Cap. 21

Você não sabe como se livrar

Quem disse que isso deve ser tudo ou nada?
Mas eu ainda estou preso
E nunca deixarei que você saiba
Não, eu não posso te dizer nada

Porque eu sou uma bagunça do caralho às vezes
Mas eu ainda poderia sempre ser
Qualquer coisa que você quisesse
Mas não o que você precisava
Especialmente quando você estava precisando de mim
Porque eu sou uma bagunça do caralho por dentro

EDEN - drugs

  ◈◇◈  

Me deitei no banco de madeira da praça onde eu e Henri estávamos, usando como travesseiro as pernas de Henri e observando as poucas estrelas que brilhavam no céu, a maior parte delas estando cobertas por espessas nuvens cinzentas.

Já me sentia tonta e até um pouco desnorteada, minha boca inteira estava dormente e eu ria de qualquer coisa que Henri dizia, por mais aleatório que fosse, mas ainda assim eu sabia que não estava bêbada o suficiente, então peguei a garrafa de vinho batido com leite condensado da mão de Henri e tomei mais um gole.

– Não é engraçado? Eu estou cheia de problemas, minha família está a maior merda possível, e, ao invés de tentar fazer alguma coisa para melhorar eu só... Eu só consigo me irritar, chorar, e dar atenção para coisas que não deveria – eu disse fechando os olhos enquanto tentava não começar a chorar de novo por me sentir a pior merda do universo.

– Você faz o que pode, sei disso. Você é uma menina forte, Marie Ann – Henri respondeu quase como um resmungo e eu ri, ele definitivamente estava pior do que eu. – E para o quê você está dando mais atenção do que deveria?

– Problemas clichês de adolescentes retardados.

– Isso é normal, olhe só a nossa idade – ele disse e pude ouvir quando deixou uma risadinha escapar. – Olhe só a nossa idade e olhe as coisas com as quais temos que lidar, quem me dera fossem só os mesmos problemas clichês de adolescentes retardados com os quais geralmente nos preocupamos.

Ficamos em silêncio por alguns segundos, cada um refletindo sobre o próprio inferno pessoal, até ele continuar:

– Quem me dera eu tivesse que me preocupar somente com questões como escola, primeiro amor, qual será o próximo filme da Marvel a ser lançado... Mas não, eu tenho um irmão afundado em loucura e uma mãe afundada em depressão. E como eu lido com isso? Fugindo para uma cidade no meio do nada onde não conheço ninguém a não ser uma avó com a qual eu não tinha contato há anos.

– Henri eu... Eu sinto muito – eu disse baixinho e voltei a me sentar, apoiando a cabeça em seu ombro e, mesmo que hesitando um pouco, segurando sua mão e entrelaçando seus dedos frios com os meus. – Eu não sabia que você tinha fugido.

– É, eu geralmente evito contar essa parte para as pessoas – admitiu quase como se tivesse vergonha de si mesmo e eu senti meu coração se apertar um pouco. – Faz eu me sentir um babaca incapaz de lidar com as coisas.

Não queria que ele se sentisse daquele jeito. Todos cometíamos erros, ninguém era perfeito e completamente capaz de lidar com todos os problemas da vida de maneira sensata e inteligente. Eu sabia mais do ninguém que às vezes nossas mentes só imploravam por um escape, algo que fizesse tudo desaparecer por um momento, e não por uma solução, porque já estavam cansadas demais de procurar por respostas que pareciam que nunca viriam.

Era mais ou menos como eu me sentia no momento, e odiava isso mais do que qualquer coisa, sabendo que eu nunca desejaria tal sentimento e situação nem para a pior pessoa do mundo.

– Quero que saiba que não é só você que pode me ajudar e fazer as coisas por mim, eu também sou sua melhor amiga e sempre vou fazer o possível para te ajudar – disse depois de um tempo, me afastando para poder focar em seus olhos verdes cheios de lágrimas. – Você pode se fazer de forte o quanto quiser, mas é um ser humano como qualquer outro, e esta é uma situação realmente difícil, então quero que tenha sempre certeza de que eu sempre vou estar aqui para você, para te ajudar ou até mesmo só para te distrair com uma conversa nada a ver sobre o porquê de o milho-verde ser amarelo.

Ele assentiu e afundou o rosto por entre as mãos, fazendo com que eu me esquecesse na mesma hora sobre qualquer timidez ou vergonha que sentia e me levantasse, apoiando sua cabeça em meu peito e o abraçando o mais forte que conseguia. Enterrei meu rosto em seus cabelos e deixei que ele chorasse, que colocasse para fora tudo o que ficava guardando para si mesmo por sabe-se lá quanto tempo.

– Henri, eu... Eu gosto de você – eu soltei de uma vez e engoli em seco, sentindo meu corpo inteiro travar.

Minha garganta pareceu fechar e eu tremia por inteiro, suando por baixo das roupas mesmo em um frio de quase cinco graus.

Ah, merda, merda, merda. Nota para mim mesma: Esqueça de vez o vinho, foco no achocolatado e suco de laranja.

– Bom, eu também gosto de você – Henri respondeu e não sei direito o que senti, só sei que por um momento o chão pareceu feito de manteiga derretida de tão mole e instável que parecia, meu rosto queimava e eu só faltei desmaiar quando ele me deu um beijo na testa e me abraçou ainda mais forte que antes. – Você é uma das melhores pessoas que eu já conheci, é a melhor amiga que alguém poderia ter.

– Ah, amiga, claro – eu disse sem conseguir controlar minha voz falha e embargada por um choro que ameaçava chegar a qualquer momento, toda a felicidade e surpresa que eu havia sentido anteriormente já haviam desaparecido como se nunca tivessem existido.

– Lis, você...? Eu... me desculpe, eu não esperava...

– Não, tudo bem, você não tem que se desculpar e, de verdade? Eu já fico feliz só por poder ser sua amiga – sorri da maneira mais fraca e torta possível e cerrei os olhos com força, obrigando as lágrimas que queriam fugir a permanecerem lá. – E você mesmo disse, você só tem catorze anos e tá com a vida mais bagunçada que o meu sótão.

– Obrigado por entender, e mesmo que eu não goste de você dessa forma, nunca se esqueça que eu sou mais do que feliz por conhecer você. Por favor, não deixe algo assim estragar...

– Você vai ser sempre o meu melhor amigo idiota e crianção que me faz rir mesmo nas horas mais estranhas e aleatórias para fazer piadas? – Interrompi rindo e chorando ao mesmo tempo e estendi meu dedo mindinho para Henri, que pareceu confuso por um momento mas não hesitou em entrelaçá-lo com o seu.

– Se você for sempre a minha melhor amiga estranha e obcecada por terror mas mais medrosa que uma criança de seis anos que chora e se irrita por tudo, então sim, eu vou ser sempre o seu melhor amigo idiota e crianção – ele respondeu com o sorriso mais lindo que já havia dado desde que tínhamos nos conhecido e, feliz e triste demais para fazer qualquer outra coisa, o abracei mais uma vez e fechei os olhos, querendo muito que aquilo acabasse mas, ao mesmo tempo, que durasse para sempre.

◈◇◈

Quando chegamos a casa estava silenciosa e parecia parada, assim como Henri que, se limitando em me lançar apenas olhares perdidos e sorrisos sem graça, me guiou até o quarto onde eu dormiria com Eliel – que por sinal já estava deitado, enrolado em uma porção de cobertas enquanto se distraía com algo em meu celular que eu havia lhe emprestado antes de sair.

Havia um colchão no chão também, arrumado com edredons e travesseiros que provavelmente eram para mim, mas o ignorei e me deitei na cama ao lado de meu irmão, que estranhou e se voltou para mim com as sobrancelhas franzidas.

– O que aconteceu? – Perguntou com mais hesitação do que preocupação, afinal, me conhecia muito bem e sabia que aquela não era a melhor pergunta para quando eu estava segurando o choro com uma bela cara de cú.

Ainda assim, mordi com força o lábio inferior e respirei fundo para respondê-lo, me preparando para mais uma sessão de terapia noturna com o Doutor Eliel. Sim, eu estava muito ciente de que nestas situações eu acabava me transformando na irmã mais nova.

– O que não aconteceu seria uma pergunta mais apropriada – corrigi e ele se sentou, primeiro parecendo confuso mas logo fazendo uma careta e revirando os olhos.

– Você não fez o que eu tô pensando que você fez... – disse sussurrando e me limitei a abaixar o olhar e encolher os ombros. – Por isso que eu te chamo de idiota. É sempre a mesma história toda vez. E... você tá cheirando a bebida, provavelmente o motivo de ter saído jogando tudo na cara do pobre coitado.

– Ah obrigada, tá ajudando muito falar comigo desse jeito. E eu não estou bêbada, seu animal – resmunguei e lhe dei as costas. – Ele é legal, é diferente, e achei que talvez...

– Talvez pudesse gostar de você também? Jesus, pare de ser louca! As pessoas não são problemáticas como você que começa a gostar de alguém um dia depois de terem se conhecido.

– Não sou problemática, só tenho coração grande – tentei me defender mesmo sabendo que Eliel estava certo. Eu tinha sérios problemas em relação a me apaixonar rápido demais. – Sou pisciana, não tenho culpa.

– Ah vai com esses signos pra lá, esquece essa brisa de astrologia – ele disse e lhe mostrei um trêmulo dedo médio. – E esquece essa brisa de gostar de pessoas também.

Bom, eu tentaria. Mesmo porque agora eu já sabia que não daria em nada, então por quê insistir? Logo pela manhã eu agradeceria à Henri e Dona Emy por tudo e iria para casa, iria esquecer tudo aquilo por um tempo, inclusive Henri, e voltaria a me focar no que realmente importava: O Caso de Abelle.

– Eliel – chamei sentindo que logo desabaria em lágrimas de novo. – Me abraça?

Ele não respondeu mas sorri automaticamente quando senti seus braços mais magros que de uma pessoa normal se apertarem em volta de mim.

– Obrigada.

– O que mais eu posso fazer? Você é otária mas ainda é minha irmã.

◈◇◈

No dia seguinte, por volta das dez da manhã, me levantei depois de muitos protestos do meu corpo de ressaca e da minha cabeça dolorida que parecia ter levado umas boas pancadas. Meu estômago inteiro se revirava e eu me sentia mais do que fraca, mas ainda assim juntei minhas coisas, convenci à Dona Emy de que eu comeria quando chegasse em casa e à Henri de que eu não precisava ser acompanhada, que conseguiria me cuidar sozinha.

Eliel parecia descrente sobre ambas as afirmações, me olhando de cara feia toda vez que eu insistia para os dois de que ficaria bem. Eu não o culpava, já estava mais do que claro que sozinha eu só fazia merda.

Mas eu evitaria fazer tudo errado – de novo – a qualquer custo, nunca havia me sentido tão determinada a fazer algo direito durante minha vida inteira. E ao sair da casa de Dona Emy e ver que boa parte das nuvens que cobriam o céu haviam sumido e feixes da luz do sol iluminavam o asfalto úmido, só me deu ainda mais segurança de que naquele dia tudo daria certo.

Estava no meio do caminho para casa quando meu celular começou a tocar no bolso da calça. Porcaria, quem quer que estivesse me ligando já deveria saber que eu odiava falar no telefone.

– Atende para mim – pedi entregando o aparelho para Eliel que revirou os olhos mas ainda assim fez o que pedi.

– Oi mãe – ele disse e eu senti meus ossos congelarem ao imaginar que ela já tinha chegado em casa e estava separando objetos perfuro-cortantes para atirar em mim e em meu irmão pelo estado em que se encontrava a casa. – Não, ela tá aqui sim. Sim, estamos bem, ela ainda não tentou me matar nenhuma vez desde que a senhora saiu.

– Me dá isso aqui seu imbecil – resmunguei fazendo cara feia e arrancando o celular de sua mão. – Oi dona mamãe.

– Dona mamãe? Lis, o que você andou aprontando? – Ela perguntou desconfiada e eu suspirei.

– Jesus, nada, eu só estava brincando. Já está vindo para casa?

O silêncio do outro lado da linha durou mais do que eu gostaria e fez com que eu ficasse cada vez mais tensa até ouvir um suspiro e a resposta de mamãe.

– Desculpe Lis, eu... Eu estou resolvendo umas coisas e...

– Ah meu Deus, que coisas? – Perguntei já imaginando que o pai de Eliel havia ido atrás dela, implorando para que voltassem, e minha mãe, do jeito que era, estava pensando seriamente sobre o assunto.

– Não te diz respeito, a filha aqui é você – ela respondeu, o que só confirmou minhas suspeitas.

– Então tá senhorita grosseria, só não demore mais, ok? Não aguento mais ter que bancar a mãe e dona de casa – reclamei e ela riu.

– Entende agora o motivo pelo qual eu te peço para não casar e evitar filhos – respondeu e respirou fundo mais uma vez, provavelmente cansada, antes de se despedir. – Aguentem mais um pouco, prometo que vou tentar voltar o mais rápido possível. Amo vocês.

– Tudo bem. A gente também te ama – respondi e a ligação foi encerrada, deixando apenas um silêncio estranho na linha. – É... Parece que vamos ter mais longos dias sozinhos com espíritos em casa. E... Eu vou sair hoje.

– E daí? – Eliel perguntou sem ao menos levantar o olhar.

Eu sabia que a ausência de mamãe não afetava só a mim apesar de meu irmão sempre fingir que não se importava, e ele ainda precisava lidar com as merdas causadas por uma irmã mais velha doida.

– Eu não vou te levar, não quero mais te colocar no meio dessa loucura toda – respondi e, quando meu irmão levantou o rosto, pude ver a verdadeira raiva e chateação em seus olhos. – Desculpe, sei que não gosta de ser tratado como criança e aquela coisa toda mas... Olha, isso tá ficando realmente mais sério do que eu gostaria, e eu me preocupo com você, muito.

– Eu também me preocupo com você, trouxa. E você às vezes parece que tem oito anos, a gente não pode dar as costas que de repente ou você causou algum desastre ou tá morrendo – retrucou verdadeiramente impaciente e acabei soltando um grunhido estranho, indignada,

– Ei! Isso não é tão verdade assim – eu disse mesmo sabendo que, assim como em tantas outras vezes, Eliel estava certo. – E eu não vou morrer, não agora. Eu prometo. Ok? Vou arrumar essa bagunça de uma vez e então tudo finalmente vai dar certo.

– Mas e a casa Lis? O que a gente vai fazer quando a mamãe voltar?

Eu apenas suspirei e tentei manter a calma ao invés de responder, porque por enquanto não sabia o que responder sobre aquilo, só conseguia pensar que eu e Eliel estaríamos realmente ferrados quando minha mãe chegasse e se deparasse com a casa naquele estado.

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