Cap. 18

O que não te destrói, te deixa quebrado em vez disso
Tenho um buraco na minha alma crescendo cada vez mais e não consigo aguentar
Mais um momento desse silêncio, a solidão me assombra
E o peso do mundo fica cada vez mais difícil de segurar

Vem em ondas, fecho meus olhos
Seguro minha respiração e deixo-me enterrar
Não estou bem e não está tudo bem
Você não me arrastará do lago e me trará para casa novamente, de volta para casa?

Bring me the Horizon – Drown

◈◇◈

Havia acabado de abrir os olhos mas ainda sentia como se estivesse dormindo e sonhando, grogue e com a mente presa sobre o que eu havia acabado de, de certo modo, presenciar.

Agora eu sabia, definitivamente, que aquela garotinha era Abelle e que aquelas bonecas no sótão haviam pertencido a ela há muitos anos atrás, mesmo que ela não gostasse e temesse aquelas coisas estranhas.

Abelle... O que faziam com aquela menina? Todo aquele medo não era normal, alguém realmente havia feito mal à ela, e não havia sido pouco e nem por pouco tempo.

Senti meus olhos arderem e umedecerem e um bolo se formar em minha garganta. Eu me sentia péssima por ter sentido medo dela, porque ela mesma se sentia sempre tão assustada, ela estava enlouquecendo naquele sótão, presa e sozinha sabe se lá desde quando.

Deus, ela era só uma criança, não deve ter passado nem dos dez anos.

Me sentei e abracei os joelhos contra o corpo, enterrando o rosto entre os braços e mordendo os lábios para segurar o choro, só então reparando que estava só de toalha e que não me lembrava de ter vido para o quarto na noite anterior.

Eliel deveria ter visto que eu havia adormecido na água fria e me arrastado até o quarto como se eu fosse uma morta-viva – coisa com a qual eu não me surpreenderia, episódios de sonambulismo e coisas do tipo não eram inéditos na minha vida.

Passei os dedos pelos cabelos embaraçados e suspirei, sentindo certo nervoso fazer meu coração bater mais rápido. Abelle havia pedido que eu a entendesse, que eu a ajudasse, mas apesar de tudo o que havia visto, eu ainda não fazia ideia de como ajudá-la ou do que tinha acontecido naquela casa há tantos anos atrás.

Quem era aquele homem lhe trazia as bonecas? E se era ele que a mantinha presa, por quê?

Abelle o chamara de "papa" mas eu me recusava a acreditar que seu verdadeiro pai fosse capaz de tratá-la como um animal com alguma doença contagiosa que precisa se manter isolado para que não contamine os outros.

Eu definitivamente precisava resolver aquilo, e precisava ser logo, ou o tormento continuaria tanto na minha vida quanto na de Abelle.

Resolvi levantar e me trocar, decidindo que estava na hora de tirar os curativos úmidos – e até já meio encardidos – das mãos. A situação não estava tão ruim quanto pensei, a maioria dos cortes eram bem superficiais e já haviam começado a cicatrizar, somente ardiam um pouco, e não tinha nada infeccionado nem nada do tipo.

Mexi os dedos e senti um corte ou outro que haviam sido feitos bem nas juntas doerem, me fazendo resmungar baixinho. Mais tarde talvez eu passasse uma pomada naquilo.

Terminei de ajeitar as meias exageradamente coloridas que havia colocado e calcei os chinelos, saindo do quarto e estremecendo um pouco ao sentir uma corrente forte de vento gelado me atingir nas costas. Por que diabos haviam deixado a janela aberta?

Deixei quieto e desci as escadas sem qualquer animação ou pressa, sonolenta, pensativa e estranhando um pouco o silêncio presente. Se Henri ainda estava ali, Eliel com certeza estaria falando sem parar se estivesse acordado.

Aliás, que horas eram?

– Gente? – Chamei assim que cheguei na sala, quase tomando um susto ao dar de cara com os dois seres humanos sentados no sofá com cara de quem estava esperando um ataque, meu irmão estando pateticamente agarrado à uma almofada.

Estremeci mais uma vez com um calafrio quando mais vento gelado bateu contra o meu corpo, e só então reparei nas janelas esburacadas, somente com pequenos pedaços de vidro estilhaçado ainda grudado nas madeiras das laterais. Procurei pelos outros cacos e encontrei no chão uma pá usada para recolher lixo cheia deles, e uma sacola de papel ao lado cuja provavelmente tinha mais vidro quebrado dentro.

Henri parecia estar em outra realidade, encarando a parede com os olhos vagos enquanto tamborilava os dedos no braço do sofá, e Eliel continuava me fitando com os olhos claros arregalados. Ele estava com medo de mim?

– O que foi? – Perguntei, confusa e meio hesitante, e nenhum dos dois pareceu sequer pensar em me responder. – Gente pelo amor de Deus...

– Não, Lis, pelo amor de Deus você! – Eliel gritou, me pegando de surpresa e quase me causando um susto. – Eu tô cansado disso! Cansado dessa merda toda! De você me tratando como criança e escondendo as coisas de mim e de repente ficando louca e eu sem saber como te ajudar porque eu simplesmente não sei o que tá acontecendo!

– Ficando louca? – Murmurei e senti meu coração pesar quando meu irmão começou a chorar e Henri o abraçou, abafando os sons do seu soluço. – Eliel, eu...

– Eu só queria que a gente fosse uma família normal, fazendo coisas normais, mas a mamãe tá sempre fazendo outras coisas e você tá sempre se sentindo mal por isso, e eu só sei fingir que não tem nada acontecendo porque não posso ajudar!

Respirei fundo para engolir o choro que viria a seguir e passei o dorso da mão por baixo dos olhos para secar as lágrimas que ameaçavam começar a cair a qualquer momento.

– E você acha que eu não sei que tudo tá a maior merda? Acha que eu fico me sentindo mal porque eu quero e só? Eu sei que também não é fácil pra você, mas também não é certo você me culpar por coisas que ninguém tem culpa! – Gritei com a voz embargada e passei as mãos pelos cabelos, puxando-os com força.

Sentia meus dedos tremerem e meu rosto esquentar cada vez mais. Como eu conseguia ficar sempre tão nervosa com coisas idiotas? Um verdadeiro mistério que nem eu entendia.

– Você não pode sair por aí brigando com os outros por coisas que não entende, gritando como se fosse o dono da razão – eu disse e vi meu irmão fazer uma careta irritada. – Se não quer ser tratado como criança então pare de agir como uma, merda!

– Vai se ferrar! – Eliel gritou enquanto eu subia as escadas irritada, batendo os pés nos degraus que rangiam, parecendo que poderiam quebrar a qualquer momento.

– Vai se foder! – gritei e entrei no quarto, batendo a porta e parando por um momento.

Grunhi de raiva e chutei a porta uma, duas, três vezes, até as pontas dos dedos do meu pé começarem a doer. Mas eu estava tão nervosa que dor era algo realmente difícil de me distrair.

Xinguei e fechei a mão, dando um soco na parede e me arrependendo no mesmo momento, pois a dor dos cortes pareceu se intensificar um milhão de vezes.

– Mas que merda – murmurei e me sentei no chão, puxando os joelhos contra o peito e escondendo o rosto entre os braços. – Eu me odeio, eu me odeio, eu me odeio...

Sem já conseguir me conter, apenas deixei o choro vir. Eu sabia que meu irmão podia sim me culpar se quisesse, ele tinha só dez anos e já havia passado por mais merda que muita gente, e muitas somente por minha causa. E eu me odiava tanto por sempre brigar com ele, afinal, ele não tinha culpa por não estar feliz com a família que tinha, ninguém deve gostar de ter uma mãe ausente e uma irmã mais velha que parece mais nova e é toda problemática.

E ninguém deve considerar boa a lembrança da irmã indo parar no hospital à beira da morte por simplesmente não conseguir lidar com os próprios problemas.

Eu era realmente uma inútil, só vinha causando problemas desde que nascera, e mesmo quando tentava consertar tudo, só acabava fazendo mais merda.

Talvez por isso fosse tão sozinha, talvez por isso nunca tivesse tido um namorado ou amigo decente, talvez por isso sempre fosse motivo de piada e brincadeiras idiotas para as pessoas "normais".

Mas eu também nunca havia pedido por nada disso, assim como ninguém quer ter uma família triste, ninguém quer ser o motivo para uma família triste. Ninguém quer ser problemático e deprimido, ninguém quer ter um milhão de problemas de autoestima e autoconfiança, ninguém quer ser medroso, e inseguro, e tímido a ponto de quase não conseguir manter uma conversa decente com pessoa nenhuma.

Basicamente, ninguém quer ser uma Marliss. Nem eu queria, às vezes realmente pensava em ir morar com a minha tia, pintar o cabelo de verde e mudar de nome.

Verde é horrível, ruivo seria melhor.

É, talvez ruivo. Não importava a cor, sabia que tia Elizabeth me aceitaria do jeito que fosse, mesmo que eu insistisse não ser mais a sua sobrinha Lis. Porque ela era exatamente como o meu pai, e como a minha avó também.

Eles sempre haviam sido tão bons, mesmo que eu tivesse convivido com todos os três por pouquíssimo tempo. Tia Elizabeth era doce e gentil, vovó era inteligente e forte e meu pai sempre sabia o que dizer e quando dizer. Todos sempre haviam sido tão legais comigo, minha vó não deveria ter morrido, e nem o meu pai, só eu que era toda errada, que ocupava espaço enquanto pessoas boas poderiam estar no meu lugar.

Comprimi os lábios e cerrei os olhos, apertando as unhas contra os braços e sentindo minha pele arder. Soltei quando tomei um susto ao ouvir alguém bater na porta e Henri me chamar logo em seguida.

– Me deixa – respondi e ouvi ele resmungar e reclamar.

– Para de ser chata, eu só quero te ajudar.

– Ajuda muito me chamando de chata – retruquei e a porta abriu com um rangido.

Não levantei a cabeça e nem abri os olhos, mas sabia que Henri havia entrado, e agora se sentava ao meu lado, suspirando.

– Não fique tão brava com ele, ele é só uma criança, não sabe lidar com toda essa coisa – ele disse baixinho e revirei os olhos.

– E eu por acaso sei?

– Não, mas pra quê fazer a bruxa má se você pode ser a irmã mais velha legal de quem ele fala pros amigos como se fosse uma super-heroína? – Ele perguntou e dei de ombros. – Eu não tive isso, sabe? Um irmão mais velho, alguém em quem podia me espelhar e seguir como exemplo. Eu era muito, muito encapetado mesmo e...

– Credo! – Eu disse rindo e secando o rosto com as mãos e Henri sorriu.

– É sério, eu deixava minha mãe louca. E meu irmão e eu somos gêmeos então...

– Você tem um irmão gêmeo? Como assim? E por que só conta isso agora?

– Não achei que fosse relevante, agora deixe eu falar mulher – ele pediu e encolhi os ombros, dando um sorriso sem graça. – Então, por sermos gêmeos, eu sempre acabava arrastando ele para as merdas que fazia ao invés de receber ou dar uma bronca quando algo "ruim" era feito. E muitas vezes ele acabava por ficar de castigo por causa das coisas que eu fazia, e eu me sentia mal com isso e penso que talvez, se um dos dois fosse o mais velho ou se tivéssemos outro irmão, essas coisas não aconteceriam.

Assenti, sem entender direito aquilo mas fingindo ter valido a pena a lição de vida que ele dera, não queria desapontá-lo. Afinal, eu sempre fora a mais velha então não sabia como era ser outra coisa.

– O que aconteceu com o seu irmão e o seus pais?

– Ah, continuam lá, levando uma vida... Normal, eu acho – Henri disse meneando a cabeça. – Meu irmão meio que... Teve uns problemas, as coisas ficaram complicadas, eu fiquei triste por não ter mais ninguém para me acompanhar nas minhas bagunças e não queria dar mais trabalho ainda para a minha mãe, então eu só vim morar com a minha vó, deixar as coisas esfriarem, sabe?

– Então você vai ir embora quando tudo passar? – Perguntei me sentindo um pouco triste e solitária antecipadamente.

Quem mais naquela cidade seria legal comigo se não Henri e Dona Emy? Todos sempre me olhavam torto simplesmente por eu não andar sorrindo para todo mundo e dar bom dia para as flores.

– Talvez. Meu irmão precisa de mim e eu dele, coisa de gêmeos - ele explicou e eu ri, imaginando como seria ter uma irmã gêmea.

Sempre imaginara que fosse algo divertido e que teria suas vantagens, como evitar aquela pessoa chata que quer falar com você o tempo mesmo sabendo que vocês não têm assunto.

– Quer conversar sobre ontem? Sabe, eu sou seu amigo Lis, você não precisa ficar na defensiva e assustada na hora de me contar as coisas – Henri disse e assenti, já sabendo que poderia contar com ele nessas horas. – Posso não acreditar em você de imediato, mas estarei com você sempre. Então?

Eu franzi as sobrancelhas e abaixei a cabeça, batendo os dedos inquietos das mãos nas minhas pernas. Ótimo, mais uma loucura com a qual eu precisaria lidar e fazer outros lidarem também. Respirei fundo e mordi o lábio inferior antes de decidir que iria começar a falar.

– É estranho mas a questão é que... Nem eu sei direito o que aconteceu ontem – confessei e Henri permaneceu em silêncio, apenas esperando que eu continuasse. – E eu realmente senti medo quando levantei hoje e de repente tinha vidro por todo lado e você e Eliel estavam apenas vegetando com cara de quem viu o próprio Diabo.

– É, não foi muito diferente do que aconteceu, eu acho.

Merda. O que tinha sido agora? Se Abelle queria ajuda e eu já tinha entendido isso, por que continuar com as assombrações e sustos? Ninguém mais aguentaria muito tempo.

– Eu só me lembro de estar tomando banho e sentir sono, eu me senti muito cansada mesmo, e acabei dormindo – expliquei, franzindo as sobrancelhas enquanto me lembrava do sonho/lembrança onde eu vivenciava momentos que um dia haviam sido vividos por Abelle. – E eu tive uma espécie de sonho muito estranho. Tem uma garotinha... Eu acho que não contei sobre isso mas não é qualquer espírito aleatório que está causando tudo isso, é uma menina que, se eu estiver certa, se chama Abelle.

Contei tudo sobre o sonho para Henri, que me ouviu com paciência e uma cara de confusão nem um pouco inesperada pela minha parte. Em seguida, ele mesmo me contou tudo o que tinha acontecido enquanto eu, supostamente, estava dormindo, e também o que Eliel havia visto logo antes de ele chegar ao banheiro.

Estava frio mas eu podia sentir meu corpo suar por debaixo da roupa. Meu coração batia rápido e eu mesma já não sabia mais o que pensar.

– Os vidros se quebraram exatamente como os espelhos no parque – murmurei depois de um tempo. – Isso acontece quando ela fica assustada...

– Quem fica assustada? – Henri perguntou, novamente já não entendendo coisa alguma.

– Abelle – eu disse me levantando num sobressalto. – Ela não gosta das bonecas, e nem do pai. Mas só posso resolver a questão das bonecas no momento, vamos!

O puxei pela mão e fui até o criado-mudo ao lado da cama, abrindo a primeira gaveta e pegando a chave velha e enferrujada do sótão. Somente a ideia de subir lá novamente já me causava calafrios, mas, se eu realmente quisesse ajudar Abelle e evitar mais eventos como o da noite passada, precisava começar a agir e a entendê-la de verdade. E rápido.

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