Capítulo 23
Linden levou Ethiena para um lugar privado, onde finalmente puderam ficar sozinhos. Estavam no terraço de uma ala privada do Imperador, servidos por duas criadas enquanto Linden e ela se entreolhavam. A moça finalmente respirou fundo, sentindo o cheiro fresco dos bosques que rodeavam o palácio. Desviou o olhar, rindo quando Linden também desatou em uma gargalhada.
— Vosmecê és muito ruim neste jogo, Thiena — Linden riu, dobrando-se.
Eles apostaram por quanto tempo se manteriam olhando um para o outro, até o primeiro desviar o olhar. Um jogo para quebrar o gelo entre eles. Ethiena não conseguia, porque sentia o rosto corar e encher-se da memória muscular da verdadeira dona daquele corpo. Ela realmente amava Linden.
Bufando, porque era competitiva e odiava perder, Ethiena ergueu a mão para beber da taça de vinho que havia lhe servido. Em Walles, jamais tivera o luxo de beber mais do que água. Rodou o líquido cor rubi no fundo da taça, arqueando as sobrancelhas.
— A gente precisa se preocupar por venenos? — piscou, olhando para Linden enquanto se recordava dos livros de romance de época sobre cortes cuja intriga era o cereal da manhã. — Vocês não têm um provador de refeições?
Linden desatou em uma gostosa gargalhada, e Ethiena virou o rosto para as empregadas ao redor deles. Nenhuma delas pareciam ofendidas, elas estavam impressionadas com o som da gargalhada de Linden. Ele era conhecido como um mal-humorado e maldoso na Corte.
— Não te preocupes, todos aqui são de confiança — respondeu o Imperador, bebendo da taça de seu vinho. Ele se aproveitou para apresentar as mulheres, apontando para a criada a direita, sorrindo com educação. — Cá é a Berenice, mas pode chamá-la de Nice.
Berenice era uma mulher de meia-idade, que parecia o tipo que também já foi a babá de Linden. Ela sorriu para Ethiena com uma meiguice, que encheu a menina de ternura. As outras empregadas, quando esteve no castelo, não foram gentis.
— E essa é — Linden apontou para a outra moça. Uma garota que parecia de sua idade, trazendo em seu semblante os traços de Nice — Ângela. Elas trabalham para mim desde que tenho dez anos.
As empregadas se curvaram para Ethiena com respeito.
— Será um prazer servi-la, Dona — disse Nice, sem qualquer tom de segundas intenções.
Ângela a espiou, franzindo a testa para recente magreza de Ethiena.
— Ficaria encantada, Dona, se permitisse-me preparar-te refeições apropriadas — Ângela falou.
Ethiena assentiu feliz de que alguém pudesse lembrá-la que precisava comer.
— Não há necessidade em me chamar de Dona — Ethiena disse, odiava as formalidades. — Apenas Thiena.
Linden olhando para ela, se espantou com o pedido. Ele se ajeitou, observando o rosto da menina por um longo momento como se tentasse decifrar um segredo.
— O quê? — Ethiena perguntou, encabulada com a intensidade de seu olhar.
— Parece que ao fim da tensão da guerra entre ti e Quintino soltou um nó — observou o Imperador. — Tu pareces... relaxada.
Ela não havia percebido, mas não se preocupar em fazer planos que seriam frustrados, ou encontrar meios para alimentar as pessoas em Walles, a deixava um pouco mais relaxada. Em especial, porque Linden estava lá. As pessoas ao redor dele, também pareciam decentes.
Se recostou na cadeira, bebericando do vinho. Ela gostou tanto que olhou para a taça como se fosse um pedaço do paraíso.
— Isso é gostoso — observou, bebendo outro gole.
— É vinho do Portus, o melhor do mundo — Linden explicou, bebericando o seu. — Aproveite, querida, coma um pouco mais.
Ela havia comido o suficiente. Seu estômago não parecia bom, estava bastante fraco como se não estivesse habituado à comida. Apenas um pouco, era suficiente para satisfazê-la. Para disfarçar sua falta de apetite, cutucou a comida e levou um pedaço de sua carne até a boca. Então, percebeu que tinha muitas perguntas a fazer.
— Por que escolheu Pedro como seu nome de Imperador? — ela perguntou, mudando a expressão.
Linden remexeu na cadeira, olhando para as empregadas.
— Podem nos deixar a sós?
Nice e Ângela se curvaram antes de saírem. Nice ainda hesitou, mas deixou o terraço e depois a sala. Linden esperou algum tempo, respondendo logo após que o vento soprou do interior dos bosques beijando seus cabelos.
— Ansiei chamar tua... sua atenção. — Para ele substituir o impessoal "tua" para "sua", procurava uma intimidade muito maior do que já compartilhavam.
— Só por isso? — Ethiena enrugou a testa.
— Tens ideia como esteve, Thiena? — Ele parecia revoltado. — Ninguém conseguiu tirar-te daquele quarto. Eu tentei com todas as forças. Tentei com todo meu esforço. Pensei que jamais voltaria para mim; mas se ainda levasse anos, pelo menos haveria em ter tua... sua atenção com uma pequena mesquinharia. Respeitei seu espaço, e hei de sempre respeitar.
Ethiena bebericou outro gole de vinho. Não tinha ideia como esteve. Tudo parecia um borrão em branco.
— Bem, é estranho... — ela suspirou, olhando para os bosques, encontrando a parte nobre e bela da cidade de Lisbona além das copas verdes esmeraldas. — Acredito que gostei um pouco.
— Me alivia, pensei que haveria de ficar exasperada — Linden sorriu, ainda cauteloso.
— Não sou tão mesquinha quanto pensa. — Ethiena gostava de simplificar as relações, odiava voltas e meias.
— Bom, tenho outro motivo, penso eu — Linden bebeu de sua taça, apertando os lábios. — Pedro I foi um grande Imperador. Eu o admirava desde miúdo. Poucos Imperadores ousaram usar Pedro como novo nome. Mas entendes, sou esse tanto audacioso.
Ele fez um gesto com a mão, simbolizando uma pequena quantidade com as pontas dos dedos. Ethiena riu de leve.
— Pedro era um monarca e herói, reinou entre xx097 e xx147. Ele recebeu vários títulos além de O Grande Rei Pedro, também foi conhecido como: Pedro, O magnífico, Imperador das Ilhas Solitárias e Senhor Protetor dos Reinos, o Grão-Rei.
— Isso parece para mim, Linden, que além de audacioso é um pouquinho pretensioso.
O Imperador riu, empinando nariz.
— Na verdade, minha querida, sou apenas um fã de Pedro, O magnífico — ele assentiu, corando um pouco. — Não há um garoto que não o admire. Pedro foi abençoado pelo Leão, com o poder primordial, a forma mais pura de magia. E também se tornou Pedro, o Justo. Dizem que o Leão se sacrificou, justificando os pecados de Pedro e também os nossos. A História fala que Pedro o viu pessoalmente. Lutou ao lado do Leão, destroçando os exércitos dos demônios que tomavam a Terra antes de seu Justo Reinado.
— Peraí, Leão? — Ethiena começou a ficar confusa.
Linden lembrou-se que ela não sabia muita coisa daquele mundo.
— Leão, ou Teous é o criador e Rei deste mundo, um ser divino que é conhecido pela sua forma de Leão. É a autoridade máxima sobre as terras de Portuália.
— Ah, sei, por isso, escolheu Pedro — ela sacudiu a cabeça, entendendo sua tietagem. — Parece ser apenas uma coincidência que Pedro era o nome de meu...
Ela travou a língua, lembrando de seu objetivo em esquecer. Como se pudesse, agora, com aquele nome, jamais poderia esquecer! Toda vez que alguém se referisse a Linden como Pedro, ela se lembraria de novo.
Suspirou profundamente irritada. Que culpa ele tinha? Esperava que a dor se tornasse menor em algum momento, e que a memória muscular de Ethiena se tornasse mais forte.
— Eu sinto muito — Linden quebrou o silêncio momentâneo. Talvez não esperasse que o "Elefante Branco no meio da sala" se movesse até seu colo. — O que aconteceu foi... Se pudesse, Thiena, faria tudo ao meu alcance para não te ver sofrer. Sei e recordo de nosso mundo, mas vivo cá tanto tempo, que se tornou meu orbe-comum. Rui... estava marcado, e pelos erros que cometeu durante toda sua vida miserável, foi assassinado. Temo que, se juntos estivessem, também haveria de sua vida perder. Um dia ou outro, seria tragada pelo grande dragão que meu pai era. Ainda que ele estivesse habitado por seu noivo, ele ainda continuaria sendo malvisto por todos. O alvo em suas costas, ainda haveria de lá estar.
Ethiena assentiu, segurando as lágrimas. Mal teve tempo para vislumbrar o futuro. Mas conseguia se recuperar de sua tristeza, lembrando-se que Pedro teria problemas por causa do corpo que habitava. Só não gostava da visão em vê-lo... daquele jeito. Morto de uma forma tão violenta, que seu coração se apertava ao pensar que sofreu antes de partir. Seu noivo não merecia receber punição no lugar do dono daquele corpo.
Uma lágrima correu por seu rosto, caindo na madeira escura da mesa. Ela afastou com a ponta dos dedos, ouvindo a cadeira de Linden se arrastar. Ele abaixou-se perto dela, tomando suas mãos. Beijou-as, fazendo o coração de Ethiena pular.
— Sei que não hei de comparar-me com seu noivo — Linden olhou em seus olhos, passando a mão em seu rosto. — E nem é minha ambição comparar-me. Mas o que mais desejo neste momento, Thiena, é estar aqui para ti... Eu estou aqui. E esperarei que me notes, enquanto cuido de suas feridas. Não vou roubar beijos, ou invadir sua privacidade, tampouco hei de ultrapassar seus desejos para satisfazer os meus. A tocarei, apenas se concordares. Eu te amo, mas esperarei o tempo que for preciso, para que me desejes por tua própria conta.
Ethiena notou como passou de "ardentemente apaixonado" para "eu te amo". Seu coração não pulou, simplesmente não estava mais se controlando em seu peito. Suas mãos começaram a suar, enquanto observava a sinceridade em seus lindos olhos castanhos claros.
Sorriu de leve, concordando com sua cabeça. Ela se abaixou até onde ele estava, abraçando Linden.
— Eu... — murmurou. — Não consigo dormir direito. A última vez, compartilhamos minha cama. Gostaria que dormisse comigo, e sussurrasse aquela canção outra vez.
Linden a afastou, ficando vermelho, e depois franziu a testa.
— Era a canção de ninar que minha mãe cantava para mim — sorriu, deslizando os dedos em seu cabelo aveludado. — Não a minha mãe daqui, não lembro dela. Minha mãe do outro mundo.
Ethiena esticou os olhos. Ela pensou, piscando, que Linden era muito mais velho do que ela no outro mundo. Talvez um velho, se estivesse lá. Suas sobrancelhas se juntaram quando pensou naquilo. Ele riu daquela expressão.
— O que estás a pensar, Ethiena? — murmurou.
— A idade de nossas almas é bastante diferente — respondeu, percebendo a incoerência de suas prioridades.
— Hum. São meros detalhes, eu acho — Linden riu.
— Como era sua mãe? — Ethiena perguntou, se acomodando em seus joelhos.
A expressão de divertimento tomou a face do Imperador, que fez algum esforço para se levantar do chão com a noiva nos braços, sentando em sua cadeira.
— Bem — começou, sorrindo, cingindo sua cintura magra com suas mãos. — Ela era uma pessoa incrível. Mesmo quando era criança, sabia que possuía a melhor mãe do mundo.
Eles ficaram lá, por algum tempo, conversando um pouco sobre a vida passada de Linden. Até esqueceram das horas passando.
Linden havia contado um pouco, mas não sobre sua família. Ethiena teria adorado conhecê-los, sabendo que a família do corpo que habitava era a mais disfuncional que já conheceram os dois. Sua mãe se chamava Iná, criara sozinha dois filhos. Ele e seu irmão, que também não lembrava o nome, viveram felizes em Portugal durante os anos de 1980. Linden se recordava bastante sobre as séries na televisão, e dos jogos de fliperama, mas não lembrava de outras coisas. Suas memórias estavam bastante preenchidas da amabilidade de Iná, o que tornava sua existência bastante suportável. O que o fez rejeitar a proposta de Linin em se aliar a sua causa revolucionaria.
— Oh, Linin...! — Ethiena se recordou, voltando do mundo distante da Terra, para aquele lugar terrível. — Eu não tinha ideia de que ela era sua irmã... gêmea.
— Meros detalhes — Linden sacudiu a cabeça.
— Não tão "meros" assim — Ethiena enrugou a testa. — A desgraçada atirou em mim... Ela explodiu uma cidade inteira, usando o dinheiro que roubou de mim... Não tão "meros", Linden.
Seus lábios se tornaram uma linha fina, apertando sua cintura entre seus braços fortes.
— Não gosto de pensar em minha irmã tola — respondeu, batendo a língua entre os dentes. — Ela deixou o ódio ao nosso pai consumi-la. Odiá-lo era justificável, mas por amor a minha mãe e sim, Teous, sempre contive o desejo em matá-lo com minhas próprias mãos.
Ethiena o ouviu vezes demais admitir que odiava Rui, mas ainda era dilacerante lembrar que Pedro estava no interior daquele homem horrível. Um idiota que tramou a morte da própria esposa, para viver com sua Imperatriz, hoje viúva. Saber que a mulher torturava Linden e Linin, que foi por aquilo que Rui tramou tanta insensatez, piorava ainda a dilaceração no coração de Ethiena.
— Há alguns anos, Linin ainda era princesa oficial, mas quando Rui nos levou para firmar uma aliança de casamento, Linin se apaixonou perdidamente pelo Príncipe de Revia, Aleksei tzar Vladinova. Hoje é um Tzar. Então, enquanto Rui estava se embebedando, expondo sua fama de bufão, Linin se envolvia com Aleksei. Eu apenas assisti tudo. Minha irmã jamais voltou de Revia. Ficou pelo homem por quem se apaixonou. Ouvi, que casaram-se no ano passado. Mas o Tzar deu carta-branca para Linin prosseguir com sua própria vingança, sem envolver Revia no desenrolar da trama. Seria considerado interferência internacional, e Revia não haveria de almejar uma guerra com Portuália. Seria destruída em um piscar de olhos.
Linden apertou o lábio outra vez.
— Encontrei Linin durante a Grande Guerra — ele continuou. — Ela pediu-me para aproveitar a bagunça, para darmos o golpe e tomar o Império. Eu neguei, é claro. Além de ocupado com a guerra, disse-lhe que por amor ao Leão e minha mãe, não faria nada tão desesperado.
Ethiena pensou no rosto cruel de Linin. Odiava aquela mulher.
— Não sabia que era tão religioso — Ethiena tentou esconder o rubor de raiva que subia até seu rosto.
Linden sorriu, encolhendo um ombro.
— Um pouco — disse ele. — Durante a guerra, aprendes a clamar por algo além dos deuses da morte.
A moça não queria imaginar. A visão de Walles destruída, das pessoas por quem lutou tanto para tentar trazer uma vida digna, quase acabava com ela.
— Linin — Linden prosseguiu — está em um estado que não sei se posso resgatá-la. Pensei, por alguma vez, se tivesse o que queria, recuaria. Mas parece que me enganei. Não tenho ideia do que ela há de almejar agora. Tomou a vida de nosso pai, então...
— O quê?
Ethiena sentiu um puxão em seu coração.
— O quê, o quê? — Linden arregalou os olhos.
— Não se faça de tolo — Ethiena deixou o rubor subir até suas bochechas. — Está dizendo que Linin... Linin... Pedro... Ela...
Ele virou o rosto, com temor em contar a verdade que parecia ainda o perturbar. Mas havia jurado honestidade e respondeu erguendo o queixo para ela.
— Sim, Linin atirou em meu pai... — respirou fundo. — E mandou entregar seu cadáver a mim naquele dia na porta da Mansão.
Sentiu a pouca comida que comeu pesar em seu estômago. Segurou a ânsia, tremendo-se com a lembrança dos olhos cruéis de Linin. Por muitos dias, seus pesadelos eram visitados por aquele olhar como uma assombração.
Sem aguentar, empurrou Linden, procurando um lugar para vomitar. Saltou do colo dele, mas não foi muito longe. Regrediu sua recente recuperação, com apenas algumas palavras.
— Thiena! — ficou assustado, como sempre ficava ao vê-la naquele estado.
Ofegante, assustada, chorando... com medo, muito medo.
Mas aquilo estava além do medo. Ethiena sentiu uma chama arder em seu peito. Sentiu-se tão viva, que parecia que o fogo dentro dela havia trazido de volta a vida.
Ethiena limpou a boca com as costas da mão, olhando para os olhos preocupados do Imperador.
— Ela pode ser sua irmã, Linden, mas se ela cruzar o meu caminho... — Ethiena respirou fundo, engolindo as palavras que ficaram no ar.
Odiava Linin com todo o seu coração e faria possível para pará-la.
Nota autora
Ontem eu escrevi 5 capítulos, e hoje não consegui escrever duas linhas..... Eita, nós. Tem dias que é mágico, outros não...
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