Capítulo 4 - O encontro com perspectivas obscuras

A mulher misteriosa que surgiu em meio a escuridão trajava um espartilho vinho longo que ia do busto até a região da cintura, com barbatanas verticais rígidas bem costuradas e terminando numa saia rendada. Os ombros e braços eram cobertos apenas por uma jaqueta preta de couro com mangas longas e um símbolo que lembrava uma chama alaranjada nas costas da peça. Ela também usava meia-calça arrastão com tramas largas, botas de cano longo feitas de couro grosso e luvas com um adereço felpudo no pulso. Seu rosto tinha um formato triangular invertido com as maçãs do rosto largas e o queixo fino; além de lábios carnudos, um nariz pequeno e chato, olhos grandes e profundos. Os cabelos dela eram totalmente trançados, com várias mechas amarradas no topo da cabeça, tendo apenas duas tranças livres recaindo no seu rosto de pele negra.

– Quem diabos são vocês? Também pertencem à Legião da Magia? – questionou Delterio, começando a ficar preocupado com a diminuição da vantagem numérica que tinham.

– Quem me dera, até estava pensando em me alistar! – respondeu a mulher, de forma bastante descontraída. – Mas eu e meu irmão somos apenas dois viajantes em busca de algum propósito!

– Leve a situação a sério, esses homens são profissionais, então, não baixe a sua guarda! – disse Ursula para a recém-chegada.

– Qual foi, é assim que retribui a ajuda? Não me trate como se eu fosse uma fanfarrona! – ela rebateu, fazendo uma careta exagerada de indignação.

– Já chega dessa palhaçada! – vociferou Delterio, atacando de imediato a viajante misteriosa com uma esfera negra de energia mágica maciça que disparou de suas mãos.

– Anulação mística! – Proclamou Ursula, agachando-se e colocando a palma da mão esquerda no chão.

No mesmo instante, as rosas negras fincadas no chão pelo ataque anterior da Bruxa emitiram um brilho prateado e assim liberaram raios que subiram aos céus de trevas daquela noite sem lua, formando uma iluminação própria com a magia evocada que assumiu a forma de uma cúpula reluzente que abrangia toda a área da rua. Todas as esferas brilhantes que estavam flutuando no campo de batalha, abandonadas pela plateia de outrora, sumiram completamente, assim como a esfera maciça de energia sombria lançada por Delterio desaparecera em pleno ar antes que pudesse atingir o seu alvo.

– Mas o quê?! – exclamou o homem, esboçando uma face assustada com seus olhos e boca bastante escancarados. – Todas as magias sumiram!

– Eu falei para você não abaixar a guarda! – alertou Ursula para a mulher misteriosa.

– É verdade, no fim você não estava tão errada! Desculpe pelo meu déficit de atenção! – ela respondeu, encabulada.

– O que você fez? Não consigo evocar minha magia! – disse Delterio, fazendo movimentos com os braços, tentando colocar seus poderes arcanos para fora.

– Eu criei uma área em que todo poder mágico é anulado. Vocês imaginaram que as rosas que lancei antes eram um ataque direto, quando na verdade eu estava preparando uma azaração em área. – disse a Bruxa, calmamente.

– Dane-se! – esbravejou o homem que possuía duas pistolas. Ele abaixou o capuz, revelando sua face rígida com queixo largo, cabeça calva e o olho esquerdo com um tipo de monóculo especial preso por um suporte ao redor de sua cabeça. – Minhas armas não precisam de magia para serem usadas! – O homem disse isso apontando apenas uma de suas pistolas para o rapaz que o golpeara, pois sua outra mão segurava as costelas que provavelmente foram fraturadas com a voadora.

O rapaz que estava sob a mira de uma arma de fogo tinha os traços bastante semelhantes à mulher que acabara de declarar que eles eram irmãos, porém, o cabelo dele era bem curto e raspado nos lados. Além disso, usava um cachecol avantajado e da cor vermelha que encobria totalmente o seu pescoço, sendo uma peça que destoava demais de suas vestimentas; isso porque a sua jaqueta larga marrom de mangas curtas, calça comprida preta com bolsos bem grandes e camiseta regata branca não tinham cores tão vivas.

Ele não aparentava nervosismo, mesmo com a arma apontada ameaçadoramente em sua direção, pelo contrário, ele enfrentava o homem armado com um olhar feroz, quase bestial.

– Acha que não vou atirar em você? Pois veja só! – comentou o homem, apertando o gatilho em seguida.

Entretanto, o rapaz desviou do projétil com extrema agilidade, para em seguida investir para cima do inimigo em alta velocidade e em ziguezague, visando um confronto corpo a corpo. O pistoleiro não esperava uma reação tão rápida, por isso se desesperou e começou a atirar múltiplas vezes. Mas os disparos cessariam quando o rapaz alcançou o homem e golpeou a mão do inimigo que empunhava a arma, arrancando-a no ato. Só depois do ataque extremamente rápido que a Bruxa percebeu que as unhas do jovem cresceram repentinamente, projetadas como garras.

O inimigo urrava de dor ao segurar o braço ensanguentado com a mão decepada. Enquanto isso, o jovem se afastava apenas espanando a roupa com as mãos como se estivesse limpando, mas ao invés de poeira, estava na verdade se livrando dos projéteis que o atingira. Os projéteis que se soltaram de suas roupas e caíram no chão estavam totalmente espatifados, como se tivessem colidido contra uma parede de tijolos.

Delterio e os demais olharam assustados para a demonstração de velocidade, força e resistência, sem contar o alto nível de selvageria do rapaz em seus ataques.

– Boa, maninho, mandou muito bem! – comemorou a irmã. O jovem apenas olhou para ela e sorriu, fazendo um sinal de afirmativo com o polegar levantado da mão esquerda.

Dois dos capangas de Delterio ergueram os braços em sinal de desistência. O líder dos Pardos olhou desesperado para seus aliados se rendendo. Sem ter muito o que fazer naquela área impossível de usar magia, ele acabou por também levantar os braços.

– Eu me rendo! – disse Delterio, a muito contragosto.

****

Os Pardos foram conduzidos à prisão pelas autoridades competentes de Eriópolis, com acusações de homicídio, pela morte de Jasper, e prática ilegal em via pública, por conta do duelo até a morte organizado no meio da rua. Todavia, também foram indiciados por vendas de artefatos proibidos e por submeterem à grave ameaça uma menor de idade – com agravante de adulteração de memórias – e uma servidora pública, no caso a Bruxa. Ursula também não saiu impune, por atuar fora da jurisdição da Legião da Magia, teve que passar por um procedimento administrativo disciplinar.

Ursula estava ao lado da mulher que a ajudou no confronto com os Pardos, identificada agora por Alice Flama, e o irmão dela, Elliot Flama. Os três estavam descendo as escadas do prédio suntuoso do Palácio da Justiça de Eriópolis, onde a Bruxa fora intimida a participar de uma audiência.

– Eu não acredito que eles te afastaram do cargo de Bruxa-Guardiã! – exclamou Alice.

– É apenas um afastamento preventivo até que sejam aplicadas as sanções cabíveis. – respondeu Ursula, bastante tranquila. – Praticamente todo servidor em algum momento da carreira já passou por algum processo administrativo.

– Mesmo assim é muito injusto, você revelou todo o esquema daqueles caras! – protestou a mulher, fazendo uma careta exagerada em sua indignação.

Elliot repousou a mão direita no ombro da irmã, fazendo-a voltar a atenção para ele. O rapaz se comunicou com ela através de sinais com a mão e expressões faciais.

– Tem razão, maninho, a vida é bem injusta mesmo! – ela comentou, conformada.

Os três chegaram ao fim das escadas do Palácio da Justiça, encontrando-se diante da praça monumental dos Revolucionários. A praça era bem arborizada e possuía muitos monumentos históricos que enalteciam a luta pela emancipação da cidade, além de contar também no centro da praça com o obelisco memorial às vítimas do atentado do dragão Nekros na guerra contra os sanguinários há mais de dez anos. Mas a Bruxa não estava interessada em um passeio histórico ou visitar o memorial. Tendo cumprido a ocorrência naquele lugar, ela planejava algo maior. Sendo assim, a mulher encobrira todo o corpo com a sua capa carmesim cheia de plumas, pronta para sair dali definitivamente.

– É aqui que os nossos caminhos se separam, obrigada por toda a ajuda prestada, adeus. – disse Ursula, fazendo um singelo aceno com a mão, virando de costas e começando a se afastar dos irmãos ao andar pela enorme praça adiante.

– Como assim adeus?! – exclamou Alice, correndo para alcançar a Bruxa e quase atropelando um grupo de excursionistas que passava visitando o local pelo seu valor histórico representativo. – Achei que fossemos uma equipe, uma espécie de time! – ela disse isso enquanto era criticada pelo grupo que quase se viu refém de sua impetuosidade.

– Só porque me ajudaram numa briga e testemunharam no caso, chegou a essa conclusão? – indagou a Bruxa.

– Então não vai rolar nem mesmo uma indicação para a Legião da Magia ou algo do tipo? – Questionou Alice, gesticulando bastante.

– Não é assim que funciona o processo seletivo para a Legião da Magia. – Retorquiu Ursula.

– Mas nós salvamos a sua vida! – bradou a mulher, com o seu irmão a segurando para acalmá-la.

– Você quase me atingiu com aquela bola de fogo, e seu irmão, apesar de ter sido bem útil contra o inimigo armado, quase me gerou mais problemas com o estado em que deixou o sujeito. – Retorquiu a Bruxa. – Mas vocês ajudaram no impacto psicológico, o que ocasionou a rendição rápida dos inimigos, além de colaborarem como testemunhas no caso, por isso os agradeci. – Ela permanecia de costas, andando na direção oposta aos irmãos.

– Você teve muita sorte por estarmos na região e pelo meu irmão ter uma audição aguçada, escutado assim toda a confusão e a conversa de vocês! Porém, tudo o que tem a oferecer em troca é um tapinha nas costas? – disse Alice, alterando a voz cada vez mais.

– Seu irmão é realmente alguém bem incomum. – Constatou Ursula, para a grande surpresa de Alice. – Só tomem mais cuidado com o seu déficit de atenção e a ferocidade dele. Agora, por favor, sigam o seu caminho! – ela pediu, olhando para trás seriamente, fazendo Alice parar de segui-la.

– Como quiser, sua ingrata! – vociferou a mulher. – Fique sozinha com a sua arrogância! Eu e meu irmão não precisamos de mais ninguém mesmo nesse mundo!

****

Depois de se desvencilhar dos irmãos, a Bruxa Carmesim se dirigiu para a região rural de Eriópolis, a fim de visitar uma vinícola muito antiga da região. Ela foi imediatamente recepcionada por uma representante responsável pelo passeio turístico guiado realizado nas instalações.

– A senhorita tem visitação agendada? – perguntou cordialmente a representante.

– Por mais que se agende, o futuro é algo sempre incerto. – respondeu a Bruxa, de forma categórica, com uma resposta aparentemente ensaiada.

A representante pareceu ter entendido muito bem a finalidade da resposta da mulher, pedindo cordialmente que a acompanhasse na visitação guiada. As duas andaram pelos salões enormes da vinícola com incontáveis pipas de vinho feitas de carvalho escuro com vários metros de altura, enquanto a representante contava a história do lugar e o complexo e demorado processo de vinificação. Porém, as coisas começaram a ficar interessantes para a Bruxa quando a representante finalmente chegou na explicação do processo de amadurecimento do vinho, guiando-a até uma adega subterrânea relativamente escura e com vários barris de madeira empoeirados.

– E é aqui onde a nossa visitação guiada termina, espero que encontre todas as respostas que procura! – disse a representante, realizando uma reverência. Após isso, ela coloca a mão esquerda em um barril aparentemente aleatório empilhado junto com vários outros.

Um barulho de rocha deslizando e engrenagens ecoou naquela adega iluminada apenas por alguns archotes, revelando uma passagem secreta que se abriu na parede ao lado da última pilha de barris. A Bruxa apenas reverenciou em agradecimento à mulher que a guiara até ali, para em seguida adentrar a passagem estreita.

Ela teve que descer um trecho bastante longo de escadas de pedras num corredor estreito iluminado por archotes que acendiam magicamente com a proximidade da mulher. As chamas que iluminavam o seu caminho se apresentavam na tonalidade azul, o que não era por acaso, pois aquele ambiente fora encantado com uma magia muito especial conhecida como Arcana Cordis, que servia para revelar o caráter real das intenções mais íntimas de quem usasse aquele corredor. Se as intenções da Bruxa não fossem boas, as chamas apresentariam uma tonalidade vermelha ao invés de azul.

No final das escadas havia uma câmara com um portão de madeira trancado com um archote apagado ao lado. A Bruxa sabia exatamente o que fazer. Ela soltou da parede um dos archotes com as chamas azuis do corredor de onde veio e depositou o fogo no archote apagado que imediatamente acendeu. A porta emitiu vários sons de engrenagens e abriu num ranger característico, sendo a chama azul a única chave capaz de destrancá-la. Era compreensível essa medida de segurança, afinal, ninguém queria pessoas mal-intencionadas naquele lugar extremamente secreto.

Ao adentrar a porta, Ursula se deparou com um salão bem iluminado, com várias cortinas e enfeites psicodélicos com cores vibrantes e que confundiam a visão, além de alguns adornos bem peculiares, como pequenos crânios pendurados que emitam sons como sinos de vento. O lugar cheirava a incenso e a poções mágicas que nem mesmo a Bruxa conseguira distinguir. No entanto, o foco de interesse da Bruxa recém-chegada estava no centro daquele recinto, onde havia uma pequena mesa redonda com uma mulher que aparentemente estava a aguardando.

– Por favor, sente-se, Ursula Maxouver! – convidou a mulher, apontando para uma cadeira vazia de frente para a mesa.

O mais estranho de tudo é que a mulher sequer podia enxergar, pois suas pálpebras estavam costuradas de um jeito bem macabro. Tratava-se de uma mulher idosa bem miúda e corcunda, de aspecto debilitado devido ao seu rosto e mãos ossudas. Ela também apresentava inúmeras cicatrizes em seus braços desnudos e alguns dedos faltantes. No entanto, a Bruxa não se incomodava com a aparência daquela mulher em si, ela apenas se sensibilizava com as marcas impressas em seu corpo, representando todo o sofrimento que ela enfrentara na vida. Ursula aceitou imediatamente o convite e se sentou à mesa.

– Aproveitei que estava na região e resolvi visitá-la, Oráculo. – disse a Bruxa.

– É sempre produtivo receber a visita de outra pessoa que possui a visão, minha jovem! – exclamou a idosa, entusiasmada.

– Apenas consigo enxergar o passado, nunca o futuro. – respondeu Ursula.

– A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão criada por mentes que racionalizam demais o fluxo do tempo, minha jovem! – explicou a anciã. – A verdade é que o tempo funciona muito mais como um rio, com sua nascente, leito, afluentes, subafluentes; apresentando infinitas confluências, ou seja, a junção de vários fluxos de água que ao se reunirem formam novos rios.

– Bom, eu apenas gostaria de saber o que me aguarda. Em tempos tão obscuros, o que mais temo é o futuro! – disse Ursula, numa forma de desabafo.

– Pois não tema o futuro, ele é algo desconhecido para os temerosos, inalcançável para os fracos, no entanto, para os corajosos, o futuro é apenas uma nova oportunidade! – respondeu a anciã, como se conseguisse enxergar plenamente os dilemas que Ursula enfrentava naquele momento. 

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