Capítulo 1

      Algumas pessoas tem dificuldades com mudanças. Tudo o que é novo nos assusta no começo, e comigo não foi diferente. Porém, eu não imaginava que minha vida fosse mudar radicalmente e de uma forma que me deixaria marcas.

      Como na maioria das histórias, tudo começou após um dia que tinha tudo pra ser perfeito.

      Pus meu uniforme de vôlei, um par de tênis Olympikus, munhequeiras e outros itens esportivos e de higiene dentro da mochila e fiquei em frente ao espelho. Virei a cabeça em vários ângulos, tentando encontrar alguma espinha no meu rosto cheio de sardas, e felizmente, nada. Era a grande decisão do campeonato intercolegial de vôlei feminino, e eu queria estar linda.

      Humildade nunca foi uma de minhas qualidades, eu achava bem idiota se fazer de modesta quando não tinha razão pra isso. Eu era uma garota alta, de cabelo ruivo e liso, e olhos azuis, e graças a genética da minha mãe, a ex- jogadora de vôlei Amanda, tinha uma bunda bonita que atraía olhares de meninos, e também de meninas.

      Além do biotipo da minha mãe, também puxei sua paixão pelo vôlei, e desempenhava a mesma função que ela, quando era jogadora do Osasco. Atacante. Vê-la dar aquelas cortadas que faziam a bola explodir nos cantos das quadras das adversárias foi o que me incentivou a ser um dia como ela.

      Nossos pais são como heróis quando somos crianças. Meu pai era tudo pra mim. Eu tinha mais intimidade com ele do que com minha mãe, que era muito correta, mais do que precisava ser. Nós dois passeávamos à tarde de moto pelas ruas de Perdizes, comíamos sanduíche de queijo minas numa lanchonete qualquer, assistíamos shows de rock no Allianz Park (detalhe: sou corintiana) e fazíamos um monte de coisa que pais e filhas que se amam fazem.

      Mas tudo mudou no dia em que voltei do colégio e encontrei meus pais discutindo, e minha mãe chorando enquanto atirava coisas no meu pai. Perguntei porque eles estavam brigando, e minha mãe, me olhando transtornada, com os olhos vermelhos e lacrimejantes, respondeu que meu pai, a quem eu venerava como herói, a havia traído com uma moça que tinha idade pra ser minha irmã, fazendo um filho nesta.

      Então, ele arrumou as coisas em algumas malas e foi embora para sempre, me dando só um abraço e um beijo na testa.

      — Cuide-se — ele disse, antes de fechar a porta ao passar por ela.

      Mamãe e eu ficamos sozinhas, dividindo uma casa grande que com o tempo, passou a lembrar uma casa morta. A partida de papai deixou um vazio enorme em nós duas, que se transformou numa chaga incurável. Eu me tornei uma garota de temperamento explosivo, brigava por qualquer coisa e ouvia rock no último volume só pra mostrar minha revolta. Passei a me vestir de preto, comecei a fumar (escondido da minha mãe) e adquiri hábitos anti sociais. Odiava andar em grupos.

      No campo do relacionamento afetivo, só queria sexo sem compromisso. Tinha nojo de garotos que se comportavam como patetas, que ficavam de quatro por uma garota e diziam aquelas frases apaixonadas bem melosas.

      Minha mãe também mudou radicalmente, pra muito pior. Ficou amarga, ressentida, se fechou dentro de si. Poucas vezes conversavámos e nunca mais ela foi a uma reunião de pais no colégio chato e cheio de regras onde eu cumpria pena. Só nos víamos no café da manhã e no jantar, após o qual Amanda ia pra sala e abria uma garrafa de Black Label. Uma tentativa inútil de esquecer sua existência solitária. Ela nunca pensou que ao se destruir aos poucos, estava me esfaqueando e me levando junto.

      Eu podia ter embarcado numa coisa bem mais pesada. Não precisamos ir a uma boca de fumo pra comprar drogas, elas são vendidas na porta da sua casa. Até em  igrejas. Só não tomei esse caminho porque, apesar de ter perdido meu pai e estar perdendo minha mãe para o álcool, eu tinha uma paixão, um amor que me impulsionava a nunca desistir e a acreditar que por meio desse amor, eu seria alguém na vida.

      Um amor chamado voleibol.

      Estávamos disputando uma competição entre 32 colégios da capital paulista e da Região Metropolitana de São Paulo, e havíamos chegado à grande decisão contra uma escola particular conhecida por revelar jovens talentos que um dia jogariam na seleção feminina. Por ser uma escola importante e pela fama do nome, ela atraía olheiros de grandes equipes. Ou seja, se eu jogasse bem, poderia de repente ser convidada para treinar numa equipe juvenil e quem sabe, sair da casa da minha mãe.

      Com a expectativa de que minha vida mudaria pra melhor depois da tão sonhada decisão, sai do meu quarto após fazer um rabo de cavalo e desci os três lances de escada. Minha mãe abraçava uma garrafa de uísque e me lançou um olhar vazio e distante como se enxergasse uma folha seca caindo de uma árvore.

      Sorri pra ela com tristeza. Era minha mãe, mesmo tendo deixado de agir como mãe há dois anos, e no fundo eu a amava. Do meu jeito.

      — Tchau, mãe. Estou indo para o jogo — dei um beijo na testa dela.

      — Que jogo?

      Fiz uma cara de descrença, olhando para o teto e soltando um suspiro entediado.

      — A decisão, mãe. Faz dois dias que estou falando que nossa escola chegou à final.

      — Ah, sim. Não prestei atenção. Boa sorte.

      — Novidade. Você não presta atenção em nada do que eu falo há dois anos.

      Amanda assentiu, tomando num único gole o copo de uísque com gelo e o ergueu, como se fizesse um brinde.

      — Que saco! — murmurei caminhando para a porta.

      — Sasha!

      Me virei ao ouvir meu nome. Mamãe agora olhava para o porta retrato com uma foto que tiramos em Paris quando eu tinha catorze anos. Quando ainda éramos uma família feliz. Dava pena ela gostar de ser masoquista e olhar para alguém que a fez infeliz, mas enfim… cada um com sua esquisitice.

      — Por favor, não brigue com ninguém. Sou muito ocupada para a diretora do seu colégio me ligar reclamando que você bate em algum garoto.

      Cruzei os braços, descrente.

      — Ocupada com o quē? Você fica quase o dia inteiro bebendo e se vitimizando por ter levado um par de chifres, e chama isso de se ocupar com alguma coisa?

      — Ocupada com a minha tristeza — a calma dela me irritou. — Já que você não me dá valor, eu, pelo menos, me dou.

      — Mãe, ok. Bye.

      Bati a porta com um estrondo, só para irritá-la.

Capítulo de 1096 palavras

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top