#5. You love a fool who knows just how to get under your skin.

Entrada de diário,

04 de Maio de ano nenhum.

Sua mão na minha mão. Eu ainda sinto. O velho moletom, com uma das mangas descosidas, que tinha o seu cheiro, revestindo somente um terço do meu corpo. O cobertor vermelho de flanela protegendo a cama, a luz na lateral da rua entrando pelo vidro da janela alta. Sua voz ainda era um sussurro bom, que se condensava até o meu tímpano na frequência correta, aquela canção nunca escrita que era só nossa. E você cantava melodias que me reviraram por dentro.

Foi a primeira vez. Feito um corte profundo, daqueles em que se é capaz de enfiar dois dedos inteiros na cavidade, um ferimento de morte. Nada mais escandaloso, condenável, íntimo e letal do que sussurrar um eu te amo ao pé do ouvido, até os poros absorverem as palavras, invadindo as camadas da pele como o risco profundo de uma tatuagem nova, mais inextinguível que a serpente cafona enroscada em seu braço esquerdo, as listras decodificadas enlaçando a coxa. No fundo adorava o quanto você poderia ser clichê, até mesmo no que deveria te fazer diferente de todo o resto, mas isso tudo é assunto para outra nota.

A verdade é que eu nunca tinha escutado meu nome soar tão doce na boca de um estranho, como se eu valesse a pena, o risco, o preço. Meus dedos escorregaram pelo seu cabelo longo, tocando o Paraíso depois de revirar minhas entranhas e meus ossos no Inferno dos corações partidos. Suas mãos arrancaram poesia dos meus lábios por tão pouco, acho que isso me assustou muito mais. Você foi o primeiro, sabe. Parecia o único.

Rimos pela madrugada inteira, tentando não fazer tanto barulho para não incomodar a vizinha do andar de baixo, a síndica havia te notificado na semana anterior pela "brusca e contínua batida contra a parede depois das vinte e duas". O problema era a mesa. Maldita mesa. Maldita ideia. Fazer as pazes assim, aos ouvidos de todos, esse não era bem o meu modo favorito de voltar às boas depois que os seus cochichos se tornavam gritos e paredes socadas.

É que o jogo era o mesmo, toda vez; eu me negava o tempo todo, mas sempre te queria tanto. E com essa carinha de boa menina, como você dizia, tinha o meu álibi de confiança, bastava negar.

Como naquela noite em que você me perguntou: "será que seu pai ainda acredita que dormimos em camas separadas?", o tipo de expectativa falsa que ele mesmo havia alimentado por eu ser a caçula, a sua fofinha; como se pudesse me exigir qualquer tipo de cumprimento de regra silenciosa em sua distância emocional, inacessível.

Você vivia sozinho naquele apartamento minúsculo por trás da escola, que mal cabia você, a velha guitarra, seus discos e o Castiel, que se aconchegava nos meus pés no meio da noite.

Lembro que você me disse uma vez que eu escrevia sobre nós dois com a iminência agonizante de uma despedida. Uma narrativa sentimental lenta, com uma frequência acelerada somente na cabeça de uma narradora desesperada; que não vivia o amor em sua plenitude com medo de perdê-lo. Beijava de olhos abertos temendo que a entrega do repouso das pálpebras, o enrosco na ponta da língua, desaparecesse junto a sua vontade de ficar. Antecipava a dor, como uma forma oculta de salvação. Acho que era o seu gosto de adeus que me assustava. Mas a motivação de te olhar era memorizar os detalhes do que era ser amada. Eu lia o amor no seu rosto, nos seus cílios colados escondendo a íris de um castanho tão único, no seu sabor lilás, — que até hoje eu não sei explicar direito —, invocando a minha sinestesia com uma emoção tão pura, nas suas mãos tocando a minha nuca, parecia que não restaria vida dentro de mim se você fosse embora. A psicóloga me disse uma vez que isso se chama dependência emocional, palavras de um vocabulário bacana, mas aos dezessete, como eu poderia saber?

E me agarrava ao diário de capa vermelha que você havia me dado, colocando meu coração em palavras, puxando o fio das minhas costuras e atando em parágrafos inteiros escritos com sangue, de forma quase compulsória. Era uma tola que não queria te perder para a memória fraca. Para a insuficiência gritada. Para o tanto que parecia minúscula no seu entorno.

Você dedilhava ao meu lado a velha guitarra quebrada, Caetana, que costumava decorar o canto da sala, a herança do seu pai, como um prenúncio de morte. Você me contou uma vez. Assim como o caderno de composições que ele mantinha escondido desde a adolescência, e a mulher que o perseguia de uma vida passada. A dama de vestido azul que você também via, de pé, no corredor da casa dos seus pais, e que sentiu te beijar enquanto dormia, uma maldição silenciosa, condenando-o a um coração frio para sempre.

A canção era Smoke On The Water do Deep Purple, a mesma que você havia tocado quando coloquei os pés naquele apartamento pela primeira vez. Ainda me arrepiava da mesma maneira, correndo pela espinha dorsal, fazendo minhas mãos tremerem. Eu nunca tinha tirado a camiseta para cara nenhum na vida, tinha tanto medo de fazer algo que não deveria, não ser bonita o suficiente aos seus olhos, de não me encaixar.

Mas me despia para você como se arrancasse as minhas pétalas, uma a uma. Eu me sentia amada quando você olhava para mim, até perceber que você só me percebia assim, quando eu tirava a roupa. E as minhas peças esquecidas, feito flores secas pelo chão, foram jogadas para baixo do seu sofá novo, se tornaram instrumentos de denúncia para suas novas garotas. Seus interesses amorosos de uma noite, com gosto de cerveja na boca. Um título de namorado era incômodo para sua vida de estrela, só era válido à luz do dia. E eu era somente sua amenidade favorita.

Mas jurei que não te escreveria uma memória ressentida, pelo menos não desta vez, talvez na página seguinte deste diário, o mesmo que você me presenteou com uma nota inicial: "Para guardar o seu coração quando eu não estiver por perto", eu possa te odiar livremente, sem me sentir compelida a tolerar este lugar em que você me colocou como se nunca tivéssemos significado nada. Cinco anos disso. Dezenove segundos para ir embora. Cinco dedos tatuados no meu rosto para destruir tudo. Às vezes tenho medo de me olhar no espelho e ainda ver a sua mão ao redor do pescoço, suas digitais marcadas no meu rosto. Elas ainda estão lá, de alguma forma, escondidas pelas camadas da nova pele. Quando as notícias me assustam, tento me encontrar em quem costumava ser, porque nunca tive coragem de falar em voz alta, e temo que outra garota tenha esta mesma marca, gêmea, o mau agouro que você arrasta consigo, um ferro de fogo invisível que consome e implode tudo que há por dentro.

Mas por alguma razão essa cena inteira foi remontada em minha cabeça. E até mesmo hoje não gosto de ouvir a canção dedilhada, você volta com aquelas notas amaldiçoadas, me assombra e então se vai, é o seu rito de passagem no meu mundo; me quebra em mil pedaços só para saber que ainda tem esse poder sobre mim. Contudo, ali, você era só você, com seus beijos mordidos, seus cigarros suspeitos acesos, desaparecendo para longe, mas nunca o suficiente.

Talvez eu ainda tente recuperar algum fragmento na ruína deixada para me agarrar a algo bonito, é que você sempre deixou claro que me amar era difícil, como um martírio, a tarefa que ninguém estava disposto a assumir e você, como um herói histórico, escolheu acatar.

Me dói pensar nisso, mas tudo aqui dentro já doeu por tanto tempo que não quero mais te dar esse espaço preenchendo até mesmo as minhas mágoas. Se considere livre de sua missão de fingir sentir amor, estou libertando você dessas amarras. Quem sabe assim, quando se sentir livre, você me liberta também.

Ouvindo: Boyfriends do Harry Styles

Lendo: O lustre, Clarice Lispector.



N/A: Essa entrada foi tirada de um diário, um pouco melhorada, mas ainda assim, de algo muito pessoal e que finalmente me sinto pronta para colocar no mundo. Tem uns bons anos que foi escrita, porém, relendo, depois de estar curada, depois de ter me apaixonado outra vez, é hora de me libertar disso. É arte depois que tá no mundo não é mais só nossa.

Espero que tenham gostado, e até mais!

— Sô.

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