Capítulo 5
Algumas horas depois, Ethiena e seus pertences deixavam a capital do império, com destino a sua nova casa em Walles. Apesar dos desafios que a aguardava, tinha grandes esperanças de que a viagem abriria uma brecha para que pudesse fugir.
Para sua infelicidade, não esperava que o Imperador mandasse dois soldados espiões. Ethiena acreditava que o Duque Sá havia trocado uma ou outra palavra com o soberano, por isso o jovem guerreiro de profundos olhos escuros disse-lhe que foi realocado temporariamente para proteger a nova Dama Régia do Império, em sua viagem de trem e aerobarcos.
A garota quase o xingou.
Engoliu o ar para não responder sonoras palavras feias.
O soldado e seu imediato a acompanhou até a sua cabine em um suntuoso trem maria-fumaça, sentando de frente a ela enquanto segurava seu grimório como alguém que portava uma espingarda. Ethiena inflou as bochechas, olhando para janela.
― Ainda que, para ser honesto, não estivesse planejando nada tão dramático, me encanta acompanhá-la, minha dama ― disse o homem. ― Fiquei chocado por Vossa Majestade pedir-me pessoalmente para escoltá-la. Vejo por tua face que não anela as núpcias, talvez despreze até o posto de Regina.
― Regina? ― Ethiena se franziu, então lembrou-se que era a forma contraída em se referir a uma Dama Régia. ― Ah, bem, fui vendida por meu pai adotivo sem meus consentimentos.
O homem sorriu, cruzando os braços.
― Muitas meninas são entregues a homens velhos como prometidas, principalmente por seus pais ― ele confirmou. ― O Duque Sá manteve uma joia exótica trancafiada, e ofereceu somente depois que o país estivesse estável após a Grande Guerra. Se tivesse a ofertado antes, não me restam dúvidas que tua vida tivesse ido dessa para melhor, por causa da invasão austra-prussória nas fronteiras de Walles apenas há três meses.
Ethiena sentiu as sobrancelhas tocarem suas pálpebras, espremendo-as sem reconhecer a citação de eventos militares recentes.
― Bem, sorte a minha, não é? ― respondeu ela, irritada. ― Você parece um homem de muita importância.
― Oh, não. Quer dizer, perdoe minha falta de modos, Regina ― riu o soldado. ― Comodoro Elias de Caxias. Ao seu dispor, madame.
Sorriu fazendo um gesto com a mão, embora Ethiena soubesse que ele não tinha nenhum respeito por sua posição atual.
― Sou comandante-chefe da frota de aerobarcos e aviões ― ele sorriu, repousando as pontas dos dedos no queixo. ― Estou a acompanhar, minha dama, pois também tenho assuntos a tratar na fronteira entre Walles e o país vizinho, Prussória.
Então, Ethiena pensou mordendo lábio, teria uma oportunidade de fugir mais tarde. Olhou para seu lado, notando o trem sair da cidade para a zona rural, e o verde-esmeralda da vegetação passou rápido pela janela. Sentiu uma grande esperança encaixar como uma peça de quebra-cabeças em seu interior. Não sabia ainda para que lugar estava indo, mas acreditava nas oportunidades que viriam. Muito diferente do lugar que deixaria para trás.
De repente, tinha ela acabado de dobrar um sorriso discreto no canto de sua boca, a porta da cabine abriu.
Tomada de espanto, Ethiena virou-se quase deixando um gritinho escapar entre seus lábios. O que aconteceu, apesar disso, foi o seu pasmado silêncio. Ela sentiu a boca entreabrir, e não conseguiu apartar os olhos do enorme homem que entrou.
Era o príncipe herdeiro. Linden arque Walles.
― Sua Alteza, futuro Sol do Império ― Comodoro Elias disse, descruzando os braços ao vê-lo. ― Oh. Supus que Vossa Majestade se ocuparia no bar. Ouvi dizer que a viagem tem o prazer de um cassino e belas dançarinas.
O herdeiro do trono não respondeu, seus olhos castanhos e frios passaram como uma brisa gélida ao redor da cabine. Ethiena teve calafrios quando ele finalmente parou o olhar em sua direção.
― O vinho do Phortus está em falta ― respondeu o príncipe, fixando-se em Ethiena. ― E os soldados não trouxeram argila para uma pequena partida de argolos, tampouco o baralho. Fiquei um pouco entediado, resolvi ter uma palavra junto a minha nova madrasta.
Pela primeira vez, Ethiena viu um sorriso em sua boca. Ele era lindo.
Não conseguiu desviar o olhar, analisando cada detalhe em seu rosto. Admirou seus olhos castanhos que cintilavam nas luzes das velas do vagão, observando para ela com intensidade. Uma barba por fazer lindamente elogiava suas bochechas, e deixava um cativante convite aos seus sorridentes lábios rosados. Os fios de seus cabelos caíam como uma onda sobre sua testa, castanhos claros como a cor de seus olhos, arruinando seu corte em estilo militar. A sua sobrancelha falhava por uma cicatriz, passando até perto de sua bochecha.
Ela sentiu a própria boca secar, desviando os olhos atentos em seus ombros largos, cobertos pelo terno de alta costura. As golas altas eram amarradas por um lenço, preso por um broche que desenhava o símbolo do império. Ele tinha um porte de homem feito, forte e alinhado em seus trajes de época. Cada desenho de seu rosto era simétrico, até o furo discreto no queixo, e casava bem com seu ar de elegância e petulância.
― Se continuar com a boca aberta, minha dama, vai engolir moscas ― riu Linden, indo se sentar ao lado de Elias. Pelo menos, pensou Ethiena, era sorridente. Por um momento, pensou que fosse antipático. ― Dizem que os insetos do império a comeriam de dentro para fora se os engolissem.
Linden ficou ali, parado, olhando a moça por um largo minuto. Quando sorriu ao chegar em alguma conclusão, Ethiena notou que covinhas cavavam no canto de sua boca.
― Meu pai conseguiu colocar as mãos em uma Flor Exótica, quando estava eu a pensar que não podia mais se casar. Dizem seus médicos que começa a perder a potência nas regiões baixas ― ele sacudiu a cabeça, rindo com a ideia. ― Uma pena para você, Dama Ethiena, pois se fosse me dada como consorte ao invés de meu pai, não a trataria com ele.
Suas palavras sem filtros causaram uma ligeira indignação em Ethiena. Desejou ter controlado a língua, mas não conseguiu:
― "Dada"? ― grunhiu com indignação. ― Por acaso sou um cavalo?
Linden perdeu o sorriso, assustando-se com o tom de voz ríspido de Ethiena.
― Pensa que posso ser "dada" como um produto para qualquer um? ― ela gemeu com consternação. ― Olha aqui, estou cansada de todos me tratarem como um pedaço de nada! Desde que acordei neste... neste universo paralelo, sinto que não tenho valor algum para ninguém... Me desculpe se não fui "dada" a você, pois se fosse para casar com alguém, prefiro ser conquistada a ser "dada".
Sem jeito, Linden entreabriu a boca sem conseguir encontrar suas palavras, até que Elias e seu imediato ao lado esquerdo de Ethiena começaram a rir, quebrando a tensão que se seguiu após os quase gritos de Ethiena.
― Perdoe-o, Regina ― Elias limpou as lágrimas, assim que parava de gargalhar. ― Nosso querido Príncipe Imperial passou toda a vida no exército, então não tem jeito com as mulheres. Em especial, jovens como tu e seus pensamentos modernos.
Ethiena espiou o príncipe, percebendo suas orelhas ficarem vermelhas. Abriu e fechou a boca duas vezes, franzindo-se quando uma leve palidez tomou suas bochechas premiadas de barba por fazer. Ele parecia incomodado com algo.
― Você disse "universo paralelo"? ― perguntou Linden, escorando os braços nos próprios joelhos.
Se entreolharam por um segundo, até que Ethiena inflou as bochechas antes de virar o rosto para a janela. O cenário havia mudado para uma cidade pequena, cujas casas passavam rápidos ao locomover do trem maria-fumaça.
― Eu disse ― respondeu Ethiena, inflando as bochechas. ― E daí?
O fio do cabelo castanho-claro de Linden, ondulou sobre sua testa enrugada. Recostou no encosto do seu banco, cruzando as pernas e os braços. Seu olhar castanho contemplava o rosto de Ethiena, que sentiu-se ofegar diante sua expressão indecifrável.
Linden vestiu aquela face cruel que usava quando ambos se encontraram pela primeira vez. Ele olhou para Elias e o outro o homem ao lado de Ethiena, e disse:
― Saiam! ― Sua voz saiu com a potência de um jovem tirano e arrogante.
O Comodoro ergueu as sobrancelhas, confuso. Ethiena se perguntou se aquela era a primeira vez que Linden falava daquele jeito, pois, a julgar o assombro do militar, parecia.
― Sim, futuro Sol do Império ― Elias usou a formalidade antes de levantar-se, e sair da cabine sem olhar para trás. O soldado mudo ao lado de Ethiena também deixou a cabine.
O silêncio e o contemplar do nobre príncipe, fizera com que Ethiena sentisse seu corpo formigar. Ela beliscou a pele através dos fardos de tecido da saia de seu vestido, experimentando uma pequena dor. Não havia desmaiado, por perder o ar, como acreditava.
A moça perguntou-se o que o príncipe pensava enquanto apenas observava, franzindo suas sobrancelhas grossas como de seu irmão, o Burocrata Rui.
― Universo paralelo ― Linden disse, quebrando o silêncio. Sua voz estava dura e fria. ― O que isso quer dizer, minha madrasta?
Ethiena não entendeu o porquê questionava aquilo, mas como se algo tivesse estalado dentro de sua mente, indagara-se se podia dizer a verdade para ele.
Acreditava que não pertencia aquele universo, aquele mundo. Não a sua alma. Ethiena tinha certeza que nem mesmo aquele era seu nome, embora não se lembrasse como se chamava no outro lado da vida ― se podia assim denominar.
Não havia comentado aqueles fatos com ninguém, de modo que mal percebeu que as dúvidas e confusão a sufocava. Sentiu a cabine ficar quente e se abanou com a mão, lamentando-se que desde que acordou naquele mundo, seu único objetivo era escapar. Confrontar com aquela questão a deixava desconfortável.
Engoliu em seco, recordando de alguns momentos antes de perder a consciência em um acidente de carro e então acordar naquele lugar. Sentiu medo.
Talvez o príncipe acreditasse nela? E se ele acreditasse que era maluca? Quem sabe não a levaria a guilhotina, acusada de bruxaria...? Bem, a religião daquele mundo não condenava ninguém por bruxaria, mas o Estado era tão opressor quanto as piores autocracias do mundo comum. Então, ele podia interná-la em algum manicômio?
Pensando bem, não seria uma má ideia ter uma desculpa tão crível para se livrar de seu destino como Dama Régia. Fugir mais tarde, seria como somar um mais um.
Ethiena respirou fundo, e quase recuou. Mas agora estava ela mesma confusa demais para retroceder.
― Eu... ― Mesmo que precisasse desabafar, ser diagnosticada como maluca era seu novo plano. ― Eu quero dizer que vim de outro mundo. Bem, pelo menos a minha alma. Eu... eu reencarnei nesse lugar. Quero dizer, acho que é isso... Ou será que eu revivi?
Linden ficou pálido de imediato. Seu silêncio prolongou-se durante muito tempo, tanto que Ethiena começou de novo a sentir medo. Com a força do pensamento, afastou o pavor quase sorrindo com prazer. Talvez seus ligeiros novos planos funcionassem.
O príncipe passou a mão no rosto, alisando os dedos pela barba por fazer. Então, inesperadamente, ele sorriu.
― Eu também não sou desse mundo ― Linden revelou, firme e claro. Mas em seguida ficou vermelho, um ligeiro rosado colorindo seu rosto pálido. ― Quero dizer, falar isso em voz alta, depois de dezoito anos é constrangedor...
Ethiena estava completamente entorpecida de surpresa, assombro e pasmo, uma mescla de sentimentos que furtou a sua voz e mente.
Permaneceu calada, apenas encarando o príncipe como se ele fosse um alienígena. Seu coração deu um pulo terrível.
Ele disse o que disse, ou a moça estava ficando louca?
Na verdade, ouvir aquela frase vindo de outra boca, por mais bonita e desejável que fosse, soava mesmo como loucura.
Ethiena levou alguns momentos, mas não conseguiu se recompor. Seu coração batia com muito mais pressa do que o primeiro impacto ao escutar aquela afirmação. Talvez fosse o espartilho, mas começava a sentir falta de ar.
― Vo-você...! ― Ethiena apontou para o rapaz. ― De onde?
― Terra. Eu vim da Terra ― Linden encolheu os ombros. ― Eu acho. Não tenho certeza.
― Não acredito ― murmurou entre os lábios. ― Eu... Meu Deus... Aconteceu o mesmo comigo, acredito que morri ou depois de desmaiar acordei no corpo dessa jovem e...
― Comigo também. Só sei que morri, e acordei no corpo de um garotinho de dez anos. Dezoito anos depois, ainda estou aqui. Não tenho ideia como aconteceu, mas tenho vivido a vida dessa pessoa ― Linden apontou para o próprio o rosto, enquanto se ajeitava inquietamente em seu lugar à frente de Ethiena. ― Me disseram que Linden arque Walles sofreu um acidente quando pequeno, e ficou entre a vida e a morte, em coma por alguns dias. Porém, quando acordou, era eu no lugar dele.
― Você? ― Ethiena perguntou, também se mexeu em seu banco, curiosa, inquieta e com medo. ― E qual o seu nome verdadeiro?
Linden fez uma pausa momentânea, de olhos presos na inquietação da moça e o seu rosto se pôs pensativo outra vez.
― Não me lembro ― respondeu o rapaz, soltando um profundo suspiro. ― Eu esqueci no momento em que minha mente focou em me adaptar a este mundo. ― Ele olhou para Ethiena, tão melancólico como um viajante solitário em uma estrada escura. ― Qual o seu nome verdadeiro, minha dama?
― Também esqueci, assim que descobri que fui dada como concubina do Imperador e comecei a me focar em fugir ― Ethiena se surpreendeu quando dissera aquilo. Levou a mão a boca, cobrindo-a. Sua pele arrepiou ao perceber que acabara de deixar suas intenções às claras.
Linden riu baixo ao entender o que ela disse.
― Então é isso ― o Príncipe lançou-lhe um olhar penetrante. ― Alguma coisa inquietante dentro de mim, dizia-me que não está aqui pela honradez em ser Regina. Diz a leitura de seu corpo, que no primeiro desviar de olhos das sentinelas do Imperador, irá pular alguns muros e fugir.
Ele achava aquilo divertido.
― Então? ― Ethiena encarou seu rosto, firme, apesar de sentir o medo pinicar por todo seu corpo. ― Vai me denunciar?
― Isso seria muito insensato! ― Linden riu mais alto. ― Não se engane, querida, não sou seu inimigo.
― Não é?
― Não ― encolheu os ombros e sacudiu a cabeça. ― Ao contrário do que possa pensar, não sou igual ao meu pai. Imagino o porquê deseja fugir, uma vez que provavelmente tem uma ideia das manias egocêntricas do Imperador. Tê-la como concubina e babar feito um cão no cio à frente da nobreza, é um bom motivo para temer qualquer um que esteja associado àquele ditador. Sou francamente compassivo, querida. E melhor não contar a ninguém. Passei anos convencendo a corte imperial de que sou malvado e cruel, e detestaria ver todo esse árduo trabalho dar em nada.
Ethiena sentiu os ombros arriarem quando suspirou de alívio.
― Você pode ficar cômoda quanto as minhas intenções, Ethiena, querida ― Linden sorriu. ― É a primeira vez que encontro alguém, que passou pela mesma experiência que a minha. Somos cúmplices agora, e eu gosto dessa ideia de compartilhar meu segredo com você.
Se aprumou em seu assento, cruzando as pernas. Ele era de alguma forma, muito sensual. Mas também tinha um ar de ditador assustador que causava dúvidas em Ethiena.
― Não fuja, querida ― Linden enfiou as mãos nos bolsos de suas calças, tranquilo e firme. ― É valiosa demais para se perder por esse mundo. Você é como o último exemplar de um livro raro. Seria capturada por escravagistas e vendida pelo maior preço possível. Garantirei a sua segurança, isso eu posso te prometer.
Subitamente desconfortável, Ethiena afastou os olhos do rosto do príncipe em direção a janela. Ela mordeu o lábio. Com ou sem promessas, não era capaz de confiar em Linden arque Walles, que lhe parecia muitíssimo cheio de segredos ― mais do que deveria.
― Então, posso acreditar que irá me contar como as coisas realmente funcionam por aqui? ― perguntou ela ao príncipe.
O sorriso do rapaz dobrou de lado, e tinha uma expressão mais gentil e confiante.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top