Cap. 31
Um pouco de veneno em mim
Eu posso sentir sua pele nos meus dentes
"Eu adoro quando ouço você respirando
Espero que, por Deus, você nunca vá embora"
[...]
Uni, duni, tê
Pegue uma dama pelos pés
Se ela gritar, não deixe-a ir
Uni, duni, tê
Sua mãe disse para escolher a melhor garota
E ela sou eu
Melanie Martinez – Tag, You're It
◈◇◈
Senti o látex sobre minha boca quando me preparei para gritar, impedindo que eu fizesse qualquer som além de resmungos baixos indecifráveis. Cerrei os olhos marejados pela dor quando os dedos de sua outra mão se enroscaram em meus cabelos e puxarem minha cabeça para trás com uma força surreal, me permitindo ouvir meu pescoço estalar e vários fios de cabelo se quebrarem.
– Agora você vai ficar quietinha, entendeu, mocinha? – Victor disse com seu sotaque francês horrível e meu estômago se revirou. Eu sentia nojo só de ouvir aquela voz.
Instintivamente comecei a me debater na esperança de me soltar, mas era tudo em vão. Para Victor era como se eu não passasse de mais uma boneca, sem peso e sem vida.
Ele me arrastou para um canto empoeirado e cheio de teias de aranha do sótão e me jogou contra a parede. Um baque alto ecoou pelo local quando minha cabeça bateu contra as tábuas de madeira e um grunhido de dor escapou dos meus lábios secos.
Tudo de repente parecia ter ficado escuro e turvo e eu me sentia mole e fraca, falhando nas minhas tentativas completamente inúteis de levantar do chão.
Meus olhos pesavam e podia sentir meu crânio latejar de dor quando Victor se aproximou mais uma vez e, mesmo sem conseguir ver, soube pela leve picada seguida de uma sensação de queimação em meu braço que eu estava sendo sedada.
Ele se afastou ainda com a seringa em mãos e consegui me arrastar por alguns poucos centímetros no chão em direção à pequena portinha fechada que me permitiria sair daquele inferno, mas fui puxada pela blusa e colocada de volta sentada no mesmo canto sujo de antes com as costas apoiadas sobre a parede que parecia estar fedendo ainda mais forte a mofo.
Eu já mal conseguia respirar e estava prestes a apagar de vez quando senti, mesmo que muito fraco, um toque gélido e suave sobre a minha mão. Não era Victor daquela vez, e eu sabia disso.
Eu estava assustada – apavorada, até – e quase não tinha esperanças de que aquela situação pudesse se voltar a meu favor, mas aquele toque foi um lembrete de que eu não estava sozinha e que não podia desistir.
– Eu não sei qual é o problema com vocês, idiotas, que acham que sabem de tudo e insistem em ajudar aquela aberração que chamam de criança – Victor começou a falar e, se estivesse mais sóbria e menos em pânico, talvez tivesse revirado os olhos pois já tinha lido livros demais e sabia que aquela era a hora em que o vilão começaria a fazer seu discurso doentio e sem sentido. – Eu fiz um favor à essa cidade... Não, fiz um favor ao mundo e continuo fazendo mantendo aquele monstre incapaz de destruir e machucar mais alguém, mas vocês insistem na burrice, em tentar ser os heróis de uma história onde não existem heróis além de mim.
Eu mal prestava atenção no que Victor falava enquanto, de costas para mim, se distraía com alguma outra coisa. Tudo o que estava recebendo minha atenção no momento eram os olhos azuis de Abelle que me encaravam com confiança por trás de algumas poucas mechas louras que caíam sobre seu rosto.
Não dê ouvidos, Lis. Você é forte, você consegue, vai fazer isso por todos nós, sua voz disse em minha mente me mantendo acordada e, como uma martelada, um nome surgiu em minha mente e me atingiu em cheio.
Eliel.
– Mesmo depois de me tirarem o que eu tinha de mais precioso, eu ainda trouxe beleza para aqueles que não tinham, eu ajudei milhares de famílias...
– Você matou todas essas crianças, você não é herói nenhum, é só um psicopata, um doente – murmurei, sentindo que quanto mais Abelle me acalmava, mais eu me sentia disposta novamente. Sabia que era fisicamente e biologicamente impossível, mas enquanto ela ficava ali e as lembranças de meu irmão me vinham à cabeça, era como se nem mesmo os sedativos de Victor pudessem me derrubar novamente. – Você não amava Evelyn, você era obcecado pela beleza dela, e só. Para você ela era só uma estrutura bonitinha porém vazia, exatamente como as bonecas ridículas que você criou.
– Qual cor de olhos minha nova poupée gostaria? Bleu? Rose? Doré acho que cairia bem – ele disse sem dar a mínima para o que eu havia dito e agradeci mentalmente por ele ainda estar distraído àquele ponto.
Me apoiei na parede com as mãos trêmulas e me levantei tentando ser o mais silenciosa possível, agradecendo mentalmente pelos meus tênis não serem daqueles que fazem a maior barulheira pelo atrito mais leve possível com o chão.
Minha cabeça ainda parecia meio embaralhada e a imagem de Victor parecia oscilar à minha frente. Será que era aquela a sensação que as pessoas tinham quando usavam LSD? Porque não era nem um pouco divertida.
Corri os olhos pelo cômodo em busca de algo para me defender quando avistei uma viga de madeira solta no canto próximo a onde eu estava. Não era muito grande e nem parecia muito pesado, mas parecia leve o suficiente para eu levantá-lo sem muito esforço e machucar aquele projeto de Hannibal Lector criador de bonecas, nem que fosse só uma dorzinha insignificante, já deveria ser o bastante para atordoá-lo um pouco.
Me arrastei pela parede e estiquei o braço até sentir meus dedos tocarem a superfície úmida da madeira, agarrando-a e puxando para perto. Soltei um grito abafado ao me voltar para a frente e me deparar com um par de olhos azuis psicóticos que com certeza não eram os de Abelle.
– O que voc... – eu com certeza não queria dar tempo àquele ser então mal o deixei terminar a frase e bati com o pedaço de madeira em seu joelho esquerdo com o pouco de força que tinha em meus braços adormecidos.
O ouvi resmungar enquanto caía de joelhos no chão, xingando. Aproveitei para me afastar e ergui minha única opção de arma sobre a cabeça.
– O que você fez com o Henri? – Perguntei ofegante, ainda sem ter me recuperado totalmente mesmo que com a ajuda de Abelle.
– Quem? – Ele perguntou e senti um ódio surreal tomar conta de mim.
Aquele desgraçado não fazia questão de saber nem o nome das pessoas que atacava, eram como insetos para ele.
Ia acertá-lo uma segunda vez, porém suas mãos enluvadas seguraram a madeira antes que esta atingisse suas costas.
Não tive a chance nem de raciocinar direito quando Victor puxou o objeto e a mim junto, trazendo-me mais para perto e imediatamente fechando fortemente a mão em volta de meu pulso que estalou e me fez gritar com a dor e sensação de queimação que subiu pelo meu braço e pareceu irradiar pelo meu corpo inteiro.
– Você não vai fugir – ele sussurrou pausadamente no meu ouvido ainda apertando meu braço.
Eu sentia tanta dor que mal conseguia falar, então apenas puxei o braço que ele ainda segurava para perto do meu rosto e, sem pensar duas vezes e antes que ele pudesse tomar alguma atitude, mordi sua mão, apertando meus dentes com tanta força contra sua carne – ou seja lá o que fosse – que pude sentir o látex da luva se romper e o gosto de sangue invadir minha boca.
Ele parecia bem vivo para quem havia se suicidado há mais de um século, o que era bem esquisito.
Victor gritou e puxou a mão de volta com certo esforço, usando a mão boa para desferir um tapa em meu rosto enquanto se afastava.
Senti minha bochecha arder e minha bunda formigou quando caí sentada no chão. Cuspi o sangue que ainda me trazia um gosto horrível na boca e limpei os lábios úmidos na manga do casaco.
– Sua vadiazinha... Você e ela são iguaizinhas, por isso se dão tão bem, n'est-ce pas? Putain de chienne – ele resmungou e não era preciso muita fluência em francês para saber que eu estava sendo xingada.
Me apoiei sobre o joelho para me levantar e, mais uma vez fui puxada pelos cabelos. Doía mais que tudo, tanto minha cabeça, quanto o rosto e o pulso que provavelmente havia quebrado ou deslocado.
Tentei me debater mas, além de não adiantar pelo simples fato de que Victor estava bem determinado a não me soltar, aquilo parecia só piorar a dor.
Fui jogada sobre algo como uma mesa cirúrgica, sentindo o metal frio queimar os poucos lugares em que minha pele estava exposta e, talvez devido à força com a qual fui arremessada, outros móveis próximos estremeceram e pude ouvir uma porção de recipientes de vidro caindo no chão e se quebrando.
Um misto de cheiros fortes de diferentes produtos químicos inundou o ar, coisas que eu nem sabia identificar, mas duas em particular chamaram minha atenção: álcool e acetona.
Era isso. Victor e aquela casa iam me deixar em paz por bem ou por mal, e que melhor forma de fazer isso na maldade se não queimando aquele lugar inteiro com o fogo do inferno que aquele psicopata merecia?
Fingi estar atordoada e meio dormente quando Victor passou a, ainda xingando, verificar em outra mesinha próxima quais de seus "materiais" ainda estavam intactos, e comecei a procurar por qualquer coisa que pudesse usar para atear fogo naquela merda de lugar.
Eu realmente não fazia ideia do porquê Victor usaria aquilo para embalsamar e embelezar um cadáver, mas pude ver algo como um maçarico antigo em um dos móveis próximos. Bingo.
Pela primeira vez eu vi vantagem em poder encontrar todo o tipo de porcaria naquele sótão.
Mas antes, eu ainda tinha coisas para fazer.
Eliel. Os corpos nas paredes.
Tentei me levantar sem ser percebida mas um soco na costela me atingiu em cheio e fez com que eu me encolhesse de dor, sentindo as lágrimas quentes descerem ainda mais fortes e insistentes pelo meu rosto.
Desta vez não havia nada quebrado nem deslocado, mas ainda assim foi uma dor surreal que conseguiu me deixar sem fôlego por uns instantes.
– Se você não colaborar vou te deixar tão roxa que você vai se tornar a coisa mais feia que já criei – ele disse e não pude evitar que uma risada amarga escapasse dos meus lábios.
– Eu não teria tanta certeza disso – respondi me lembrando das primeiras "bonecas" que ele criara, as que eu vira nas lembranças de Abelle, cheias de marcas de queimaduras, os olhos tortos e pedaços de cabelo faltando em suas cabeças.
Céus, o que ele havia feito com aquelas meninas? Elas deveriam ter sido tão bonitas em vida...
– Você é burra, toda essa sociedade é burra, não compreende o que é beleza de verdade, não compreendiam nem mesmo a beleza da minha doce Evelyn...
– Já se perguntou o que sua esposa acharia disso, Victor? O que ela pensaria se soubesse o que houve com a filha de vocês? – Eu disse e me arrependi na mesma hora pois fui pega pelo braço machucado e arremessada no chão coberto por cacos de vidro e produtos químicos.
Um dos pedaços de vidro atravessou minha calça e se enfiou em minha coxa como uma faca. Aquilo foi o que bastava para que eu atingisse o desespero, pois assim que toquei o corte e vi o tanto de sangue que agora manchava minha mão, senti meu coração parar e o ar me escapar por um instante.
– Abelle não é minha filha! – Ele gritou porém nenhuma palavra sua pareceu fazer sentido para mim.
Eu nem sabia porque estava me fazendo de forte, bancando a super-heroína irônica, era como Victor dissera: heróis não existiam, e eu ia morrer ali mesmo, sem ter a mínima chance de salvar meu irmão e Abelle e resolver aquilo tudo.
Eu estava ferida e desorientada, minha mente parecia um monte de ovo mexido sem sentido, nada que eu pensava parecia se conectar de forma alguma e tudo o que eu via era o sangue – o meu sangue – jorrando e se alastrando pelo chão e pelas minhas roupas, e agora Victor estava mais furioso do que eu jamais vira, definitivamente desejando, mais do que qualquer coisa, me ver morta e escondida atrás das paredes junto das outras crianças que haviam sofrido em suas mãos.
Levante-se, Lis, Abelle voltou a dizer em minha cabeça e neguei mentalmente. Eu não iria conseguir.
Você é a única que pode fazer isso.
Eu não tinha tanta certeza, e essa certeza só se tornou ainda menor quando Victor me puxou e me jogou contra a mesa cirúrgica novamente.
Eu ia desistir, entregar o jogo e passar para o próximo azarado que decidisse morar naquele inferno. Mas como disse, eu ia, até ouvir a próxima voz que me despertou do meu surto momentâneo.
Não seja otária agora, por favor. Eu preciso de você, Lis.
– Eliel... – o nome escapou de mim como um lembrete de que eu ainda tinha sim forças restando, e aquela era a hora perfeita para usá-las.
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