O ardil do serpentário

Fui encaminhada para uma prisão da Legião da Magia, escoltada pela própria Katrina Muon, mas minha Mestra não falou comigo uma única palavra, exceto quando lera meus direitos e discorreu sobre os crimes em que fui acusada. Não ousei resistir à prisão, nem contestar meus crimes cometidos, aceitando sem me queixar a minha atual condição de prisioneira. Com certeza eu era merecedora de ser encarcerada, mas ainda possuía uma missão para terminar. Todavia, minha cela era especial, tendo sido encantada pelos próprios Anciões da Magia para que nem mesmo o poder do olho das trevas fosse capaz de me tirar dali.

Minha angústia só começou quando fui capaz de sentir a presença de mais uma relíquia das trevas sendo utilizada. Tratava-se de uma relíquia que tinha a aparência de uma pulseira em formato de serpente, mas quando ativa assumia a forma de um cajado com a cabeça de uma víbora, seu nome era a serpente insidiosa. Ela representava o pecado capital da inveja — desgosto provocado pela prosperidade alheia, ou ainda um desejo irrefreável de possuir o que é de outrem.

Era uma das relíquias das trevas mais perigosas, pois a serpente insidiosa era capaz de se multiplicar rapidamente, fenômeno chamado de o ardil do serpentário. As víboras eram totalmente invisíveis para os olhos das pessoas que não possuem uma visão das trevas como a minha. O propósito de tais criaturas seria o de picarem o maior número possível de vítimas, injetando nelas o veneno da inveja. Um veneno capaz de matar qualquer um pelas frustrações e rancores perante vontades não realizadas, por não possuir qualidades de outras pessoas, por passar a acreditar que os outros são superiores em tudo; assim como um desejo obsessivo em ter o que o outro possui: sejam coisas materiais, qualidades e o que mais pudesse invejar.

Claro que antes do veneno matar sua vítima infectada, ele era plenamente capaz de intensificar o pior lado do ser humano, levando muitas pessoas a se matarem ou roubarem as posses que desejavam dos outros. Civilizações antigas já foram completamente varridas com guerras sangrentas por causa dessa relíquia das trevas. Contudo, o proprietário da relíquia sempre seria a representação máxima de uma pessoa invejosa em toda a sua natureza, que por razões disso, ambicionaria pela destruição completa de um povo que não lhe deu tudo o que acreditava merecer.

Eu não poderia permanecer em custódia da Legião da Magia, deveria fazer alguma coisa para destruir de uma vez por todas a serpente insidiosa e o ardil do serpentário.

— Por favor, tirem-me daqui! Uma relíquia das trevas está sendo utilizada nesse momento, trata-se da serpente insidiosa, uma das mais perigosas! Se o ardil do serpentário iniciar, será um inimaginável banho de sangue! — Bradei expulsando todo o ar presente em meus pulmões, forçando ao máximo minhas pregas vocais. Segurava as barras metálicas da cela, tentando enverga-las para abrir espaço que me permitisse passar. Porém, dentro daquela cela era impossível para mim usar qualquer tipo de magia e com minha força natural jamais seria capaz de um feito desses.

— Acalme-se, Aijiro. — disse minha Mestra, surgindo pelo corredor de pedra da prisão, aproximando-se de minha cela. Seus olhos verde-esmeralda permaneciam rígidos, mas sua expressão demonstrava cansaço. — A Legião da Magia está ciente da localização da relíquia das trevas em questão, assim como já estávamos no encalço da Súcubo da luxúria em Arkanta.

— Pareceu-me mais que estavam em meu encalço. — Admiti, franzindo a testa, semicerrando os olhos e crispando os lábios para a minha Mestra.

— Estávamos no encalço da cafetina, a Madame Libidia. Os procedimentos seriam realizados nos respaldos da lei, não obstante, a cafetina seria conduzida à prisão, sua situação seria relatada, a acusação protocolada e seu julgamento seria marcado. — Informou Katrina. — Contudo, você mais uma vez agira como algoz e juíza da situação, tornando-se uma criminosa como os demais proprietários de relíquias das trevas.

— Não me compare a eles! — Vociferei, completamente enfurecida com o que acabara de ouvir de minha Mestra. — Eu matei traficantes de humanos, aproveitadores da fragilidade alheia e devassas insanas! Realizei muitos sacrifícios, doei-me de corpo e alma, renunciei a tudo para me tornar uma lâmina eficiente contra as relíquias das trevas! Fui capaz de destruir três das sete relíquias nesses poucos anos de atuação, quantas vocês destruíram? Quantas você destruiu, Mestra? Sequer conseguiu fazer isso com a relíquia de uma menina de oito anos que só desejava a morte!

Após proferir tais palavras iradas, arranquei o meu tapa-olho, revelando meu artefato das trevas pela primeira vez em anos. Ele apresentava uma pupila ofídica vertical e íris vermelho-escarlate radiante, mas a esclerótica era negra como a profundeza das trevas absolutas. Qualquer pessoa morreria instantaneamente ao encarar o olho das trevas, mas Katrina Muon era uma das raras exceções que não sofriam nenhum dano com a influência das trevas da relíquia.

— O olho das trevas, a relíquia que representa o pecado da vaidade. Ainda não percebeu que se tornara a ferramenta de todo a soberba do mundo das trevas? Uma relíquia que se enxerga acima de todas as outras, capaz de reinar sozinha por se considerar como o pecado absoluto da humanidade. — Expôs minha Mestra, o que me deixou completamente sem resposta, nunca havia pensado por esse lado. Desde o início sempre acreditei que o meu propósito era nobre e abnegado, ao invés disso, sendo apenas mais uma providência dos desígnios das trevas.

— Eu nunca imaginei... — Sentia minhas pernas perderem completamente a força, fazendo-me cair de joelhos em minha cela. — Jamais imaginei que fosse igualzinha a todos os outros proprietários das trevas... Por que não me matou naquele dia? Por que não me mata agora? Sou uma ameaça que precisa ser detida! — Esbravejei, enquanto lágrimas escorriam pelo meu olho normal.

— Porque você sempre teve o direito de escolher o caminho que desejasse trilhar. — disse Katrina, com uma voz branda. — Diferentemente da maioria dos proprietários das trevas que aceitam de bom grado suas relíquias por motivos egoístas, você era uma criança que pagou pelo egoísmo de seu pai. Sempre acreditei que pelo fato de não ter escolhido ser a proprietária do olho das trevas, seria plenamente capaz de escolher todos os desígnios ao invés de ser uma fantoche de sua relíquia. Ainda acredito nisso, pois você não foi totalmente dominada pelas trevas, até mesmo a cor de seu olho se abrandou. O escarlate vibrante assumira um tom azulado sereno, indicando que o controle ainda é seu, que você é alguém muito maior do que seu estigma! — Concluiu, Katrina, com seus olhos derramando lágrimas, algo que eu nunca tinha visto antes.

— O que eu devo fazer, Mestra? — Indago-a, enquanto me levanto me esgueirando nas barras da cela, sentindo-me completamente perdida.

— Não tome a frente sozinha, permita que outras pessoas te ajudem. O único jeito de derrotar definitivamente a relíquia da vaidade e da soberba é a virtude da humildade. Aprenda a reconhecer suas próprias limitações e fraquezas, não sendo autoindulgente, mas consciente de que é sempre capaz de melhorar e aprender. Não projete mais um propósito de vida que atropele outras pessoas para alcançar um objetivo, porque, mesmo que ele seja nobre no final, os estragos provocados pelo caminho serão irreparáveis. — Finalizou, minha Mestra.

Com sua poderosa magia, Katrina Muon fizera as barras da cela que nos separavam desaparecerem, abraçando-me com ternura. Eu chorei em seus braços quentes, despejando todas as lágrimas da tristeza que havia enterrado nas profundezas de meu coração por tantos anos. Era como uma chuva que precisava acontecer para lavar tudo o que existia de ruim em meu íntimo, renovando meu espírito.

— Juntas nós deteremos a serpente insidiosa, assim como destruiremos todo o ardil do serpentário. Você concorda? — Katrina perguntou.

— Concordo plenamente! — Respondi, exibindo um sorriso resplandecente que nunca havia expressado antes.

****

O planeta Elementia se encontrava em um caos completo, nem mesmo o grande efetivo militar da Legião da Magia com seus agentes de segurança especializados conseguiam lidar com o grande número de pessoas completamente insanas querendo matar umas as outras. O ardil do serpentário promovido pela relíquia das trevas da inveja, a serpente insidiosa, já se tornara uma realidade. A proprietária do artefato maligno e autora assumida do ardil se chamava Victoria Silveston, uma Bruxa Renegada, banida da Legião da Magia e condenada à prisão por sua conduta criminosa envolvendo roubos, chantagens e tráfico de influência. Ela cumpriu dez anos de detenção, quitando seus débitos com a justiça. Mas sua sede por vingança fazia com que o cajado em formato de serpente em seu poder se tornasse a combinação mais explosiva de todas.

— Bando de imundos, tomarei de vocês tudo o que roubaram de mim, com juros! Farei com que paguem por terem desejado apagar o meu nome das glórias! No final deste dia solene, terei destroçado a Legião da Magia para assim fundar a minha própria legião de seguidores devotos! — Bradava a mulher insana chamada Victoria Silveston, estando no alto de um prédio no centro da Capital de Elementia. Ela amplificou a própria voz através de magia, para que todos pudessem ouvi-la, enquanto manejava o cajado de serpente como se fosse a batuta de um maestro regendo uma orquestra de mortes.

Lex Divina! — Proclamou Katrina Muon, chegando no campo de batalha através de uma grande bolha dourada que a transportara até ali.

A magia da Anciã da Magia se espalhou por toda a área de atuação do ardil do serpentário na forma de um lampejo dourado, como se ela tivesse se transformado no próprio sol. Todas as víboras das trevas invisíveis foram mortas instantaneamente, assim como o veneno da inveja nos corpos das vítimas fora neutralizado, as libertando de seus instintos mais cruéis.

Entrementes, Victoria Silveston ainda detinha a serpente insidiosa e ela estava visivelmente furiosa depois de presenciar seus planos serem frustrados. Imaginei que passou pela cabeça da maluca que não poderia aceitar a presença de ninguém mais poderosa e influente do que ela mesma naquele lugar que havia reivindicado como seu.

— Maldita Anciã da Magia! — Esbravejou com a face distorcida pela fúria. — Seus esforços de nada adiantarão, basta eu criar mais um ardil do serpentário com meu cajado, esgotarei suas forças até o final deste dia solene! — Ameaçou a mulher insana.

— Ei, idiota invejosa! — Chamei por Victoria, também estando naquela cobertura do prédio, apenas alguns metros de distância dela. Meu olho das trevas estava descoberto, mas ele não a mataria por ela também ser uma proprietária de relíquia das trevas, porém, o objetivo era o fator psicológico.

— Quem é você, imunda?! — A mulher se virou para mim, apontando o cajado em minha direção. A boca da víbora no topo do cajado se escancarou, liberando inúmeras cobras menores que serpenteavam para cima de mim em grande velocidade.

Elas me picaram aos montes, mas sequer foram capazes de me fazerem cócegas, sem contar que eu também era imune ao veneno da inveja da relíquia. Gargalhei com desdém, deixando a inimiga muito aturdida.

— Como pôde resistir aos poderes da serpente insidiosa, maldita? — Indagou-me, receosa com minha imunidade.

— Também sou uma proprietária das trevas! — Afirmei isso apontando para o meu olho direito exposto, exibindo-o num brilho azul-turquesa intenso emitido através de sua íris. — Se você é a inveja, eu sou a soberba, logo, pode ter certeza de que me garanto muito mais do que você numa briga! — Estalei meus dedos, enquanto me aproximava devagar da mulher, que agora esboçava uma expressão de completo pânico. Ela recuava à medida que eu avançava, até não ter mais para onde ir, encostando suas costas no parapeito da cobertura do prédio. — O que foi? Não se garante sem o seu brinquedinho das trevas? Venha me enfrentar com seus poderes! — Provoquei uma última vez, pois imaginava que todo invejoso fosse um covarde que não se assumia abertamente como tal.

Porém, o inesperado acontecera: Victoria Silveston pulou do prédio, ao menos achei que ela fosse usar alguma magia de voo, mas invés disso, a mulher se estatelou no chão com toda a força da gravidade. Talvez o pavor tenha sido tão grande que ela nem conseguiu se concentrar o suficiente para reunir seus poderes arcanos, ou simplesmente desejou se suicidar para não sofrer as consequências de seus atos, pois não havia mais como escapar das punições em todo o rigor da lei.

Contudo, o melhor de tudo nessa história foi que a serpente insidiosa se espatifara em pedaços com a queda da mulher do prédio, sendo mais uma relíquia das trevas a ser destruída, ou melhor, dessa vez ela se autodestruiu, algo bem típico de um pecado como a inveja. 

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