Cap. 28
Então nós entramos e
Gravemente lemos as lápides
Todas estas pessoas, todas estas vidas
Onde estão agora?
Com amores, e ódios
E paixões iguais às minhas
Elas nasceram
E então viveram
E então morreram
Parece tão injusto
Me dá vontade de chorar
The Smiths – Cemetry Gates
◈◇◈
– Ok, não é tão assustador quanto eu pensava – murmurei enquanto eu e Henri andávamos lentamente por entre os túmulos do cemitério da cidade, quase que escondidos sob o gramado alto e malcuidado.
– O que? Você estava esperando encontrar vampiros e demônios andando por aí livremente? – Henri perguntou de uma forma nada séria e encolhi os ombros.
– É... Eu meio que tinha uma ideia bem errada sobre cemitérios já que nunca tinha estado em um antes – respondi meio envergonhada por este fato, afinal, que tipo de ser humano nunca foi em um enterro de pessoas próximas antes? – Claro que eu tenho alguns parentes mortos e tal, mas minha mãe nunca me deixou ir ao enterro ou velório deles, ela achava que seria uma experiência traumatizante para mim. Exceto no do meu pai.
– Como assim?
– Eu acabei não indo por vontade própria. Mesmo sendo só uma criança, acho que eu já tinha consciência de que não seria legal que a minha última memória dele fosse do seu corpo morto em um caixão, seria triste e esquisito, então eu só... não quis.
– Faz sentido. Mas... E o pai do seu irmão? O que houve? – Henri perguntou e soltei um suspiro cansado, sem querer lembrar daquele assunto novamente.
– Ele e minha mãe não se davam muito bem. Quero dizer, se amavam é claro, mas viviam brigando por coisas idiotas e isso acabava deixando as coisas meio turbulentas do tipo, eu e meu irmão trancados no quarto fingindo que nada estava acontecendo mesmo que estivéssemos a beira de um ataque de pânico enquanto minha mãe e Jack trocavam apelidinhos "carinhosos" na sala. Isso resultou em um divórcio que resultou na nossa mudança que consequentemente resultou no desaparecimento do meu irmão – expliquei e um longo período de um silêncio estranho se seguiu, somente os sons dos meus passos e dos de Henri ao meu lado ecoando pelo local vazio e parado. – Você acha mesmo que vamos encontrá-lo? – Perguntei receosa e novamente senti a mão de Henri se fechar sobre a minha como uma forma de dizer que sim e que ele estaria ali independente de qualquer coisa para me ajudar com aquilo.
– É claro Lis, e eu vou fazer... – na metade da frase eu já não conseguia mais ouvir absolutamente nada do que saía da boca de Henri, estava paralisada e completamente focada na figura à minha frente que corria por entre os túmulos como se aquele fosse um local com o qual já estivesse acostumada.
– Ah meu Deus... – eu murmurei em um misto de espanto e desespero, agarrando o braço de Henri e fazendo-o voltar-se para onde eu olhava fixamente com uma expressão de "qual é a loucura da vez?"
– Lis, o que foi? – Ele perguntou enquanto eu apenas tentava acalmar minha respiração para não acabar surtando mais uma vez.
– Jura que você não tá vendo? – Eu disse incrédula e o silêncio de Henri foi o suficiente para que eu soubesse que não, ele não estava, e provavelmente achava que eu estava delirando mais uma vez. – Abelle...
– Uou, o quê?!
– Precisamos ir até lá – eu disse quase que num impulso e Henri segurou meus ombros, virando-me em sua direção.
– Ficou maluca? Essa não é a garotinha que tá assombrando a sua casa e que muito provavelmente é a responsável pelo sumiço do seu irmão?
– Eu quero muito acreditar que não, por isso eu realmente preciso ir até lá – respondi e, sem dar tempo para mais algum empecilho que Henri poderia querer colocar entre mim e Abelle, corri para onde a garotinha loira brincava com algumas flores, aparentemente falando sozinha.
Quando estava a somente alguns centímetros da menina, travei, sem saber o que fazer. Eu deveria apenas abordá-la e perguntar sobre tudo como se fosse a coisa mais normal do mundo? Bom, eu não sabia se tinha coragem o suficiente para isso – na verdade eu duvidava muito que tivesse –, então apenas me aproximei da forma mais lenta e discreta possível, sentindo que meu coração poderia saltar pela boca a qualquer momento.
Porcaria, Marliss. Deveria ter ficado na sua e apenas procurado pelo seu irmão como qualquer pessoa normal, mas não, vamos ir até um espírito que já morreu a séculos para encher ele de perguntas, nada melhor, não é mesmo.
Ah cacetada, era só o que me faltava, eu a beira de um ataque e meu subconsciente me importunando com coisas óbvias.
– Você veio atrás de respostas, não é? – A garotinha disse tão repentinamente que dei um pulo para trás com o susto. – Ele não está aqui, nenhum deles está, você precisa voltar.
– E-eu... Queria saber mais...
– Quer saber mais sobre o que aconteceu? Tudo bem, isso não me surpreende – ela disse baixinho em um tom suave, nada parecido com a Abelle agoniada e assustada com a qual eu me encontrara em pesadelos e visões. – Viens, vou te mostrar algo.
Apesar dos passos lentos, Abelle parecia saber muito bem para onde estava indo, então apenas a segui, ignorando o fato de as minhas pernas estarem moles e trêmulas feito gelatina.
– Você sabe... sabe onde eles estão? – Perguntei receosa, imaginando que não fosse receber resposta alguma, mas Abelle suspirou e meneou a cabeça.
– Je n'aime pas traiter avec ça... – ela murmurou como se estivesse falando sozinha e suspirou demoradamente outra vez antes de responder. – Sim, você verá.
Após mais alguns minutos lentos e silenciosos de caminhada, Abelle parou em frente a uma lápide específica, abaixando a cabeça como se estivesse triste ou incomodada, e levando as duas mãos róseas de encontro ao peito.
– Minha mama e meu papa estão aqui, eu deveria estar com eles mas... Papa me escondeu junto aos outros – ela disse com a voz carregada e rouca, ajoelhando-se em frente à enorme pedra de mármore onde estavam gravados os nomes e datas:
"Abelle Rose Le'Clair - ✩ 13/04/1866 - ✟ 24/12/1875
Evelyn Rose Le'Clair - ✩ 02/07/1845 - ✟ 13/04/1866
Victor Le'Clair - ✩ 30/12/1836 - ✟ 25/12/1875"
– Isto é...? – Perguntei e Abelle apenas balançou a cabeça afirmativamente.
– Ou pelo menos deveria ser, mas nunca encontraram o meu corpo, somente o de papa da minha linda mama, mas você vai encontrar, assim como o seu irmão e os corpos de todas as crianças também – ela disse e quando abri a boca para fazer mais perguntas, a menina gesticulou para que eu me abaixasse ao seu lado. – Não posso te mostrar nada sem que você consinta, então me responda, você quer ver?
– E-eu... eu não sei – sussurrei mordiscando o lábio inferior, tensa e em dúvida.
Todas as visões que Abelle me mostrara haviam sido assustadoras e tinham apenas piorado a situação, me deixando em pânico ao invés de me fazer entender melhor o que se passava. Eu tinha medo de que o que ela iria me mostrar desta vez fosse pior do que tudo que eu já havia visto desde que eu agora sabia sobre as bonecas humanas de Victor.
Olhei para o lado esperando que Abelle me incentivasse ou pelo menos desse um palpite sobre o que fazer, mas ela apenas continuava com a cabeça baixa, os cachos loiros cobrindo o rosto, enquanto passava os dedinhos gordos e rosados pelo nome de sua mãe.
Respirei fundo e coloquei minha mão por cima da sua, assustando-me de início por me lembrar que se tratava de um espírito mas que ainda assim eu podia sentí-la, como se fosse um ser humano normal, vivo e sólido. Me afastei lentamente e tentei tirar aquilo da cabeça, também focando o olhar no túmulo da família Le'Clair.
– Eu quero fazer isso – eu disse baixinho, hesitante, e pude ver Abelle se agitar um pouco depois de tanto tempo imóvel e concentrada nos nomes gravados no mámore à nossa frente. – Quero saber o que aconteceu, quero poder ajudar você e todas as outras crianças. Quero acabar com esse pesadelo de uma vez, então ninguém nunca mais vai precisar se machucar.
Não houve resposta alguma por parte da menina e por um momento cheguei a pensar que ela havia me ignorado ou apenas desistido da ideia, pelo menos até vê-la se voltar para mim e levantar o rosto, mostrando os dois buracos negros que agora tomavam conta de seus olhos.
Me afastei com o susto em um gesto quase automático, engolindo em seco e sentindo minha pele gelar.
– Não tenha medo, eu... Eu já tive olhos lindos, assim como os seus – ela disse com certo pesar, o que fez com que eu me sentisse horrível pela minha reação. – Isso costumava me deixar triste, mas não me importo mais, eu só... eu só queria poder descansar.
– Sinto muito – respondi sentindo meu coração pesar, eu nem conseguia imaginar o tanto que aquela garotinha deveria ter sofrido nas mãos do pai enquanto estava viva e o tanto que ainda sofria mesmo depois de morta.
Ela apenas meneou a cabeça e pousou os dedos sobre as minhas têmporas, pressionando-as cada vez mais forte. No início era somente uma pressão comum e suportável, mas foi ficando cada vez pior, fazendo minha visão escurecer e minha cabeça doer como se recebesse marteladas.
Cerrei os olhos e gritei com a dor que parecia apenas aumentar a cada segundo. Fechei as mãos em volta dos braços de Abelle, tentando afastá-los completamente em vão, pois começava a ficar sem forças e cada vez mais tonta.
– Não... – murmurei quando Abelle finalmente me soltou e meu corpo fraco caiu na grama do cemitério.
Eu queria levantar, mas mal conseguia abrir os olhos e o chão parecia girar abaixo de mim enquanto eu me sentia cada vez mais distante da realidade.
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