VI

  "Memórias podem aquecer o seu interior. Mas elas também podem te rasgar por dentro."
– Haruki Murakami, em Kafka à Beira-mar .

Com os dedos em tremedeira, respirei fundo para não sofrer um ataque cardíaco com aquele contato tão íntimo e, ao mesmo tempo, tão simples.

Ele sugeriu que pegássemos seu carro e que me levaria até minha casa. De início, fiquei com o pé atrás, sabe? Pra uma menina do subúrbio, aceitar caronas de estranhos assim, tão do nada, era um atestado de óbito completo.

Aceitei, no entanto, pensando em ter que ficar sozinha naquela estação.

Miguel não soltou minha mão enquanto atravessávamos a Central, porém, permaneceu sem dizer qualquer palavra ou me olhar, mesmo que de relance. Aquilo estava me matando!

- Olha... Quer saber? - Freei nossos passos, fazendo com que seus olhos encontrassem os meus. - Acho melhor eu ir sozinha mesmo.

- O carro está logo ali... - Seu sorriso iluminou a escuridão. - Eu juro que está segura.

- E como eu poderia acreditar em você? - Tentei levantar a sobrancelha, sem sucesso. Porcaria de coordenação motora bichada!

- Não pode, mas deve. Tenha maior confiança no desempenho de um homem que espera ter uma grande recompensa do que no daquele que já a recebeu. - E lá estava ele novamente, preso naqueles lábios lindos: o sorriso maroto de alabastro.

Para minha surpresa, quando chegamos ao veículo, não era um Camaro Amarelo ou o último modelo dos carros da moda, mas, sim, um genuíno Cadillac Eldorado preto, quadradão, mas brilhante e bem restaurado. Instintivamente, colei o nariz no vidro, ainda do lado de fora, quase babando em cima daquele painel vintage, o volante fino e os bancos de couro bege.

Miguel soltou sua segunda risada da noite, não tão estrondosa quanto a primeira.

- Você gosta de carros? - Perguntou.

- Você gosta de comida? - O sarcasmo era evidente, todavia, mantive um sorriso debochado no canto da boca.

- Eu gosto de você.

Engasguei e quase cuspi todo o meu almoço naquela lataria imaculada. Antes que pudesse responder ou sequer encará-lo, o rapaz passou o braço por trás da minha cintura e seu corpo caiu por cima do meu delicadamente. Deu pra sentir um perfume amadeirado vindo da gola da camisa enquanto minha testa por pouco não roçava em seu pescoço.

Fechei os olhos, esperando que qualquer coisa acontecesse. Meu coração correndo como um bando de cavalos selvagens, desenfreados e em fúria.

Então, um clique alto soou, trazendo minha atenção de volta à realidade. Miguel apenas havia aberto a porta do carro pra mim e seu olhar vitorioso transformava aquelas safiras lindas num troféu de quem acabara de enganar sua presa.

Já eu, estava presa entre dar um soco naquela carinha perfeita ou enchê-la de beijos.

Assim que sentei, ele passou para o outro lado, atravessou o cinto de segurança e esperou até que eu fizesse o mesmo - o que foi bem irritante - antes de dar a partida.

Seus movimentos eram ágeis e, apesar de os olhos se manterem firmes na estrada, vez ou outra, Miguel inclinava a cabeça na minha direção, apenas me observando com ternura. Ficamos assim, em silêncio, durante todo o trajeto até a Zona Sul.

Minhas mãos suaram de nervosismo quando ele perguntou se eu morava por aquelas ruas em Botafogo e, tudo o que consegui fazer foi balançar a cabeça negativamente.

- Eu moro em Copa. - A voz tremia, mas tentei parecer natural ao dizer aquilo.

- Legal... Eu nasci no Recreio, mas estou morando no Leblon, por hora. Meu avô deixou esse apartamento quando morreu e ficava mais perto para frequentar o Colégio de São Domingos de Gusmão. - Mais um período de quietude se seguiu depois disso. Limitei-me a enrolar os cachos negros com os dedos enquanto aproveitava aquele raro momento num carro que tinha cheiro de riqueza, sem perder o estilo.

Miguel era mesmo um menino diferente.

- Você não parece com os garotos de lá.

- Você quer dizer rico, mimado e cheio de manias? - Mesmo sem me encarar, podia perceber o riso em sua voz. - Está enganada, eu sou exatamente assim. Não deixe as tatuagens te tapearem...

- Que tipo de cara de internato católico tem tantas? - Sem pensar muito, meus dedos agiram como que por conta própria ao deixarem meus fios bagunçados e seguirem caminho estreito até a parte exposta do braço dele. A pele branca feito porcelana brilhava em contraste com a luz da lua e dos postes lá fora. Senti seus pelos eriçarem com o toque enquanto ele soltava uma respiração perigosamente profunda.

- Eu gosto dessa música. - Disse, afastando meu contato de si enquanto aumentava o volume do rádio. Então, percebi que estava quase na metade de uma canção do Shawn Mendes. Não que fosse muito meu estilo e também não pensei ser o dele, muito embora, parecia que aquilo tinha sido apenas uma tentativa de me ignorar.

Perdi-me naquela melodia animada, envergonhada pelo repentino afastamento.

Comecei a relembrar dos momentos confusos daquela noite: O convite de Cláudio, suas intimidades com a bela desconhecida no bar, a crise de ciúmes que ele deu ao me ver com Miguel...

Miguel... Que cara estranho...

- Sabe aquilo que você me disse antes de entrarmos no carro? Sobre confiar no desempenho de um homem que espera ter uma grande recompensa e coisa e tal?

- Ah, isso é uma citação de Thomas Atkinson, conhece?

Dei de ombros, fingindo estar mais interessada nas ruas que passavam como luzes frenéticas pelos vidros ao nosso redor. Isso não o desencorajou.

- Ele era um artista e arquiteto britânico bastante talentoso... Tenho pretensão de ser como ele um dia.

- Chegamos. - Avisei quando chegamos à AV. Atlântica, bem de frente para o mar escuro de Copacabana. Apesar de não ter respondido ao que ele disse, meu peito doía por saber que, muito provavelmente, os sonhos daquele garoto não eram apenas sonhos e, sim, probabilidade genuína.

Era muito diferente da realidade que eu tinha.

- Vai dizer que você mora na praia? - Apesar do tom risonho, ele parecia preocupado.

- Não, bobinho. Eu moro na rua de trás, mas ainda não quero que você saiba onde.

- Tá... - Foi uma resposta automática e visivelmente ofendida.

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