um rabo de saia.
Os olhos de Flora ficam marejados de imaginar o quanto aquela menininha sofre. Toda a agressividade expressa é apenas uma couraça que ela criou para se proteger.
— Gostaria de poder ajudá-la de alguma forma. Você sabe o que ela gosta de comer? Talvez um sanduíche ou um doce?
Maura coloca às mãos na cintura e balança levemente a cabeça em negativa.
— Ela é um caso perdido, Flora. Outras cozinheiras antes de você tentaram a mesma estratégia e foi um desastre. A pestinha pode estar faminta e salivando de vontade de comer, mas ela vai jogar o prato no chão ou atirar a comida em você, gritando que tudo é nojento. Somente Stella consegue controlar um pouco o temperamento da pequena.
Flora percebe que a Maura tem razão e ela não cairia naquela armadilha infantil. Decide seguir sua rotina, mas inclui alguns pratos diferentes no cardápio do dia. Deixaria a magia agir por conta própria. Lembrou-se de um psiquiatra famoso, que era cliente de um restaurante de comida japonesa na qual ela trabalhou. Ele sempre chegava tarde da noite, quando o local já estava vazio, perto da hora de fechar. Um dia a convidou para sentar-se à mesa com ele e acompanhá-lo na refeição. Ela lhe serviu uma barca de sushi e sashimi. O médico trabalhava muito e tinha pouca vida social. Era um homem de meia idade, muito inteligente e extremamente habilidoso para lidar com as emoções. Flora aprendeu muito com ele. Em uma dessas conversas, o doutor lhe ensinou que nunca se deve discutir com uma pessoa surtada, pois esta não estará pronta para lhe ouvir naquele momento. Deve-se tomar ações paralelas, envolvendo familiares ou amigos do paciente para poder tratá-lo. Aquela garotinha tinha uma atitude agressiva e descontrolada, que poderia, talvez, ser encaixada nesse perfil.
À tarde, enquanto prepara o jantar, Stella entra na cozinha e comenta que, para espanto de todos, Carola havia adorado os bolinhos de arroz crocantes, recheados com carne moída e muçarela.
O alecrim não foi mencionado e nem sentido, mas estava presente no tempero da carne, assim como o manjericão que foi acrescentado na massa. Porções de tempero, na dose correta podem mexer com as emoções.
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