Cap. 33

Disse adeus a você meu amigo
Enquanto o fogo se espalha,
Tudo o que restou são os ossos
Que em breve irão afundar como pedras

Então segure-se,
Segure-se ao que somos,
Segure-se em seu coração

Of Monsters and Men – Your Bones

◈◇◈

Assim que pisamos na grama e o vento gelado do início de noite bateu contra o meu rosto, foi como se um choque de realidade me atingisse. Eliel estava vivo, estava comigo, a Casa de Bonecas estava em chamas bem atrás de nós, e não havia nada nem ninguém tentando nos matar.

Parei de andar de repente e, quando Eliel se virou para perguntar o que havia acontecido, não consegui evitar um misto de choro e riso ao vê-lo ali, parado com sua cara estranha de confusão, com os olhos vermelhos marejados e os cabelos cobertos de poeira, cinzas e teias de aranha.

Comecei a rir histericamente sem ter mais qualquer controle sobre o que sentia, abraçando-o tão forte que meus próprios braços chegaram a doer.

– Meu Deus você tá bem, você realmente tá bem! Eu tive tanto medo... Tanto medo de que alguma coisa acontecesse com você – disse espremendo seu rosto entre as mãos e encarando aqueles olhinhos verdes que por várias vezes na vida desejei que não existissem. Céus, o que eu tinha na cabeça?

– Eu estou bem, Lis – ele respondeu soluçando e me abraçando mais uma vez. – Estamos bem.

– Ai caramba, eu prometo que eu nunca mais eu vou brigar com você. Cacete, que merda, Eliel – eu disse dividida entre ficar realmente muito puta por tudo o que havia acontecido ou me sentir o ser humano mais aliviado e sortudo do mundo por estar tendo a chance de abraçar aquele animal mais uma vez, tendo a certeza de que mais nada aconteceria à ele, porque toda aquela porcaria havia finalmente acabado.

Ouvi sons de carros se aproximando e me virei, vendo duas viaturas que pareciam estar em sua velocidade máxima pararem logo à frente da minha casa com um Henri desesperado que logo pulou de dentro do veículo e veio correndo em nossa direção.

– Vocês estão bem. Céus, vocês realmente estão bem – ele disse nos abraçando por longos segundos antes de se voltar à casa, as chamas que saíam do segundo andar refletindo em suas íris esmeralda. – Ah, Lis...

– Desculpe – eu disse sentindo um bolo se formar em minha garganta, mas não por um choro de alívio ou felicidade, mas sim de culpa. – Eu não queria...

Fui interrompida por um beijo na testa e mais um abraço que se fosse um pouquinho mais apertado acredito que seria capaz de deslocar meus ombros.

– Tá tudo bem, Abelle agora está bem e vocês estão bem e essa porcaria agora não vai mais destruir a vida de ninguém – ele disse e assenti ainda com meus olhos ardendo pelas lágrimas que não parariam de cair tão cedo.

Ouvi um pigarro e senti uma mão pousar sobre meu ombro, me fazendo olhar para cima e me deparar com o mesmo policial com quem eu havia falado no dia em que meu irmão desapareceu. Se eu não estivesse tão abalada poderia xingá-lo por horas a fio pelo desinteresse que demonstrou ao saber que uma criança estava desaparecida.

– Vocês estão bem? Precisamos sair daqui antes que algo pior aconteça, e... Ei, você...? – Ele disse olhando fixamente para mim e eu apenas encolhi os ombros, fazendo-o menear a cabeça por talvez perceber que aquilo não era importante agora. – Vamos, vocês precisam me acompanhar até a delegacia, logo os bombeiros chegarão para dar um fim nisso.

Apenas concordei e eu e meu irmão me levantamos com a ajuda de Henri. Ir para a delegacia não parecia uma boa, provavelmente eles ligariam para a minha mãe que teria um ataque cardíaco ao saber de tudo, mas eu estava bem, Eliel estava bem, e era isso o que mais importava no momento.

Meio molenga, me agarrei ao braço de Henri que só então pareceu notar o buraco e a poça de sangue em minha perna. Eu apenas respirei fundo e encolhi os ombros como resposta e, mais uma vez, ele afastou meus cabelos do rosto e me deu um beijo na testa.

– Você vai ficar bem. Não importa o que aconteça eu vou estar aqui, tá?

E de alguma forma eu soube que aquilo era tudo o que eu precisava ouvir para que as coisas instantaneamente parecessem melhores.

◈◇◈

Estava sentada na maca do hospital com a perna cheia de pontos enfaixada enquanto observava a enfermeira continuar os exames com meu irmão.

Ninguém sabia como e nem o porquê, mas ele tinha ferimentos internos que eram impossíveis de terem sido feitos sem deixar uma cicatriz sequer, porém estavam lá e isso era fato.

Eu sabia o porquê, e meu irmão com certeza também, mas enquanto éramos trazidos ao pronto socorro pela viatura da polícia, prometemos silenciosamente com apenas um olhar que não falaríamos sobre o que realmente tinha acontecido para ninguém.

Um ladrão havia invadido nossa casa, eu e Henri vimos e ele correu para chamar a polícia enquanto meu irmão estava escondido, e nesse meio tempo tomei uma surra até não aguentar mais, quando o tal fulano desistiu e botou fogo na casa. Isso era tudo.

Não vimos o rosto, não sabíamos para onde tinha ido, nem mais nada. Só... aconteceu.

O celular da enfermeira começou a tocar, dando-me um susto e me tirando do meu transe momentâneo até ela largar Eliel e sair da sala para atender.

Ele me lançou um olhar preocupado e pulou da maca onde estava para se sentar ao meu lado, apoiando a cabeça no meu ombro e suspirando. Dei um beijo em seu rosto e apertei forte minha mão em volta da sua.

– Acha que a mamãe vai chegar logo? – Ele perguntou e eu assenti, afinal, se a polícia havia ligado para ela, essa hora ela com certeza já estava na estrada a beira de um ataque nervoso. – Vamos contar pra ela o que aconteceu?

– Olha... Sei que é chato pra você ter que ouvir isso de novo, mas deixe isso comigo tá? Eu vou conversar com ela e vai ficar tudo bem – respondi e Eliel apenas permaneceu em silêncio, respirando forte.

Eu tinha que parecer calma para não apavorar ainda mais o meu irmão, e estava me esforçando ao máximo para isso, mas a verdade era que só de pensar na minha mãe perguntando "O que aconteceu?", meu estômago já se embrulhava, meu coração acelerava e o ar me faltava mais uma vez.

Ela havia pedido para que eu cuidasse de meu irmão, e eu havia falhado. Agora estávamos os dois em um quarto de hospital, com a polícia na nossa cola e nossa casa havia sido reduzida a um monte de cinzas.

Eu queria e deveria estar feliz por tudo ter tido um fim, mas não conseguia, porque no fundo eu sabia que a outra metade da merda ainda não havia nem começado.

Levantei os olhos quando alguém bateu na porta do quarto e lá estava a enfermeira, com o celular ainda em mãos, seus olhos escuros focados especificamente em mim.

– Senhorita Marliss, o Xerife Adams deseja falar com você – ela disse parecendo cansada, provavelmente apenas agoniada para ir embora mas sendo impedida por um trio de crianças irresponsáveis e mentirosas.

Tentei afastar esse tipo de pensamento e me levantei, pegando uma bengalinha que o hospital havia disponibilizado e a acompanhando para fora do quarto, mancando mais que não sei o que e me sentindo mais ridícula do que nunca.

Passamos pelo corredor de espera, onde Henri estava sentado com o olhar baixo ao lado de Dona Emy, que acenou para mim e sorriu como se quisesse me reconfortar. Não pude evitar sorrir de volta, principalmente depois que Henri me viu e se levantou num impulso de vir falar comigo mas sendo impedido pela avó que o segurou pelo braço, sabendo que aquele não era o melhor momento.

Céus, só Deus sabia o quanto eu era grato por ter aqueles dois, mas infelizmente não poderiam me ajudar no momento – até porque já estava na hora de eu fazer algo sozinha, não podia sempre depender da boa vontade de outras pessoas.

Chegamos à uma sala que aparentava ser um consultório desocupado onde haviam improvisado uma sala para interrogatórios, e ali estavam o policial de mais cedo, um homem um pouco mais velho e magro com uma barba grisalha e um distintivo dourado em seu uniforme que indicava que ele era o tal Xerife Adams e, por fim, ao lado dele havia uma mulher baixinha, ruiva, parecendo mais cansada do que todos ali, com um caderninho e uma caneta em mãos.

– Pode se sentar, Marliss, prometo que vai ser rápido – a mulher disse e me estendeu a mão direita, a qual cumprimentei meio receosa logo depois de me sentar em uma das cadeiras vagas ali. – Sou Susan, estou responsável pela parte investigativa do caso. Está com assustada? Se sente desconfortável?

– Não – menti, mas saber que pelo menos alguém estava demonstrando se importar com o meu estado psicológico ali já fez tudo parecer um pouco menos pior. – Só com muita dor e meio... atordoada, um pouco, eu acho...

– Tudo bem, é perfeitamente normal que alguém ainda se sinta emocionalmente abalado por um bom tempo depois de passar por uma situação como a sua, saiba que se precisar de alguma coisa pode contar comigo – ela disse abrindo um sorriso e retribuí o gesto, ela parecia ser extremamente simpática e cuidadosa, diferente dos outros policiais e médicos que só haviam nos tratado como um problema. – Quer nos contar mais uma vez o que aconteceu?

Por mais que Susan me deixasse confiante, aquela pergunta fez com que um frio percorresse minha espinha e eu engolisse em seco pela centésima vez no dia. Mentir não era meu ponto forte, e lembrar de tudo o que havia acontecido também não.

– Meu irmão estava em casa e eu e Henri tínhamos acabado de sair para comprar algo para comer, quando no meio do caminho nos demos conta de que tínhamos esquecido o dinheiro. Voltamos para casa e encontramos a porta aberta, diferente do que tínhamos deixado e meu irmão não estava mais na sala, achei estranho e fui até o primeiro andar, onde vi a porta do sótão aberta e era impossível que Eliel tivesse aberto sozinho, ele não tem altura o suficiente pra isso – contei tentando parecer o mais natural possível e tomei um tempo para respirar. Susan anotava tudo em seu caderno e parecia muito mais paciente, apesar de parecer mais exausta, do que os outros dois policiais presentes. – Foi quando ouvi a voz de um homem, alguém que eu não conhecia. Fiquei assustada e a primeira coisa que fiz foi dizer à Henri para chamar alguém porque tinham invadido a casa.

– Em algum momento pensou em ir junto? – O Xerife perguntou, me pegando de surpresa, e após alguns segundos imóvel, neguei com a cabeça.

– Meu irmão estava lá, e eu não podia deixá-lo sozinho com alguém que tinha invadido a casa, eu tinha que fazer alguma coisa ou pelo menos tentar, tenho certeza que uma pessoa que invade uma casa não está com a melhor das intenções, ainda mais quando se tem uma criança sozinha dentro da casa.

A detetive pigarreou e apertou minha mão, lançando me um sorriso como se me dissesse para manter a calma e ignorar os comentários do xerife.

– Está tudo bem, nós entendemos que nestas horas é difícil pensar de forma mais racional e lógica, acabamos agindo pela emoção e não há problema algum nisso – ela disse e me senti um pouco mais aliviada por ter alguém ali que me entendia. – Você chegou a ver como era esse homem, Marliss?

– Não, creio que nenhum de nós tenha conseguido ver. Ele usava uma máscara preta que cobria todo o seu rosto, roupas pretas, inclusive luvas, mas era alto, não muito magro nem muito gordo, só... normal. E é só isso o que eu sei.

– Hum... Você sabia sobre os corpos? Os das paredes? – Ela perguntou e engoli em seco, sentindo meu coração acelerar ainda mais por ser justo aquele o assunto que eu mais queria evitar. – Sabia sobre os assassinatos e os desaparecimentos?

– Não, creio que ninguém da minha família sabia, eu mal sabia da existência de Winter Hills na verdade... E creio que são poucas as pessoas que iriam morar numa casa sabendo que ela tem uma história horrível e macabra, e minha mãe felizmente não faz parte dessa minoria – respondi da forma mais natural possível até porque de certa forma era tudo verdade, eu não sabia nada sobre aquilo até Victor começar a nos perturbar e me causar pesadelos.

– Ok... Muito obrigada pela sua ajuda, iremos fazer o possível para encontrar a pessoa que fez isso à vocês, pode ir descansar – Susan disse enquanto anotava coisas em seu caderninho e assenti, me levantando com a ajuda de um dos policiais que, apesar de parecer ser um ignorante idiota, percebeu que eu estava com dificuldades devido ao meu pulso deslocado e perna rasgada e me deu seu braço para que eu pudesse me apoiar.

Do lado de fora da sala, Henri me esperava com um olhar preocupado, apoiado na parede ao lado da porta com os braços cruzados sobre o peito. Ele veio até mim e acenou para o policial, sinalizando que estava tudo bem e ele já podia me deixar ali.

Quando o homem se foi, Henri me abraçou e, com o rosto enterrado nos meus cabelos embaraçados, murmurou:

– Como foi? Tá tudo bem?

– Ainda não, mas vai ficar, eu sei que vai – eu disse e ele riu.

– O fato de você estar sendo otimista já é meio caminho andado já que essa é uma coisa rara de se ver – Henri disse e meneei a cabeça sabendo que aquela era a mais pura verdade.

– Bom, aprendi com o melhor – eu disse quando nos soltamos, sorrindo e, pela milésima vez desde que tínhamos nos conhecido, me perdendo naquelas íris verdes que pareciam ser meu mais novo ponto de tranquilidade.

Não senti aquele incômodo frio na barriga nem qualquer outro sintoma de uma adolescente apaixonada, apenas paz, alívio e gratidão por ter um amigo tão bom quanto Henri.

Definitivamente, tudo ficaria bem.

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