XVII
— Ester, finalmente você chegou! — Constance ergueu-se, animada, assim que eu entrei no quarto.
— Sei que demorei um pouco mais do que o de costume, mas não é para tanto — brinquei.
Ela riu.
— Preste atenção: preciso que leve isso para o Daniel — estendeu-me uma carta e eu finalmente percebi a corrente com a estrela de Davi em cima da cama.
— Quem é Daniel? — indaguei, curiosa.
— O ourives, Ester! — balançou a carta em minha direção e eu a peguei. — Eu preciso contar-lhes sobre você. Não é exatamente uma carta oficial, mas eles devem estar nervosos, imaginando as piores possibilidades. Algo parecido com você me chantageando — sussurrou a última parte em um tom "adoravelmente" macabro.
Ri com a sua brincadeira ao mesmo tempo que a compreensão do quão sério era essa sociedade pesou sobre mim. Cresci com meus pais orando às escondidas, indo até a casa de Dulce ou de outros vizinhos trocar experiência sobre Deus. Brinquei tantas vezes que nem ao menos posso contar com o colar mais precioso da minha mãe, aquele usado no seu casamento quando o cristianismo ainda era permitido em nosso vilarejo e que possuía como pingente a estrela de seis pontas. Então, devido ao costume, era normal para mim... às vezes até mesmo conseguia me esquecer que, na verdade, era proibido sob pena de morte. Era incrivelmente surreal saber que algo tão comum para mim como crer no Senhor Jesus formou uma organização totalmente intricada que protege com zelo os seus participantes e a sua crença.
— Levarei, mas, você sabe que isso pode levantar incríveis suspeitas, não é? Meu irmão odiará se chegar aos seus ouvidos que eu estou entregando cartas a um homem... qualquer que seja — comentei, enquanto olhava a bonita caligrafia no papel amarelado.
A princesa parou, pensando no que eu acabara de falar. Era terrível aniquilar seus planos logo pela manhã, mas se por algum acaso alguém achasse que estava me comunicando com homens por meio de cartas, poderiam inclusive me tirar do cargo de Dama da princesa, o que seria bem pior.
— Ah! — exclamou finalmente e andou até o outro lado do quarto, onde sua coroa e joias eram guardadas. — Bom, eu não tenho outra escolha — comentou para si mesma enquanto abria um caixa e tirava um bonito anel.
— Princesa? — chamei, incerta do que ela faria, dando um passo em sua direção.
Arregalei os olhos tomada pela surpresa com seu próximo ato. Constance pisou com toda a sua força sobre o anel, danificando a pedra que o enfeitava e o arranhando. Após o segundo de loucura ela abaixou-se e pegou o objeto, verificando seu trabalho.
— Acho que será o suficiente — pensou alto, me deixando sem entender nada. Então, ela pegou outra caixa e tirou o colar que estava dentro, depois retirou também uma almofada que eu achava fazer parte da estrutura da própria. — Me dê a carta, Ester — pediu, estendendo a mão — caminhei até ela e entreguei o papel que ela prontamente guardou no fundo antes de recolocar a almofada. — Perfeito! Nem parece que há algo aqui, não é? — sorriu enquanto seus olhos contemplavam o trabalho feito.
— Você...? — nem consegui formar uma frase tamanha era minha surpresa. Podia ser vergonhoso dizer, entretanto eu precisava confessar: subestimei a princesa. Talvez suas feições fossem doces e bobas, todavia ela não era nada disso.
— Você levará essa caixa ao Daniel, com o pretexto de concertar um anel quebrado, mas lembre-se de avisa-lo de alguma forma sobre a carta — estendeu-me o objeto.
— Isso é muito inteligente, Constance! — disse, admirada.
— Obrigada, Ester, mas o fato é que não posso mais ser descuidada. Não existe mais margem para ser boba. A sociedade me confiou uma importante missão e é com vidas que eu estou lidando. Pessoas podem morrer se eu falhar, entende?
— Não, eu não entendo — disse, confusa. — Que responsabilidade eles lhe deram? — ela pareceu lembrar algo e caminhou até a cama pegando a corrente na mão direita.
— Está, Ester, é a estrela de Davi.
— Eu sei, Constance. Você esquece do lugar onde eu venho? — ergui uma sobrancelha.
— Sinceramente, sim — ela sorriu, meiga, mas eu me senti de imediato ofendida. — Na verdade, nunca ouvira falar realmente da história do seu vilarejo até que Leon chegasse aqui. Imagino ser um grande legado para vocês, mas para nós, me coloco como uma princesa aqui, membro da família real, vocês foram incorporados aos nossos costumes, esquecendo totalmente o que fizeram no passado. Os meus pais ou o comandante do exército de guerra não veem esse fato como muito mais do que uma rebelião, mais um ato de resistência — explicou.
Suas palavras poderiam parecer cruéis, é realmente eram em algum nível, mas eu entendia o que ela queria me passar – a contragosto, óbvio. Constance estava tentando dizer-me, por meios bem tortos, que a história de minha cidade não era um marco no reino, ou até mesmo para o cristianismo. Nós não fomos os únicos a revoltarem-se contra a invasão do reino de Dmitrei, tampouco os únicos que tiveram de esconder a sua crença em Deus para se manterem vivos. Ela tentava me dizer que havia muito mais do que já conhecia para ver, que a luta e a revolução na verdade eram muito maiores. Entretanto, isso não me impedira de ficar chateada com a forma como ela diminuiu aquilo que fizemos, as pessoas que morreram, e o qual batalhadores fomos e até hoje somos.
— Ótimo, Constance, mas, o qual a sua tão temida responsabilidade — disse com mau humor e ironia.
Ela respirou fundo e fechou os olhos por alguns segundos antes de continuar: — Eu não queria magoá-la, nem ofender o seu povo, Ester — ergui uma sobrancelha, decidindo que não cederia. Meu amor pelo meu povo e a história que estava enraizada em mim eram as únicas coisas que me sobraram do passado, nunca deixaria ninguém ofende-las. A princesa respirou fundo novamente. Um embate silencioso havia se iniciado — Essa aqui não é uma simples corrente, como todos conhecemos, é um selo. A sociedade precisa de alguém no palácio, não como o infiltrado que deseja descobrir os segredos e derrubar o governante, mas como alguém para saber em "primeira mão" sobre ataques ao cristãos, novas leis, revista à casas, entre outros atos. Antes de mim Henrique fazia esse trabalho, entretanto como ele saiu do exército e foi expulso do castelo, eu, como a mais próxima do rei, fiquei com seu trabalho. Sou uma das líderes e o selo válida as cartas que eu mandar. Dessa forma poderão saber se são verdadeiras ou não — explicou-me rapidamente. — Ester, não quero que fique desgostosa pelo que eu falei.
— Meu povo sofreu muito, Constance. Sei que talvez eu tenha mantido a posição errada, como se fosse detentora da fé cristã, quando, muito antes do meu vilarejo ser incorporado ao reino, ela já era uma realidade aqui, mas nós lutamos com bravura por aquilo que acreditamos e isso precisa ser considerado. Posso não conhecer sobre "A Sociedade", entretanto sei o que é esconder de soldados aquilo que acreditamos, sei como é revoltar-se em silêncio, sei o que é dar uma nova roupagem nos antigos costumes para parecerem outros. Vivi isso a minha vida inteira. Nunca procurei entender a fé dos meus pais ou como eles faziam para mantê-la em segredo, sabendo de cada passo dos soldados, todavia sei exatamente o que é viver às escondidas — desabafei.
— Eu sei que sim, Ester, talvez tenha sido injusta com você e seu povo. Eu só queria dizer que...
— A luta continua, que ela nunca se resumiu só ao que fizemos, que era muito maior do que eu, você ou meu vilarejo. Eu entendi — completei quando percebi que ela não possuía mais palavras.
Ela assentiu lentamente. Realmente entendera o que ela desejava falar, mas crescerá para defender o meu povo, ouvindo falar todos os dias de como fomos valentes e nobres. Não era fácil ver a princesa do reino invasor, mesmo sabendo o quão boa e gentil ela era, falando sobre o que nós fizemos com tanta displicência. Eu sabia que houveram muitas guerras, mas a nossa era especial, porque fazia parte da minha história, da minha família.
Após garantir a princesa que estava tudo bem e não ficara chateada, apenas um tanto magoada, sai em direção a sala do ourives. Havia ido lá apenas uma vez, todavia, com certeza por obra divina, conseguira chegar lá novamente. Assim que adentrei percebi o homem, que agora eu sabia se chamar Daniel, estava sozinho novamente.
— Senhorita Ester! — ele me cumprimentou com animação, mas pude ver sua exitância.
— Trouxe uma encomenda da princesa — comentei enquanto me aproximava dele. — A carta está escondida em baixo da almofada — murmurei, próxima o suficiente para que ele ouvisse.
Ele arregalou levemente os olhos.
— Você... você... — eu assenti, entendendo sua pergunta não feita. Um sorriso gigante tomou seu rosto. — Bom, senhorita Ester, agora parece que realmente seremos bons amigos — disse com sinceridade.
Eu sei em retribuição antes de dizer: — Acho que sim — prossegui — Me chame de apenas de Ester, por favor — pedi, educadamente.
Ele pegou a caixa e me chamou com uma das mãos para segui-lo até a mesa, onde a depositou e depois abriu-a, tirando o anel e o analisando.
— Já conheceu a cidade? — indagou, tirando os olhos do anel para mim.
— Na verdade, não — respondi inocentemente. — Meu irmão não é do tipo que apresenta lugares.
— É, eu sei, está mais para aquele que destrói — brincou, me fazendo rir. — Bom... se você quiser, claro, eu poderia lhe mostrar a cidade — ofereceu.
Eu pensei. Gostaria certamente de conhecer a cidade e Daniel me parecia uma boa pessoa, desejava aceitar o convite, mas deveria perguntar ao meu irmão antes, e, muito provavelmente, receberia um não.
— Eu gostaria muito, mas preciso falar com Leon — respondi, desanimada.
Desejei que as falas dele com o príncipe fossem apenas brincadeiras.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top