Cap. 20
Eu poderia te pôr para cima
Eu poderia te mostrar o que você quisesse ver e te levar onde você quisesse estar
Você poderia ser a minha sorte
E mesmo que o céu estivesse caindo,
Eu sei que nós estaríamos sãos e salvos
Capital Cities – Safe and Sound
◈◇◈
Eu agora estava sentada na cozinha de Dona Emy, perdida nos meus próprios pensamentos enquanto encarava a fatia de pão caseiro no meu prato e a senhorinha tagarelava sem parar sobre acontecimentos e momentos de sua juventude. Eu não queria parecer rude, então, mesmo que não estivesse lhe dando toda a atenção do mundo, concordava e dava uma risada sempre que possível.
Quem parecia realmente entretido com tudo era meu irmão, que a respondia com a maior empolgação do mundo, falando sobre como devia ter sido legal viver nos anos setenta. Talvez eu realmente não devesse ficar tão preocupada e hesitante sobre deixá-lo passar a noite com ela.
Claro que não havia perigo, eu sabia disso. Quero dizer, pelo menos não pela parte de Dona Emy, eu só não confiava em Eliel. Não duvidava que quando eu voltasse a avó de Henri viesse se queixar sobre algum objeto quebrado ou sobre como meu irmão havia sumido do nada para brincar sem ao menos se incomodar em avisar para onde estava indo e o que estava indo fazer.
Eu já havia perdido as contas de quantas vezes aquele menino me fizera quase morrer do coração, gritando seu nome na rua desesperada sem ao menos ter ideia de onde ele estava e já imaginando que, quando minha mãe chegasse em casa, a próxima a desaparecer seria eu. E no final eu sempre o encontrava na casa de algum colega seu que morava perto, jogando vídeo-game tranquilamente como se não tivesse uma irmã mais velha que se preocuparia e, literalmente perderia a cabeça caso não o encontrasse a tempo.
Tomei um susto desnecessário quando Henri voltou para a cozinha e colocou a mão sobre meu ombro, me chamando para sairmos. Eu não ficava feliz com isso, mas se assustar demais era um preço a ser pago quando se queria viver com um pé no mundo real e outro no imaginário.
– Mas já vão? Mary Ann não comeu nada, por isso está tão magrinha – Dona Emy disse e não pude evitar um sorriso. – Você pelo menos almoçou hoje, querida?
– Claro, não é como se tivesse algum problema e passasse o dia inteiro sem comer – menti e ela abriu um sorriso satisfeito, talvez feliz por descobrir que eu não era um saco de ossos por sofrer de anorexia ou algo do tipo. Meio errado, infelizmente.
– Vou fazer um pudim, assim quando vocês voltarem poderão compensar os doces que estão deixando de comer nesses dias todos – ela disse realmente animada e Henri riu, revirando os olhos.
– Vovó, a senhora sabe que não precisa disso tudo, né?
– O quê?! – Eliel quase gritou, indignado. – Pare de reclamar, deixa ela fazer doces, pelo menos ela não tá fazendo xarope e chás medicinais como a minha.
É, aquilo não deixava de ser verdade. Tudo o que Valentina sabia cozinhar era sempre algo relacionado à saúde, eu nunca iria esquecer dela me obrigando a tomar chá de boldo em uma vez que fiquei doente enquanto passava o fim de semana com ela. Ela dizia que remédios industriais só piorariam minha dor de barriga, que eu tinha que deixar entrar as energias da natureza.
– O que foi? – Henri perguntou com um sorriso estranho e duvidoso e franzi as sobrancelhas. Qual era a loucura da vez? Eu estava chamando por Abelle sem perceber de novo?
– O que foi o que? – Perguntei e ele riu.
– Não, é só que você fez uma cara estranha do nada.
Ah, aquilo.
– Não é nada, só estava lembrando de coisas não muito agradáveis – respondi e Eliel pareceu ler meus pensamentos, pois começou a rir feito um idiota.
– Chá de boldo da vovó Tina! – Ele disse e eu concordei, colocando a língua para fora num sinal de desgosto.
– Chá de boldo da vovó Tina – repeti e Henri me puxou pelo braço, arrastando-me para fora enquanto Eliel ainda ria, tentando explicar para Dona Emy, sem fôlego algum, a história do tal chá de boldo.
– Voltem antes da meia-noite e sem brincar de médico, querido! – Dona Emy gritou quando chegamos na porta da sala e Henri meneou a cabeça, abrindo um sorriso sem graça.
– Jesus...
– Não precisa se envergonhar, sua avó é legal – eu disse encolhendo os ombros enquanto o acompanhava até o portão. – Pelo menos ela não tem uns papos estranhos sobre conspirações do governo e como nunca deveríamos ter abandonado a natureza. Ah, e ela faz doces!
Estava tão distraída falando que, novamente, quase pulei de susto quando senti patas e unhas enormes nas minhas costas, que me empurraram para frente e quase me fizeram cair de cara no muro. Bom, ninguém mandou nascer com o tamanho de um cachorro.
Ah claro, isso tinha sido escolha minha, sim.
– Ei, você ainda não se tocou que você assusta ela? Bobão – Henri disse tirando Biscoito de cima de mim e eu sorri, fazendo carinho em sua cabeça enquanto ele tentava, sem sucesso, lamber meus dedos.
– Não, tá tudo bem. Já vi que ele não é do tipo que fica louco e sai mordendo as pessoas de uma hora para outra – respondi e puxei minha mão de volta com uma careta quando senti a língua de Biscoito passar por ela inteira. – Ew...
Enquanto Henri o colocava para dentro e fechava o portão, cheguei sorrateiramente por trás e limpei minha mão babada em seu casaco, fazendo-o se virar para mim com certa indignação e descrença.
– O que foi? O cachorro é seu.
– Ah, você não devia ter feito isso. Não é com qualquer um que você pode ser folgada assim, sabia?
– O quê...? – Murmurei confusa e de repente tudo girou e o mundo ficou de cabeça-para-baixo. – Ah meu Deus, ah meu Deus! Me coloca no chão, por favor! – Implorei fechando os olhos com força enquanto aquele idiota corria com nada mais, nada menos, que eu mesma pendurada em seu ombro. – Henri eu vou vomitar em cima de você...
– Você sabe que tá chamando a atenção gritando assim feito louca, não sabe?
– Cacete, estamos chamando a atenção de qualquer jeito, parece que você tá me sequestrando! – Gritei com mais irritação do que pretendia mas Henri não pareceu notar. Eu já estava sentindo minha cabeça formigar e eu não poderia estar mais tonta. – Henri, por favor!
Parei de gritar e, mesmo sem querer, comecei a chorar feito uma idiota. Não estava triste ou chateada, apenas com raiva e decepcionada por ser tão fraca a ponto de não poder fazer nada quando um ser aleatório resolvia sair me carregando de ponta cabeça por aí como se eu fosse só... Um saco cheio de ar. Eu poderia dizer boneca, mas aquela passara a ser uma palavra proibida em meu vocabulário, mesmo em momentos frustrantes como aquele.
– Ei, nossa, desculpa eu... – ouvi Henri dizer e senti meus pés trêmulos tocarem o chão enquanto, de forma quase que automática e desligada, eu o agredia sem conseguir parar de chorar.
– Seu idiota! Você sabe que essas coisas me assustam! Eu estava quase perdendo o ar! – Eu berrava com mais fúria do que pensava poder caber dentro de mim.
Me afastei e prendi os dedos nos cabelos, dando um chute em um poste na calçada ao lado e me arrependendo no mesmo instante em que meus dedos doeram. Eu não estava somente com raiva de Henri, mas de mim mesma por ser absurdamente imbecil a ponto de ser do jeito que era.
– Lis...
– Ah vai se foder! – Gritei e não acreditei quando vi um sorriso maravilhoso surgir em seu rosto. Que merda era aquela? Ele não deveria estar sorrindo feito uma criança fofa e boba, e sim se irritando de volta ou se chateando comigo por aquela explosão repentina e sem sentido. – O que foi agora? Tá me achando com cara de palhaça, é?
– Tô te achando uma fofa porque nem tamanho para estar fazendo uma cena dessas você tem.
Depois de ouvir aquilo não me aguentei e acabei por rir, mas era de nervoso, juro. Porque, de verdade? Eu queria bater ainda mais naquele engraçadinho e depois ainda voltar para casa chorando. Mas, de alguma forma, eu não conseguia, ele era bonitinho demais para que eu dirigisse qualquer outro ato de violência contra aquele rostinho maravilhoso que no momento era meu mais novo motivo de ódio.
– Ok, desculpa, sério, não era a minha intenção te deixar tão irritada – seu sorriso desapareceu e semicerrei os olhos, esperando algo mais convincente. – Eu só queria te divertir.
Tentei reprimir outra risada, sem qualquer sucesso. Pelo menos desta vez não era de nervoso ou irritação, era somente mais um dos vários efeitos que Henri causava em mim.
Senti minhas bochechas esquentarem e me xinguei mentalmente, dando as costas para Henri e começando a andar, mesmo que não soubesse exatamente o lugar para o qual deveria ir, afinal, eu ainda não conhecia quase nada da cidade e para ajudar Henri ao menos comentara sobre onde nós iríamos. Bom, isso é brecha para um assunto, converse com ele sua idiota.
Certo.
– E então sequestrador... Para onde vamos e o que vamos fazer? – Perguntei e o vi dar uma corridinha para me alcançar, parando ao meu lado.
– Eu estava pensando em te levar ao cinema para comprar pão – ele disse como se realmente fosse algo sério e eu me recusei a dar risada uma piada tão ruim como aquela. – Tem algum filme que queira assistir?
– Olha... – pensei por um momento. Haviam filmes ótimos em cartaz, muitos de terror que eu estava doida para ver, mas realmente estava, no passado, porque no momento, até mesmo pensamentos sobre filmes de terror estavam fora de cogitação para mim. – Talvez algum de comédia que não se resuma a adolescentes rebeldes e idiotas ou casais clichês de pessoas que se odeiam mas no final descobrem que era só amor reprimido.
– Basicamente, você não quer assistir a algum mais novo clássico da Sessão da Tarde.
– Exato. Romances água com açúcar também não são opção, eu iria chorar o filme inteiro e isso seria humilhante – respondi pensativa, me lembrando de todas as vezes em que minha mãe e Izzy riram da minha cara por crises de choro excessivo no cinema depois de algum filme bem dramático e cheio de casos de amor verdadeiro
– Tá apaixonada, é? – Ele se voltou para mim com uma cara engraçadinha, como se estivesse se preparando para me zoar caso minha resposta fosse "sim", como aquelas tias que perguntam dos namoradinhos no final do ano.
– Eu não, Deus me livre. Quero dizer, claro que depende, existem pessoas pelas quais pode valer a pena, mas no momento eu só... Eu não consigo fazer outra coisa que não seja me preocupar com essa coisa toda – menti da forma mais descarada possível e senti meu coração falhar por um momento só de pensar na possibilidade de jogar em cima de Henri tudo o que eu sentia de uma só vez. – E também eu não conversava com muitas pessoas na minha outra cidade, só tinha uma amiga. E aqui eu só conheço você e sua avó, então...
– Entendo. Acho que eu nunca gostei de ninguém, pelo menos não de verdade. Tipo, essa coisa toda de se apaixonar é complexa demais e eu só tenho catorze anos, minha atenção é toda direcionada à música, filmes e alguns quadrinhos.
Catorze anos? Ok, eu realmente não esperava que fosse ser uma pedófila um dia.
Pelo amor do Deus do Sorvete de Passas ao Rum, é só um ano de diferença. Por que você é sempre tão dramática? Fala como se fosse ser presa sendo que você mesma só tem quinze e ao menos o abraçou direito.
Ah legal, agora até meu próprio subconsciente me colocava para baixo. Eu já sabia que aquilo não daria em nada, não precisava de mim me lembrando disso ainda mais.
– Ah, merda – Henri murmurou enquanto olhava a hora em seu celular. – Acho melhor a gente se apressar, já são seis e meia e as sessões depois das sete são só as da nove, terminam muito tarde.
Ele começou a andar mais rápido e apertei o passo para acompanhá-lo enquanto colocava em minha cabeça que eu podia sim assistir um filme com ele da maneira mais normal possível, que eu não ia morrer por engolir meus sentimentos e aceitar que seríamos só amigos.
Ou será que ia?
No final, acabamos decidindo que assistiríamos a sequência de "Hotel Transilvânia", o que não era problema para nenhum dos dois já que ambos éramos dois bobões loucos por animações. Henri havia comprado pipoca, chocolates, jujubas e um saco enorme de marshmallows, coisas que realmente nos mantiveram ocupados durante a sessão
Não havia muita gente na sala, minha garganta já estava coçando de tanto açúcar que eu havia ingerido de uma vez só, e o filme parecia estar finalmente chegando ao fim – não que eu não estivesse gostando, estava apenas cansada e inquieta, já não aguentando mais ficar sentada por tanto tempo.
Olhei para o lado onde Henri ria feito uma criança, realmente entretido. Não pude evitar de sorrir, já esquecendo qualquer irritação que ele havia me causado, e senti meu rosto queimar quando ele, mesmo que de uma forma discreta, voltou os olhos verdes para mim. Na mesma hora, me encolhi na cadeira e voltei a prestar atenção na tela enorme à minha frente.
Eu sentia meu coração pular e não devem ter sido nem quinze minutos até que o filme acabasse e os créditos começassem a subir na tela preta mas ainda assim senti como se tivesse se passado uma eternidade. Permaneci sentada até me assustar com um ser de quase dois metros parando à minha frente e me chamando.
– Vamos? Ou quer ficar para a próxima sessão? – Perguntou rindo de mim e fiz uma careta, juntando as embalagens de doces jogadas por ali e me levantando para segui-lo para fora daquela sala escura. – Você... Tá tudo bem?
– Hum? – Murmurei distraída e abaixei os olhos, me sentindo cada vez menor. Ah, saco. – Sim, estou bem. Por quê?
– Nada, deixa. Vamos indo, a noite mal começou – ele disse com uma animação tão grande que foi impossível eu não me contagiar, mas algo em sua expressão me dizia que ele estava querendo aprontar alguma.
– Tudo bem então, mas... O que você pretende fazer agora? – Indaguei com certa desconfiança e ele se aproximou para responder num sussurro.
– Ouvi dizer que adolescentes desocupados gostam de beber às sextas-feiras.
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