Cap. 25

Eu não quero saber
Quem somos sem um ao outro
É tão difícil
Eu não quero sair daqui sem você
Eu não quero perder parte de mim

Ruelle – The Other Side

◈◇◈

– Eliel – eu disse quase sem fôlego enquanto me sentava no sofá tentando acalmar minha respiração descontrolada.

Meu corpo suava apesar de estar gelado e eu sentia meu peito pesar, como se de repente todos os órgãos dentro das minhas costelas tivessem, juntos, muito mais que uma tonelada. Resmunguei com a dor de cabeça que chegou logo a seguir e passei o dorso da mão sobre a testa úmida para secar o suor.

Percebi que uma luz pálida entrava pelas janelas e iluminava a casa. Já era de manhã? Eu me sentia muito mais cansada do que na noite passada, era como se eu houvesse passado a noite inteira em claro.

Respirando fundo, me espreguicei e afastei as cobertas que se embolavam em volta de meu corpo, demorando um pouco antes de me levantar de vez enquanto processava as informações daquele maldito pesadelo.

Meu estômago se embrulhou quando imagens do meu irmão pálido, nu e com os dois olhos arrancados me vieram à mente e, mais uma vez, pedi desesperada para qualquer entidade superior que pudesse me ouvir para que Eliel estivesse bem e que estivesse passando bem longe do estado em que se encontrava no sonho que eu tivera.

– Ah, bom dia – Henri disse todo sorridente enquanto descia as escadas, os cachos escuros de seu cabelo pingando água e seu rosto mais corado que o normal. – Ah, e-eu... Tomei um banho enquanto você dormia, se não se importa...

Permaneci em silêncio, sem conseguir responder ou reagir. Me sentia tonta e meu corpo estava dormente como se eu ainda não tivesse acordado por completo.

– Você tá legal? – Henri perguntou enquanto sentava ao meu lado no sofá, passando o braço pelos meus ombros em uma tentativa de me confortar.

Mas eu não me sentia triste e nem mal, só... Estranha, como se algo não estivesse certo e eu ainda estivesse presa em um sonho.

– Sim eu só... Tive um pesadelo muito... Bizarro – respondi enquanto continuava a tentar recuperar o fôlego.

– Quer me contar?

– Foi mal mas acho que eu só quero esquecer isso por enquanto – confessei e Henri consentiu, provavelmente já tendo uma ideia de sobre o que fora o tal pesadelo. – Precisamos ir procurar o Eliel agora.

– Não acha que seria melhor descansar mais um pouco? Você não parece muito bem – ele supôs e neguei quase que desesperada enquanto tentava levantar do sofá e falhava miseravelmente em algo tão simples.

Assim que fiquei de pé senti como se o chão estivesse derretendo abaixo de mim e acabei caindo sentada novamente com olhos verdes mais do que preocupados me encarando como se eu fosse um problema.

Ele colocou a mão sobre o meu rosto e fez uma careta insatisfeita. Ótimo, eu ainda estava com febre, mas e daí? Podia tomar um remédio e pronto, estaria boa de novo, aquilo não importava, o que importava era que eu não sabia como e nem onde meu irmão estava.

– Não precisa ter pressa, entendo que esteja preocupada, afinal, ele é seu irmão e é só uma criança, mas tenho certeza de que vamos conseguir encontrá-lo e de que ele está bem.

– Eu não tenho tanta certeza – retruquei soando realmente pessimista e Henri me abraçou forte.

– Eu sinto muito, Lis. Sinto muito por essa merda toda, você não merece nem metade disso e entendo que queria resolver tudo o mais rápido possível, mas eu também não quero que algo ruim acabe acontecendo com você – ele disse e eu assenti enquanto me xingava mentalmente pelas lágrimas que começavam a inundar meus olhos. – Por favor, descanse mais um pouco, tome um remédio e coma alguma coisa, então prometo que iremos atrás do Eliel.

Eu sabia que Henri era o pior tipo de gente teimosa que poderia existir, então concordei mesmo que contra a minha vontade e tentei me acalmar mesmo sem conseguir tirar da cabeça a imagem daquele homem mexendo com meu irmão como se ele fosse somente mais uma boneca sem vida pronta para ser consertada.

Parei, estática, sentindo que uma luz mágica havia acabado de clarear minha mente idiota e desatenta. Eu era realmente uma idiota.

Todas as aquelas crianças vestidas feito bonecas que eu via, a aversão de Abelle à bonecas e o tamanho das que seu pai lhe dava enquanto ela estava viva... Eram todas crianças reais, crianças que, muito provavelmente, Victor havia assassinado na busca por bonecas perfeitas, sendo esse o motivo de as bonecas de Abelle serem muito maiores e mais realistas que as de porcelana que eu encontrara no sótão, e o motivo de a mulher da biblioteca ter dito que Victor não passava de um doente psicopata.

E o que Abelle havia dito mesmo quando conversara comigo durante o sonho?

– Encontre os corpos... – murmurei ainda mais sem fôlego devido ao nervoso e à ansiedade por mais uma informação que eu havia descoberto depois de ser tão imbecil a ponto de não enxergar algo tão óbvio.

– O que disse? – Henri perguntou confuso e o encarei, confiante.

– Acho que acabei de descobrir algo realmente importante.

◈◇◈

Depois de tomar um banho quente e comer algumas torradas por muita insistência de Henri, fucei minha cômoda até encontrar a chave pequenininha em formato de coração que havia sido posta no meu guarda-roupa apenas alguns dias atrás.

Subimos ao sótão depois de eu convencer Henri que nada de ruim aconteceria e iniciamos uma busca por qualquer coisa que tivesse uma fechadura minúscula e delicada.

– Pode esclarecer mais uma vez o que estamos fazendo aqui? – Ele perguntou enquanto eu revirava o monte de tralhas na procura de algo com um cadeado ou fechadura tão pequenos quanto a chave.

– Esta chave foi deixada por Abelle no meu guarda-roupa, e agora acho que tenho uma ideia do que ela abre.

– O que?

– Eu não sei – respondi e senti que Henri estava se segurando para não rir atrás de mim. – Mas com certeza é algo que tem as informações que preciso para confirmar minha teoria.

– E essa teoria é...?

– Victor era um dollmaker – respondi, parando e apoiando as mãos nos quadris enquanto tomava um tempo para respirar. Minha febre havia abaixado mas eu ainda me sentia mole e cansada. – Dollmakers são, de uma forma simples e menos pesada, fabricantes de bonecas um tanto... excêntricos.

– Ai Jesus, tu me jura que não tá ficando louca?

– Credo Henri, jamais use "tu" no lugar de "você" – eu disse ignorando completamente sua pergunta inconveniente e sem graça enquanto, mais uma vez, corria os olhos pelo monte de bagunça que eu havia jogado num lugar só.

Algo prateado brilhou por entre toda aquela zona como que por mágica e sorri, me abaixando para puxar um pequeno baú de madeira escura do meio de um monte de brinquedos e roupas e ferramentas velhas.

– Arrá – disse mais alto do que gostaria e, também tremendo mais do que gostaria, lutei por alguns segundos até conseguir encaixar a chave na fechadura. – Meu Deus Ex-Machina – sussurrei e Henri mais uma vez franziu as sobrancelhas como se eu fosse uma completa pirada. – Expressão usada quando uma solução aparece de forma aleatória para uma situação que parece impossível. Gosto dela.

– Não fez sentido – Henri comentou e dei de ombros enquanto abria a tampa pesada do baú, me deparando com uma quantidade absurda de papéis rabiscados com rascunhos de desenhos e anotações.

Me sentei no chão enquanto revirava os papéis antigos que pareciam que poderiam se desfazer sobre o meu toque a qualquer segundo. Eu provavelmente deveria ser um pouco mais cuidadosa.

– O que é isso? – Henri perguntou pegando um dos papéis com anotações e o revirando inúmeras vezes com uma expressão confusa. – Não enxergo sem os óculos.

Quase me senti envergonhada por saber que o fato de as suas lentes estarem quebradas era culpa minha mas não havia tempo para aquele tipo de coisa.

– Também não faço ideia. Acho que está tudo em francês – eu disse baixinho enquanto lia tudo rapidamente mesmo sem entender absolutamente nada, mas eu tinha quase certeza de que era francês, Abelle chamava Victor de papa e, se eu me recordava bem, ele mesmo havia conversado com a filha no idioma durante a lembrança/sonho que eu tivera. – Em todas as vezes que Abelle conversou comigo ela parecia ter um sotaque estranho, assim como Victor.

– Pelo amor, quem é esse Victor de quem você tanto fala? Acho que você se esqueceu de me contar essa parte.

– Pai de Abelle, o homem que Eliel viu no dia em que apaguei na banheira e, muito provavelmente, o ser que está causando toda essa porcaria.

Voltei a atenção para o papel em minha mão, sem ter noção nenhuma do que significava as palavras escritas ali – La technique de conservation du cadavre – mas tinha quase certeza que era algo sobre técnica e conservação.

Eram todas anotações escritas à mão em uma letra cursiva impecável, o que me fez duvidar que Victor era algum tipo de médico apesar dos utensílios cirúrgicos que carregava e vestia.

Minha cabeça rodava a cada vez que eu tentava decifrar as palavras daquele texto enorme, então deixei de lado e passei para uma das folhas onde haviam mais desenhos que palavras.

Mais uma vez um título maior que as anotações ocupava o topo da página amarelada: Étape 1: Désinfecter votre poupée. Logo abaixo haviam desenhos feitos com a mais pura delicadeza, esta que era completamente quebrada pelas ilustrações que se seguiam.

Eram desenhos de garotas nuas aparentemente desmaiadas com, a cada desenho, algo como um tutorial diferente, como por exemplo: como tirar e cortar corretamente os olhos, como retirar os órgãos internos sem causar grandes danos à pele, como substituir as unhas naturais por postiças e mais algumas coisas do tipo.

Devolvi o papel ao baú e respirei fundo enquanto tentava não vomitar ao, mais uma vez, lembrar do Eliel de meu sonho e imaginar o que Victor fazia às crianças que pegava para transformar em bonecas.

– É, eu acho que eu estava certa – sussurrei respirando fundo e tentando ignorar meu estômago que parecia estar virando do avesso. – Filho da puta, doente de merda.

– É realmente tão ruim? – Henri perguntou e não consegui segurar uma risadinha amarga e sarcástica.

– Você não faz ideia – respondi ainda enojada por pensar na ideia de um louco sem qualquer noção das coisas pegando crianças para transformá-las em uma falsa representação da perfeição. – Henri, ele... Ai Deus, como eu queria estar errada pelo menos dessa vez.

– O que foi, Lis? Fala logo.

– Ele matava crianças, tá bom? Matava e depois transformava elas em bonecas por algum motivo muito sem sentido e que com certeza não é desculpa para o tanto de merda que ele deve ter feito com essa obsessão estranha e doente.

– E no seu sonho...?

­– É ele estava com a porra do meu irmão! Mais alguma coisa que queira saber? – Gritei muito mais nervosa do que deveria e Henri assentiu. – Desculpa, eu... É muita coisa pra tentar entender ao mesmo tempo e eu já não tenho a cabeça muito no lugar...

– Tudo bem, sou eu que tenho que pedir desculpas, não paro de encher o seu saco por um segundo e você já deve estar nervosa o suficiente sozinha, então... Desculpa – ele disse e respirei fundo, soltando um sorriso mesmo que sem querer.

– Você é sempre tão bonzinho assim mesmo ou só tá tentando me seduzir? – Perguntei e pensei ter visto suas bochechas corarem enquanto ele encolhia os ombros e desviava o olhar. – Desculpe, foi só... uma piada irônica e ruim com o intuito de quebrar esse clima pesado que tá me incomodando pra caralho. Mas ok, esqueça isso, vou tentar manter a calma a partir de agora, não quero que você seja mais um dos que se afastaram de mim por causa desse meu temperamento explosivo incontrolável.

– Você fala tão bem de si mesma, é quase inacreditável – ele disse já se levantando e revirei os olhos, rindo. Eu só dizia as verdades. – Vem, vamos procurar o seu irmão.

Meu coração se apertou mais uma vez assim que ele terminou a frase e engoli, com muita dificuldade, a vontade de chorar que voltava a me perturbar e então voltei a rezar para qualquer Deus ou entidade espiritual/cósmica superior que pudesse me ouvir para que tomasse conta de Eliel o mantivesse bem e vivo até eu encontrá-lo.

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