Cap. 19


Voltando ao zero, aqui vamos nós de novo
Correndo para o esquecimento
Voltando ao zero, aqui vamos nós de novo
Eu posso sentir o fim se aproximando
O fim

Marina and the Diamonds – Valley of the Dolls

◈◇◈

Eu ainda estava parada no corredor, encarando a pequena portinha quadrada no teto com os lábios cerrados e os dedos fortemente agarrados à duas pequenas chaves. Eu quase havia me esquecido da segunda chave que encontrara, e tinha certeza de que ela abriria alguma coisa escondida naquele sótão.

– Quer mesmo voltar lá? – Henri perguntou em um tom quase cuidadoso e eu assenti, mesmo que hesitante sobre o que estava prestes a fazer.

Com toda a certeza do mundo, eu estava com medo, mas Abelle havia pedido minha ajuda, e eu havia prometido ajudá-la, não podia simplesmente desistir como sempre fazia.

– Eu ajudo – ouvi alguém dizer atrás de mim e me virei, vendo Eliel com o olhar meio baixo. – Eu... Desculpa, Lis.

– Tudo bem – respondi sorrindo automaticamente ao ouvir aquilo. – Desculpa por ter gritado com você também.

– Já acostumei, você tá sempre gritando com todo mundo – ele disse indiferente, dando de ombros e me fazendo revirar os olhos.

Entreguei a chave do sótão à Henri, que, depois de me perguntar mais uma vez se eu tinha certeza sobre aquilo, a encaixou na fechadura e a girou, destrancando a porta com um clique.

Eu e Eliel nos afastamos quando ele puxou a maçaneta e a escadinha de madeira desceu à nossa frente, agora já sem a enorme nuvem de poeira que havia descido junto nas primeiras vezes. Ainda assim, o cheiro de mofo e coisas velhas permanecia ali, e soltei uns três espirros seguidos ao me aproximar mais da entrada.

Henri foi na frente, segurando seu celular que, com o flash aceso, iluminava boa parte do caminho. Eliel foi logo atrás e a medrosa aqui teve que ir por último, óbvio, sempre olhando para atrás com a paranoia de que encontraria algo subindo bem atrás de mim com uma careta bizarra de quem vai me comer viva.

Me obriguei a olhar para a frente quando bati o rosto na bunda de meu irmão, que se virou para mim com uma cara assassina e de quem se pergunta o que diabos acabou de acontecer. Lhe estendi o dedo do meio e apenas continuei subindo os degraus, tentando deixar de lado a experiência traumática que acabara de vivenciar.

Assim que os dois terminaram de subir, me impulsionei para cima e sentei no chão empoeirado, tomando um tempo para regular minha respiração ofegante.

Henri foi até a pequena janelinha no final do cômodo e arrancou um pedaço de papelão que a cobria, deixando muito mais luz entrar no ambiente e apagando a lanterna de seu celular.

Somente naquele momento pude realmente analisar o sótão e cada detalhe do que havia ali, totalmente diferente do que eu vira na lembrança de Abelle.

O papel de parede era meio esverdeado e com umas listras bregas, e não rosa e florido, e aquilo estava realmente uma bagunça, cheio de sujeira, tralhas e coisas que outros moradores deviam ter esquecido.

Henri e Eliel analisavam as bonecas espalhadas com uma careta, vez ou outra até esmagando pequenas aranhas que fugiam de seus esconderijos pelo reboliço que aqueles dois estavam causando.

Eu tinha medo de aranhas, mas naquele momento só senti pena. As coitadas estavam sendo perturbadas e assustadas com aquela bagunça e, se ainda tentavam fugir, eram assassinadas por dois gigantes sem noção.

Que merda Lis, esqueça as aranhas, foco nas bonecas.

Certo, concordei sem energia para começar outra discussão comigo mesma e me levantei, me apressando em me juntar aos dois e pegando uma boneca de porcelana absurdamente pesada nas mãos. Havia uma rachadura em seu rosto e seu vestido, completamente encardido, estava cheio de rasgos e buracos aparentemente feitos por traças famintas.

Franzi as sobrancelhas, revirando-a inúmeras vezes em minhas mãos, logo a devolvendo ao chão para repetir todo o processo com mais outras duas.

Sem dúvidas eram bonecas incrivelmente realistas e assustadoras, com cara de quem guarda um espírito demoníaco dentro de si, mas algo não estava certo.

– Tem alguma coisa errada – eu disse baixinho ainda sem acreditar realmente no que estava acontecendo. – Não são essas.

– Não são essas o quê? – Henri perguntou e eu ignorei, jogando longe a boneca que ainda segurava e enterrando o rosto por entre as mãos sujas.

– Mas que merda! – Murmurei respirando fundo para finalmente me levantar com as mãos apoiadas nos quadris, meneando a cabeça.

Minha cara de decepção e confusão deveria ser a melhor coisa do mundo, porque eu realmente não sabia explicar o que era aquilo.

– Não são as bonecas dela, não foram essas que vi nas lembranças – respondi atônita, precisando respirar fundo para manter a calma.

Burra. Por que precisa ser sempre tão distraída? Qualquer um teria notado logo de cara.

Sim, mas eu não era qualquer um, eu era Marliss Stella, uma alienígena de alguma realidade alternativa com problemas realmente sérios relacionados à percepção do ambiente à sua volta. Poderiam ter tirado uma parede dali que eu sabia que não teria notado.

– As bonecas que realmente foram dela são... Mais realistas que isso, mais bonitas e maiores, e também muito mais bizarras – eu disse mordiscando a ponta de meu dedo, pensativa. – São tão diferentes que uma pessoa normal teria notado que não são as mesmas assim que viu as de Abelle em suas lembranças.

– Bom, mesmo assim você não... Não quer tirar essas também? Se são as dela ou não, continua sendo estranho e não muito confortável ter essas coisas aqui – Henri supôs com uma careta ao pegar uma boneca coberta por teias e eu concordei.

Abelle teria que esperar um pouco, porque tudo o que eu parecia saber agora não passavam de informações confusas e praticamente inúteis. E, enquanto eu juntava as peças e caçava informações coerentes, daria um jeito nas bagunças que tudo aquilo vinha me causando: tanto na casa quanto em mim mesma.

Começamos por recolher caixas vazias pelo sótão e a distribuir as bonecas em cada uma delas. Vez ou outra alguém espirrava com a poeira que aquilo estava levantando, e a cada cinco minutos eu gritava, me assustando com uma aranha pendurada em alguma boneca, ou com alguma pequena barata que saía correndo quando remexíamos seu esconderijo.

Eu só conseguia pensar no quanto talvez tivesse sido melhor se minha mãe não fosse uma louca impulsiva com uma filha que dá corda para qualquer ideia sem nexo somente por querer uma vida digna de uma aventura literária. Sabia que, se não fosse por isso, eu jamais estaria presa em uma casa velha assombrada que estava me deixando maluca e fazendo meu próprio irmão duvidar de quem eu era.

– Ei Lis, olha essa aqui – Eliel exclamou como se fosse uma grande descoberta, balançando em minha direção uma grande boneca antiga de porcelana.

Esta não estava quebrada, apenas velha e suja. Seus cabelos enrolados eram de um louro tão claro que chegava próximo ao prata, e seus olhos eram de um azul intenso. Ela mantinha um olhar sagaz, como se soubesse de muitas coisas que os outros não sabem, e seus lábios finos pintados de vermelho sorriam de maneira discreta.

Ela não me parecia assustadora, na verdade me trazia uma sensação de conforto. Pelas fotos antigas que havia encontrado nas coisas velhas de papai, poderia dizer com toda a certeza que era porque ela se parecia muito com a minha avó.

– Vou ficar com esta – eu disse sorrindo e meu irmão e Henri franziram as sobrancelhas. – Ora, o que foi? É só limpar ela e dar um jeito nessas roupas que ela fica linda.

– É só que... Pensei que você não gostasse de bonecas – Henri disse e Eliel deu uma risadinha fraca e curta, como quem não entende o que está acontecendo.

– Mais que isso, ela tem medo de bonecas – ele disse e revirei os olhos, bufando e colocando a boneca ao meu lado.

– E daí? Só por isso não posso gostar de uma em especial? – Resmunguei baixinho e Eliel deu de ombros.

– Por que tem tanto medo? – Henri perguntou e franzi a sobrancelha, realmente não esperando que me fizessem uma pergunta daquelas algum dia. Afinal, que diferença fazia o motivo para um medo tão idiota?

– Sei lá, acho que porque minha mãe louca me contava histórias sobre como elas me sequestrariam e me levariam para bem longe se eu não tomasse cuidado – eu disse como se fosse algo óbvio, somente alguns segundos depois me dando conta de que para Henri não era nem um pouco óbvio e talvez soasse até um pouco estranho, afinal, mães não devem assustar seus filhos e sim fazer com que sintam seguros.

– Sua mãe parece legal – ele comentou com uma risadinha e encolhi os ombros, realmente não estava esperando que ele fosse elogiá-la por algo como aquilo.

– Costumava ser mais. Eu me lembro dela tocando piano junto com a minha tia, ela me pegava no colo e deixava eu sair fazendo a maior poluição sonora da vida, era divertido. Brincávamos muito juntas também, e contávamos histórias... Mas mudou desde que meu pai morreu e ela...

– Nossa, eu... Eu não sabia, desculpe – Henri disse realmente sem graça e eu sorri, dando um tapa leve em seu braço.

– Não se preocupe, eu não vejo isso como a pior coisa do mundo. Eu era muito nova e nem lembro muito dele, só que era um ótimo pai, então não fico toda triste e deprimida – admiti me sentindo um pouco estranha e até mesmo culpada por tê-lo superado tão facilmente. – Só não posso negar que sinto falta.

– É, entendo – Henri respondeu e, tão rápido quanto o assunto havia surgido, acabou por ali mesmo e voltamos ao trabalho.

Bom, não seria eu quem iria reclamar. Sabia que, se continuasse discutindo a morte a falta de entes queridos, acabaria isolada no quarto chorando em posição fetal feito um bebê.

Terminamos depois de pelo menos meia-hora, o que foi um alívio já que eu não aguentava mais aquele lugar abafado e nem aquele monte de poeira, insetos vivos e mortos e bonecas, era quase como um cenário daqueles clipes de música góticos que se passavam na era vitoriana.

Descemos as caixas e acabei por decidir que não trancaria o sótão daquela vez. Abelle devia ter passado tanto tempo trancada ali dentro que talvez lhe desse uma sensação de liberdade – pelo menos assim eu pensava e esperava, de verdade, que já ajudasse um pouco.

Depois eu Henri levamos as caixas para fora, deixando-as sobre a calçada – segundo Henri, o caminhão de lixo passaria mais tarde e assim poderia recolhê-las.

– Então, o que fazemos agora? – Perguntei apoiando as mãos nos quadris e respirando fundo.

Diferente do que eu esperava, aquilo havia sido realmente cansativo. Fazia tanto tempo que não brincava com brinquedos que até havia me esquecido do quanto poderia ser demorado recolher aquelas coisas.

– O que acha de darmos uma volta? – Sugeriu e eu quase ri.

– Tá doido? – Disse praticamente gritando, minha voz indo para um tom agudo que eu abominava. – Eu tenho um monte de coisa para resolver agora. Tem a questão dessas bonecas desaparecidas, e aparentemente eu quebrei a casa inteira e meu irmão precisa comer alguma decente, e eu... Meu Deus...

– Viu só? Você precisa relaxar – Henri disse como se fosse algo óbvio e estreitei os olhos para ele, ainda sem me dar por vencida.

Sem dúvidas eu estava enlouquecendo, não aguentava mais não ter um único dia normal desde que me mudara, e realmente estava precisando de algo para me distrair. E não podia negar que sentia que meu cérebro ia explodir a qualquer momento. Mas ainda assim... Eu só queria terminar logo tudo aquilo, para enfim poder ter a vida normal que antes eu tanto abominava.

– Olha, ainda tem o fato de que não posso sair gastando assim o dinheiro que minha mãe deixou...

– Eu pago tudo se formos comprar algo – ele disse com convicção e eu suspirei. – Ah, qual é? Pare de ser chata!

É, Marliss! Pare de ser chata! Você finalmente tem a chance de sair com o garoto que você gosta e...

Interrompi meu próprio pensamento, sentindo meu rosto esquentar e meu pescoço arder. Eu não gostava dele, que história era aquela?

Parei e o encarei, notando que, para a minha sorte, ele estava distraído com alguma pedrinha no chão, empurrando-a com o pé. Meu coração batia rápido naquele momento e quase tomei um susto quando Henri levantou o rosto novamente para me encarar.

– E então? Vai ir ou os espíritos não deixam? – Henri zombou e lhe dei um empurrão de leve.

– Pare de ser idiota e não brinque com essas coisas – respondi já me virando para voltar para dentro da casa. – Eu... Eu vou pensar – disse por fim com um sorriso.

– Então você é do tipo difícil? – Ele perguntou e, mesmo sabendo se tratar somente de uma brincadeira, acabei me sentindo envergonhada.

O quê?! – Guinchei e cruzei os braços, empinado o nariz e andando na frente. – Como se eu fosse me fazer de difícil para alguém como você, eu nem iria querer...

– Nossa, Lis – ele disse parecendo realmente ofendido e cheguei a me sentir mal.

Todo dia uma cagada da Lis diferente.

– Desculpe, não quis ser grossa, é só que... Ah, deixa pra lá.

Enquanto subia as escadas para o meu quarto, já com a intenção de tomar um banho e me trocar para sair com Henri, coloquei a mão no bolso da calça e senti uma coisinha fria e pontiaguda balançar ali dentro. Era a outra chave que achara ainda naquela manhã. Droga, ainda tinha mais essa.

Levei os olhos até a portinha no teto do corredor, me sentindo até mesmo um pouco culpada por um momento por adiar algo que era – ou parecia ser – de grande importância, mas sabendo que, assim como Henri dissera, precisava tirar um tempo para mim ou acabaria enlouquecendo de vez.

Jesus, pare de ser assim, pense mais em você. Quer mesmo ir parar num hospício por coisas que nem estão diretamente ligadas à você?

Ok, pensei respondendo ao meu subconsciente irritante porém sincero. Mas vou resolver isso assim que voltar, prometo, acrescentei, mesmo sem saber ao certo à quem se dirigia aquela promessa.

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