Cap. 34
Apenas feche seus olhos
O sol está se pondo
Você ficará bem
Ninguém pode machucá-lo agora
Ao chegar a luz da manhã
Nós ficaremos sãos e salvos
Taylor Swift – Safe and Sound (Feat. The Civil Wars)
◈◇◈
Estava deitada na cama do hospital, com Henri sentado na poltrona ao meu lado e Eliel dormindo na outra cama ao lado. Eu ficava feliz e aliviada que ele ainda conseguisse dormir depois de tudo aquilo, porque eu definitivamente não conseguiria isso assim tão fácil.
Na televisão de tubo presa ao canto da parede por um suporte de ferro, alguma novela aleatória de romance de época passava com o som extremamente baixo. Tudo ali era muito quieto o que me deixava extremamente agradecida pois me ajudava a relaxar um pouco mesmo com o corpo inteiro doendo.
Minha perna ainda ardia, e parecia que estava muito pior do que quando havia saído da casa – o mesmo para o meu pulso deslocado, meu olho inchado e minhas costelas cheias de hematomas.
Eu duvidava que, na minha vida inteira, já tivesse estado tão enfaixada e cheia de curativos e machucados como estava no momento.
– Quer alguma coisa? – Henri perguntou repentinamente fazendo meu coração pular um pouco de susto pois já estava começando a achar que eu era a única acordada naquele quarto.
– Quero parar de sentir dor – respondi como se fosse alguma piada mas aquela era realmente a minha maior vontade no momento.
– Sinto muito, mas vai demorar um pouco, ainda mais agora que toda a adrenalina passou e seu sangue esfriou – ele disse e respirei fundo, pois infelizmente eu sabia muito bem daquilo. – Mas você aguenta, pelo visto é mais forte do que eu pensava.
– Acredite, pelo visto eu sou mais forte até do que eu mesma pensava – eu disse e Henri deu uma risadinha. – Mas sério, na verdade... Acho que estou com sede. Não precisa levantar se não quiser mas eu seria grata pra cacete se você me trouxesse um copo de água.
– Tudo bem, volto em alguns minutos – ele disse e saiu pela porta, me deixando sozinha com uma novela e um irmão adormecido.
Péssima ideia. Quando eu ficava sozinha todas aquelas coisas ruins voltavam, eu podia sentir as mãos de Victor em mim, a pressão de seus dedos no meu cabelo, o calor do fogo em volta de mim...
"Qual cor de olhos minha mais nova poupée gostaria de ter?"
Afundei as unhas no lençol áspero e pulei de susto quando Henri pousou a mão no meu ombro.
– O que foi? – Perguntou e percebi que minha respiração estava forte e descontrolada e meu coração batia forte sob o peito.
– Eu... Eu acho que estava prestes a ter um ataque de pânico – confessei e balancei a cabeça. – Não é nada, já aconteceu tantas vezes que nem posso contar, já estou acostumada...
– Lis, nós dois sabemos que vai ser diferente agora.
Eu não queria que fosse. Queria meus ataques normais de volta, não queria aquelas imagens, aquelas vozes e aquelas sensações horríveis na minha cabeça.
– Eu não quero falar sobre isso – foi tudo o que respondi e peguei o copo de vidro cheio com água gelada que Henri estendia para mim.
Bebi tudo de uma só vez e bati o copo vazio com força na mesinha branca ao lado da cama, minha mão trêmula denunciando meu nervosismo.
Fechei os olhos quando Henri pousou sua mão sobre minha bochecha e a acariciou com o polegar. Eu sentia o choro vindo: meus olhos ardendo, a garganta se apertando e meu peito parecendo pesado de repente, mas não queria chorar.
– Vamos só assistir à novela, por favor – disse controlando minha voz embargada o máximo que podia e afastei sua mão.
– O que for melhor pra você – Henri disse parecendo incomodado ou triste por não conseguir me ajudar mas às vezes existem coisas que realmente não tem muito o que fazer para ajudar, apenas deixar a vida levar.
Longos minutos de silêncio se seguiram até eu perguntar as horas.
– Dez e meia – Henri respondeu e me revirei na cama, pela primeira vez em algum tempo tirando os olhos da televisão somente para focá-los na parede branca ao meu lado.
Mais um longo período de silêncio.
– Eu não queria que tivesse sido assim, queria ter feito algo para te ajudar, qualquer coisa, por mais idiota que fosse – ele disse meio do nada e me voltei para ele com uma expressão indignada e confusa. Aquele idiota realmente achava que não havia me ajudado de forma alguma? – Lis, aquela noite na praça eu... Ai caramba.
Um frio percorreu minha espinha quando vi que o motivo dele ter se calado estava parado bem na porta, de braços cruzados, com os cabelos loiros bagunçados e os olhos violeta irritados, tristes, preocupados e confusos – tudo ao mesmo tempo – focados em mim.
– E-eu... Eu acho que vou deixar vocês sozinhas – Henri disse e, mentalmente, implorei para que ele não fizesse isso, mas ainda assim ele se levantou e sorriu meio sem jeito para a mulher molhada de chuva.
– Obrigada por cuidar dela – ela disse e Henri encolheu os ombros.
– N-não foi nada – gaguejou e eu soube somente pela sua fala que ele estava tão assustado quanto envergonhado.
Assim que ele saiu, o sorriso de minha mãe desapareceu e ela voltou a me encarar.
– Que merda você e seu irmão fizeram dessa vez, garota? – Ela perguntou e, silenciosamente, me preparei para a minha morte.
◈◇◈
Por mais que aquele quarto frequentemente mergulhasse no mais puro silêncio desde que eu chegara ali, este fato nunca havia me incomodado tanto quanto agora que minha mãe estava ali, sentada no pé da minha cama com os olhos baixos – e eu não sabia se era por preocupação, por culpa, por raiva ou talvez até fosse somente por distração.
– Bom, eu fui burra – foi tudo o que ela disse depois de que pareceu uma eternidade calada e franzi as sobrancelhas. – Você mentiu para os policiais, não é? Ladrão nenhum invadiu a casa.
– E-eu...
– Eu não deveria ter deixado vocês sozinhos, eu tive sonhos e vi coisas lá, coisas ruins – minha mãe disse quase que num sussurro de tão baixo. – Me desculpe Lis, eu não imaginava a gravidade do problema, achei que fosse só mais algum morto amargurado ou desocupado com o qual eu já estava acostumada a lidar. Devíamos ter ido embora.
– Você... O que foi que você viu?
– Sonhei com uma mulher, uma moça triste, com olhos e cabelos claros, me disse que deveríamos sair porque ali não era lugar para os vivos e muito menos para crianças como vocês – ela respondeu e eu soube instantaneamente que ela falava de Evelyn, mãe de Abelle e ex-esposa de Victor. – E o tempo inteiro eu vi uma garotinha com você, te acompanhando. Desde que estávamos na estrada ela já estava junto, sentada ao lado do seu irmão no banco de trás.
– Abelle – eu deixei escapar e engoli em seco, vendo minha mãe dar uma risada amarga.
– É, você repetiu esse nome muitas e muitas vezes quando chegamos, e nunca parecia se lembrar ou ter noção do que estava falando. Eu deveria ter sido mais esperta, mas ignorei tudo isso porque estava cega, ou me fazendo como tal, porque tudo o que eu queria era que pudéssemos recomeçar como uma família feliz, estável e normal.
– Não foi a única, não precisa se culpar tanto, e não tinha como saber – eu retruquei com sinceridade e meus olhos pararam em meu braço enfaixado. – Ainda acho que tivemos sorte. Pelo menos estamos vivos, estamos bem. Todos os outros saíram dessa loucos ou mortos.
A mão gelada de minha mãe apertou a minha que não estava machucada e eu soube que ela se lamentava tanto quanto eu, e odiei isso. Não era culpa dela, e minha mãe já se culpava por coisas demais, não queria que eu e meu irmão estarmos debilitados em uma cama de hospital fosse mais uma delas.
– A culpa não é sua, a culpa é do doente que começou tudo isso, e de mais ninguém – disse e ela fungou baixinho. – Mas o que vamos fazer agora?
– Vamos voltar para a casa da sua avó.
– Não! Mãe... – Guinchei e respirei fundo antes de continuar, não queria parecer uma louca desesperada. – Eu conheci pessoas legais aqui, pessoas que me ajudaram, que cuidaram de mim e do Eliel também, e além do mais... Eu não sei, depois de toda essa porcaria sinto que tenho um negócio com Winter Hills, sabe?
Não, ela não saberia.
– Você é doida – ela disse rindo e meu um beijo na testa antes de se levantar. – Você tem que descansar, conversaremos melhor sobre isso quando você e seu irmão estiverem bem.
◈◇◈
Aparentemente eu e meu irmão nunca ficamos realmente bem visto que seis dias se passaram e a tal conversa nunca aconteceu. Ao menos minha mãe pareceu considerar o que eu havia dito apesar de todo o resto – mesmo que eu ainda não fizesse ideia do motivo para isso – porque agora estávamos arrumando móveis e desempacotando as poucas coisas que haviam sobrado do incêndio numa tentativa de fazer a pequena casinha de esquina que minha mãe alugara parecer um pouco mais como um lar.
Ficava bem perto da casa de Dona Emy, quem havia nos ajudado a arrumar a tal casa pois era amiga próxima da proprietária, e quem havia prometido e jurado por tudo que faria qualquer outra coisa que fosse preciso para nos ajudar desde que estivesse ao seu alcance.
Tudo parecia estar melhorando aos poucos por mais que as lembranças ainda voltassem e me atormentassem como se eu ainda estivesse lá, presa naquele sótão em chamas com Victor – e o mesmo parecia acontecer com Eliel, que constantemente acordava aos gritos de madrugada, precisando ser acalmado por mim ou pela minha mãe – mas ainda assim estava melhorando se pudesse considerar que uma semana atrás meu irmão estava desaparecido e a beira da morte e eu enlouquecendo.
Abri um sorriso um pouco aliviada enquanto encarava o teto deitada na minha mais nova cama de solteiro com seu colchão duro e estrutura de madeira resmungona. Eram quatro da tarde e eu estava morrendo de tédio e sono quando senti alguém se sentar na ponta e me sentei, pronta para perguntar o que meu irmão queria quando vi a garotinha loira sorrir para mim e encolher os ombros, fazendo com que meu corpo inteiro se arrepiasse.
– Você se assusta fácil – ela disse como se estar ali fosse a coisa mais natural do mundo. – Papa realmente fez um estrago e tanto com você e o seu irmão, eu sinto muito.
– Eu... O que... – engoli em seco. – O que você está fazendo aqui?
– Eu queria agradecer, Lis – Abelle disse e seus olhinhos azuis se voltaram para mim. Era um alívio poder ver suas íris da cor do céu ao invés de buracos escuros tristes e assustadores. – Você conseguiu, eu estou livre. Eu e todas as outras crianças que ajudou.
De repente, toda a tensão que eu estava sentindo desapareceu. Abelle estava ali, estava bem, sorrindo e me agradecendo em sua versão mais pura e em paz.
– Eu tinha que conseguir – respondi e Abelle assentiu. – Mas não teria conseguido sem você. Agora meu irmão está bem, eu estou bem e espero que você esteja bem também.
– Eu estou, todos nós – ela disse e ouvi quando ela suspirou, não como se estivesse cansada, mas sim ansiosa por algo. – Eu queria poder conversar mais com você, Lis, queria que pudéssemos ter sido amigas, de verdade sabe? Mas infelizmente, ou felizmente, não pertencemos ao mesmo plano. E você já tem pessoas que ama e que te amam aqui e eu... Eu também tenho alguém.
Um sorriso automaticamente se formou em meu rosto ao ver a felicidade claramente transbordar do olhar da menina que pousou as mãozinhas sobre o coração e também sorriu.
– Era isso eu acho, espero que você fique bem, agora eu preciso ir – Abelle terminou e se levantou, colocando um cacho de seus cabelos dourados atrás da orelha. – Minha mama está esperando por mim.
– Eu sei que está – respondi com a voz embargada e os olhos úmidos.
Estava tão focada em tentar não chorar que acabei me assustando mais uma vez quando Henri bateu na porta com uma expressão confusa e uma garrafa de refrigerante e um pacote de salgadinho na mão.
– Sua mãe me deixou entrar e... Com quem estava falando? – Ele perguntou franzindo as sobrancelhas e travei por um momento.
– E-eu estava... – gaguejei voltando o olhar para a ponta da cama e vendo que não havia mais ninguém ali, então apenas meneei a cabeça e dei uma risadinha. – Com ninguém, estava falando sozinha. Eu sou meio doida, você sabe.
Henri pareceu desconfiado por um momento, olhando por alguns segundos o mesmo lugar que eu estava encarando feito doida quando entrara no quarto, até que decidiu que era melhor só deixar de lado, me respondendo apenas com um:
– É, eu sei.
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