Cap. 23

Mais do que um braço ao redor destes ombros
Mais como uma luz ao longo do caminho
Esta flor que floresceu no final de outubro
A única cor entre o cinzento
Como eu queria que ela pudesse ter permanecido dessa forma

George Ogilvie – October

◈◇◈

Acabei descendo em um ponto que era mais longe de casa do que eu esperava. A chuva continuava a cair e a rua estava escura e silenciosa, o asfalto molhado brilhando sob a iluminação alaranjada fraca dos postes.

Eu estava encharcada e tremia tanto de frio quanto de nervoso e medo, imaginando que a qualquer momento eu deixaria de estar sozinha naquela rua e que isso não seria uma coisa muito boa. Já eram quase oito horas e Mary devia estar querendo me matar, mas eu só conseguia pensar no que eu havia lido no jornal e escutado daquela bibliotecária esquisita, fora que eu ainda me perguntava como o tempo havia passado tão rápido já que para mim, enquanto estava dentro da biblioteca, apenas alguns minutos haviam se passado.

Aquela mulher da foto, Evelyn Rose... Eu estava mais do que convencida de que ela era a mãe de Abelle, uma vez que a menina havia chamado Victor de papa em suas memórias, sem contar que as duas eram mais do que parecidas.

Mas se era realmente o caso, por que Victor tratava a filha tão mal, como se fosse somente um animal violento? Pensar nisso e tentar entender os motivos por trás desse comportamento tão estranho e bizarro, só me deixava mais confusa e em dúvida, pensando que, talvez, mais uma vez eu estivesse vendo a pessoa errada como inimigo.

Porque Victor e Evelyn realmente pareciam aquele típico casal feliz e gentil de interior, mais do que ansiosos para formarem sua própria família e serem felizes para sempre. Mas em todas as vezes que eu vira ou ouvira Abelle, ela me parecera somente... triste e sozinha, alguém que realmente precisava de ajuda.

Claro que tivera a vez em que sua sombra quase me afogara no banheiro de casa, mas isso era quase irrelevante perto de todas as vezes em que ela se mostrara como apenas uma menina solitária e amargurada pela vida que tivera, uma menina que não conseguia sentir nada que não fosse desespero e medo do próprio pai.

E, pelo o que eu havia presenciado em seu lugar, podia dizer com certeza que não era um medo normal, era algo quase surreal, um medo que nem eu havia sentido durante todos os meus quinze anos de vida, não deixava dúvidas de que ele realmente lhe causava mal.

Respirei fundo para tentar me acalmar pela décima vez no dia e tirei o celular do bolso para, mais uma vez, ver as horas – sim, eu ainda estava paranoica achando que meu cérebro estava bugado no quesito espaço-tempo por conta do que ocorrera na biblioteca.

Mas ok, ainda eram vinte para as oito, nada fora do normal, só... Sons de sirene.

Levantei o rosto sentindo meu coração gelar enquanto implorava mentalmente para que a ambulância que vinha do fim da rua numa velocidade impossível não virasse à direita. Mas, por ironia do destino, foi exatamente o que ela fez, e eu já estava louca demais para que pensasse que o veículo estava indo para a casa de qualquer pessoa que não fosse Mary.

E, embora eu sentisse que a qualquer hora meus joelhos poderiam se despedaçar de tanto que doíam devido ao cansaço, o medo foi mais forte e automaticamente comecei a correr em direção à casa de Mary.

Jesus, se algo tivesse acontecido com o meu irmão eu com certeza seria a próxima a ser assassinada, e com certeza seria pelas mãos da minha mãe.

– Ai meu Deus, ai meu Deus... – eu murmurava enquanto tentava pensar em qualquer outra coisa que não fosse Eliel coberto de sangue, estirado na grama molhada do quintal com um homem demoníaco do século passado sobre ele com cara de orgulho pelo o que havia acabado de fazer.

Céus, você nem sabe se o cara é mesmo um assassino.

Eu esperava mesmo que não fosse, de verdade, do fundo do meu coração eu esperava que ele fosse somente mais uma pessoa normal que morreu há mais de cem anos, e não um maníaco assassino de crianças.

Assim que virei a esquina me deparei com uma agitação de ambulância, enfermeiros e até mesmo a polícia na frente da casa que eu mais temia ser o motivo da confusão, e ver aquilo fez o meu corpo inteiro amolecer.

– O que foi que aconteceu? – Perguntei à um enfermeiro parado ao lado da ambulância, meu tom de voz soando mais histérico aterrorizado do que eu esperava.

– Ela perdeu o bebê – disse olhando para a porta da casa enquanto uma dupla de outros enfermeiros trazia Mary para fora. – Ou o tirou por vontade própria, não sabemos. Você a conhece?

Fiquei um tempo em choque enquanto observava a mulher ser trazida até a ambulância, os olhos escuros arregalados e estáticos, era como se estivesse fora de si, e havia tanto sangue em suas roupas que eu precisei me segurar para não vomitar ou desmaiar ali mesmo.

– Você a conhece? – O homem repetiu a pergunta com uma espécie de ficha em mão e eu assenti.

– S-sim ela... Ela é minha vizinha – respondi tremendo por inteiro, sem conseguir deixar de me perguntar o que diabos havia acontecido.

Mary passou ao meu lado para entrar no veículo, exalando cheiro de ferro e sal, sem me dizer uma palavra ou sequer virar os olhos para mim. E se eu não estivesse tão assustada e confusa quanto ela própria parecia estar, até teria entendido, afinal, o choque e o trauma de perder um filho não devem ser nem um pouco fracos.

– Se quiser contribuir com informações é só falar com aquele senhor – o enfermeiro disse apontando para um dos policiais e, antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa, fechou as portas da ambulância e entrou na parte do motorista.

– Com licença, eu... – gaguejei um pouco mais baixo que o de costume, nervosa tanto por ter que falar com a polícia quanto por, até agora, não ter visto meu irmão sair de dentro da casa. – Eu estou procurando o meu irmão...

– Desculpe mocinha, estou meio ocupado agora, será que...

– Não, ele... Ele estava dentro da casa, junto com a moça que perdeu o bebê, ela estava cuidando dele hoje – eu disse e quase quis chorar ou gritar quando o homem continuou a me ignorar, anotando coisas em um caderninho. – Pelo amor de Deus, ele tem onze anos, é magro, tem quase o meu tamanho, cabelos escuros, olhos verdes, estava usando um casaco listrado e calças jeans.

– Não tinha criança nenhuma lá dentro – ele disse pausadamente e realmente paciente, como se eu fosse alguma criança chata tentando chamar atenção, e revirou os olhos, coisa que só me deixou ainda mais desesperada e furiosa. – Olha, se quiser podemos dar como desparecido, comunicar os outros postos sobre o ocorrido e...

Não! – Gritei com medo de tudo virasse um escândalo ainda maior e mais preocupante, o que só fez com que o policial se voltasse para mim com um olhar desconfiado. – Quero dizer, acho que sei onde ele pode estar, se eu não o encontrar avisarei. Obrigada.

Eu estava sorrindo e tentando ao máximo parecer calma, mas minhas mãos tremiam e suavam apesar do frio e, assim que dei as costas, para a viatura, senti as lágrimas quentes começarem a descer pelo meu rosto, junto com as gotas pesadas da chuva que continuava a cair.

◈◇◈

Bati a porta de casa com todas as forças que me restavam e respirei fundo, rezando para que ouvisse a voz irritada e cansada de meu irmão me responder.

– Eliel! Pelo amor de Deus, onde você se enfiou? – Gritei sentindo uma pontinha de esperança se acender em mim mas se apagar logo em seguida devido a falta de resposta. – Eliel! – Chamei novamente, mais alto desta vez, enquanto subia as escadas.

A casa estava realmente escura e silenciosa de uma forma que me deixava ainda mais tensa, e eu não sabia o que me deixava mais assustada: descobrir que estava totalmente vazia ou que havia um corpo de uma criança em algum dos cômodos.

– Olha, me desculpa se eu vivo brigando com você e gritando, mas não precisa me assustar desse jeito – gritei para o vento com a voz trêmula e cada vez mais embargada. – Por favor!

As paredes foram iluminadas por um raio que caiu do lado de fora e logo em seguida veio o trovão, junto ao choro que eu não conseguia mais segurar. Me sentei no meio da escacada, já sem me preocupar tanto com o escuro, e desabei feito uma criança.

A minha vontade era de quebrar tudo e gritar e espernear até que Eliel aparecesse na minha frente pedindo desculpas, dizendo que só havia saído para brincar, mas eu me sentia fraca demais para qualquer uma das primeiras opções e, embora pelo menos meia-hora tivesse passado enquanto apenas fiquei ali sentada, chorando e amaldiçoando da pior maneira possível aquela casa e toda aquela merda de tragédia acumulada, a segunda coisa que eu esperava também não aconteceu.

Também pude ouvir a chuva diminuir até se transformar num fraco chuvisco e, ainda assim, nesse meio tempo, a única coisa que aconteceu dentro daquela casa foi eu tomar coragem para pegar o celular e discar o número de Henri.

– Henri eu... Me desculpe por ontem – eu disse assim que ele atendeu, sem dar tempo para um "alô" ou qualquer saudação alegre que ele fosse me dar. – E-eu... olha eu preciso de ajuda.

– Lis? O que foi? Você tá chorando? – Ele perguntou parecendo realmente preocupado e, mais uma vez, a cachoeira de lágrimas voltou a me perturbar.

– Você... pode vir aqui? Por favor?

– Claro, só... Não importa, daqui a pouco eu chego aí.

Ele encerrou a ligação e enterrei o rosto por entre os braços, falhando miseravelmente em tentar não parecer um bebê chorão. Minha barriga doía de tanto que eu soluçava, mas eu simplesmente não conseguia me acalmar, imaginando que tipos de coisas horríveis poderiam ter acontecido com o meu irmão.

E eu sabia que somente alguns minutos haviam se passado, mas eu senti que havia ficado horas encostada sobre a parede, chorando e odiando aquela casa e tudo o que havia nela até que Henri chegasse e, sem ao menos me chamar, entrasse em casa e se sentasse ao meu lado na escada, seu cabelo escuro pingando gotas de chuva no degrau abaixo de onde estávamos.

Eu já estava mais calma apesar dos olhos inchados e ainda úmidos e de estar fungando a cada cinco segundos quando veio a maldita pergunta:

– O que aconteceu? Cadê o seu irmão?

Estava prestes a cair no choro mais uma vez, mas apenas respirei fundo e sequei os olhos com as pontas dos dedos.

– É sobre isso o que eu queria falar, só que... – soltei uma risada nervosa misturada à mais uma dose de choro antes de continuar. – Eu sei lá, parece que a situação toda vai piorar só de eu tocar no assunto.

Eu estava me afogando em lágrimas de novo quando Henri suspirou e puxou minha cabeça, encostando meu rosto em seu peito enquanto tentava me acalmar com um abraço desajeitado.

– Meu Deus, Lis, você tá encharcada. Onde você estava? E há quanto tempo está parada aqui? Suas mãos estão congelando.

– Eu saí para tentar descobrir mais alguma coisa e acabei pegando chuva na volta – respondi me afastando para respirar, tentando ao máximo recuperar o controle sobre a minha voz chorosa e o desespero dentro de mim que parecia não querer ir embora de jeito algum. – E quando eu cheguei... O meu irmão desapareceu, Henri. Eu tinha deixado ele na casa da vizinha para que ele não ficasse sozinho em casa...

– Ah, que merda, Lis – ele disse não como se estivesse me acusando, mas como se sentisse mal por mim, coisa que já me deixou um pouquinho mais aliviada. – Já o procurou na casa inteira?

– Não, mas... Eu não o procurei em cada canto da casa mas chamei por ele, e muito, se fosse só uma brincadeira e ele estivesse escondido ele já teria aparecido depois de tanto tempo, eu conheço o irmão que tenho – eu disse em meu estado mais estável desde que havia saído da biblioteca mas, antes que percebesse, já estava chorando novamente. – Eu estou com tanto medo, quem sabe o que pode ter acontecido com ele?

– Olha, eu entendo que você esteja preocupada, na sua situação eu nem sei como eu faria para lidar com tudo isso, mas eu tenho certeza de que nada grave aconteceu com ele, nós vamos encontrá-lo, ok? – Henri disse levantando meu rosto para que eu olhasse em seus olhos, e eu estava tão desesperada que só consegui confiar nele e consentir em silêncio. – Agora você precisa de um banho quente e roupas secas ou vai acabar ficando doente.

– Não! – Eu gritei quase que sem querer e me levantei, apontando para a porta. – Eu tenho que ir atrás do Eliel, se eu estou nesse estado você consegue imaginar como ele deve estar? Jesus... Só Deus sabe há quanto tempo ele pode estar lá fora, debaixo dessa tempestade e eu só...

Henri se levantou para tentar me acalmar com um abraço mais uma vez mas o afastei, nervosa demais para sequer pensar em me acalmar desta vez.

– Eu não aguento mais essa merda toda! Eu tento ajudar, tento resolver tudo mas as coisas só pioram! E agora meu irmão está desaparecido e eu só sei ficar aqui sentada, chorando, ao invés de ir lá e procurar por ele! – Soltei feito uma metralhadora de palavras e chutei a parede com toda a força que consegui. – Eu odeio essa casa filha da puta! Eu odeio aquelas bonecas, odeio a minha mãe por ter trazido a gente para cá... E eu odeio essa merda de Abelle! Você ouviu isso, sua fantasma de merda? Eu odeio você! Isso é tudo culpa sua!

– Lis...

– Cala a boca! Eu odeio você também por ficar sendo bonzinho comigo quando na verdade eu sou mais filha da puta do que essa casa e só consigo ficar brava com tudo, inclusive com você simplesmente porque eu te amo e você só quer ser meu melhor amigo e eu não consigo aceitar isso porque sou mais problemática do que qualquer outro louco que exista nesse mundo! – Gritei sem dar espaço para Henri dizer o que queria e, quando me dei conta, minhas mãos já estavam distribuindo socos pela parede. – Eu odeio a minha vida!

– Para com isso! – Henri gritou segurando meus braços e me apertando contra seu peito enquanto mais uma vez eu desabava em choro, soluçando alto feito uma criança mimada que não conseguiu o que queria. Eu era tão patética, tão burra, tão fraca... – Nada disso é culpa sua, por favor, não se machuque mais desse jeito, isso... Isso também me machuca, Lis.

– D-Desculpa... e-eu...

– Shh... Não precisa falar nada – ele disse fungando enquanto passava as mãos pelo meu cabelo.

Ele me acalmava tanto, mas ainda assim eu não conseguia me sentir bem, só conseguia pensar em todas as coisas ruins que ficavam acontecendo sem parar, a maioria delas sempre por minha causa.

– Eu tenho tanto medo, Henri. E-eu não quero mais ficar aqui, essa casa... Eu não sei mais quanto tempo eu vou aguentar.

– Vai aguentar o quanto tiver que aguentar, porque você é forte, Lis. Eu acredito em você, e sei que se tem alguém que pode resolver essa merda toda e dar um jeito nessa casa e naquelas bonecas filhas da puta, esse alguém é você – ele me deu um beijo na testa e me apertou ainda mais. Normalmente eu teria pulado de alegria ou me sentido envergonhada, mas naquele momento só consegui sentir alívio e segurança por saber que não estava sozinha. – E eu já disse que você pode sempre contar comigo, e mesmo que não seja da forma que você gostaria, eu também te amo, você pode confiar em mim para te ajudar, eu não sou como os outros que apontam o dedo sem saber o que realmente está acontecendo. Sou seu melhor amigo idiota, lembra? Mesmo que o mundo acabasse, eu ainda estaria aqui para segurar sua mão.

– Se a intenção disso era me fazer parar de chorar você falhou miseravelmente – eu disse novamente numa mistura de choro e risada, desespero e felicidade. – Obrigada, você é a melhor pessoa que eu já conheci.

– Não sou não, agora vai tomar um banho, você já está ficando febril e tenho certeza de que precisa descansar – ele disse quase como se fosse uma ordem e hesitei. – Lis, é sério. Mesmo com essas roupas molhadas você está mais quente do que deveria, prometo que amanhã vamos sair pra procurar o seu irmão.

– Tudo bem, mais uma vez vou confiar em você.

– E não faz mais isso, tá bom? – Ele disse examinando os machucados nos nós de meus dedos e puxei a mão de volta, me sentindo mais culpada do que envergonhada. – Ficar se machucando não vai fazer tudo melhorar e você também não tem que descontar a raiva em si mesma, nada disso é culpa sua.

Assenti e subi para tomar um banho quente, mas antes pedi à Henri que me esperasse no corredor, ao lado da porta do banheiro, por medo que mais alguma coisa estranha acontecesse e eu estivesse sozinha lá.

Mas, de certa forma, eu sabia que nunca mais estaria sozinha quando algo ruim acontecesse. Henri estava comigo, e eu realmente acreditava que isso não iria mudar.

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