Randolph
Diomhair era uma extensa cadeia de florestas e era domínio das devas. O Rio Fiadhach fazia uma fronteira natural do outro lado e havia uma única ponte para atravessá-lo, na única passagem que tinha sido aberta na floresta há muito tempo, em um acordo feito pelo rei humano com a avó de Lyanna, senhora da floresta na época. A floresta cortava as terras do Reino de Ridirean quase ao meio, acompanhando o rio desde a sua nascente nas montanhas de Ceann An-Ear, até o seu deságue no litoral de Ceann An-Iar.
As duas cavalgaram no lombo de Pérola até a margem da floresta no extremo oeste, aos pés das montanhas, mas Lyanna disse que não entrariam por ali e explicou que em alguns lugares, a floresta era hostil até mesmo com as devas de outras regiões, logo, era melhor cavalgarem até a região da casa da senhora da floresta, onde plantas e animais a respeitariam, por ser filha dela. Por toda a extensão da mata, as árvores eram muito próximas umas das outras, de modo que parecia impossível, até para alguém pequeno como Sylv, passar entre elas. A jovem entendia que era uma espécie de magia, mas ficou curiosa para saber como era possível.
Após mais um tempo de cavalgada, elas chegaram em uma região mais segura e decidiram acampar. Lyanna preferiu não entrar na floresta, mesmo sendo o território de sua mãe. Não queria encontrá-la, ou poderia ficar mais difícil seguir viagem com Sylv e, estendendo a mão espalmada, ela deixou que uma borboleta pousasse suavemente nela e, após um tempo, voasse novamente. Sylv não entendeu o que tinha acontecido, mas um tempo depois, uma bela égua de pelos vermelhos surgiu por entre as árvores, que se afastaram para que ela pudesse passar. Uma borboleta, que parecia ser a mesma que esteve na palma da mão de Lyanna, voava à frente dela, como se estivesse guiando-a até ali, deixando claro que tinha ido buscar a égua à pedido da deva.
Aquela era Scarlett, a égua que Lyanna tinha mencionado. Era magnífica. Um pouco mais alta que Pérola e tinha uma crina volumosa, que chamava mais atenção devido ao castanho avermelhado vivo dos seus pelos. A beleza de Pérola não ficava para trás, mas, mesmo assim, Sylv pode perceber que a chegada de Scarlett a deixou meio enciumada, ainda mais ao ver que Alísio ficou bem empolgado com a recém-chegada. Lyanna explicou que Alísio e Scarlett eram da mesma manada e isso explicava porque Pérola se sentiu ameaçada na preferência do garanhão.
— Cante alguma coisa para nós, Sylv — Lyanna pediu, enquanto acendia uma fogueira com a pederneira —, se você carrega esse instrumento, imagino que saiba trocá-lo.
— Esse bandolim era do meu pai — a jovem respondeu, com um olhar nostálgico, enquanto segurava o instrumento —, foi a única herança que ele me deixou e antes de encontrar Voughan, era o meu único companheiro de viagens e minha única fonte de renda.
— Então você é uma barda? — a deva perguntou surpresa.
— Uma barda que canta apenas as histórias que vê em seus sonhos — Sylv respondeu decaindo o semblante —, e quem as ouve pensa que estou inventando tudo. Os homens nas tavernas buscam canções de batalhas e aventuras, então nunca ganhei mais do que o suficiente para alimentação e estadia.
— Pois eu gostaria muito de ouvir as suas canções enquanto preparo o nosso jantar — Lyanna disse, sorrindo simpaticamente.
— Eu pensei em uma canção agora à pouco — a barda disse, sorrindo —, vou tentar cantá-la, mas como é a primeira vez que canto e toco ela, pode ser que não saia legal.
Após ajustar algo nas cordas do bandolim, Sylv começou a tocar uma melodia suave e triste, dedilhando habilmente uma bela introdução, até que a voz dela saiu, bela e afinada. Lyanna sorriu ao ver o rosto da barda se iluminar. Tocar e cantar parecia ser uma paixão para Sylv e a voz dela, por si só, já valia a pena ser ouvida.
Do alto da colina ouvimos a explosão
E o fogo vermelho a subir
Com o coração partido eu fiz essa canção,
Mas nós precisamos seguir!
Mantendo a promessa em nosso coração,
Nos apressamos a ir,
Sabendo que a esperança jamais será em vão,
Nós precisamos seguir!
E mesmo que difícil seja acreditar
Nós juntamos forças para continuar
Pois enquanto fôlego ainda existir
Nós iremos seguir!
Através dos montes, cavalgar veloz
Mesmo que a dor seja atroz
Na lembrança ecoa o som da sua voz
Dizendo que se juntará a nós
— Bravo! — Lyanna exclamou, batendo palmas — Que canção maravilhosa e que voz linda, você tem!
— Você só está sendo gentil — Sylv disse, meio envergonhada com os elogios.
— Não seja modesta, Sylv — a deva disse sorrindo —, olha só como alguns animais se aproximaram ao ouvir o seu canto. Você é muito boa nisso e, a sua capacidade de compor, é incrível!
Sylv não tinha reparado na quantidade de animais que tinha se aproximado delas enquanto ela cantava. Os animais a olhavam como se esperassem a próxima canção e eram uma plateia diferente das que ela estava acostumada, mas ela não se intimidou e continuou tocando e cantando, até que Lyanna disse que a comida estava pronta.
— Me diz uma coisa, Lyanna — Sylv quebrou o silêncio enquanto elas comiam —, porque você deixou a sua casa? Você parece respeitar muito a sua mãe e esta floresta, então porque foi morar em Duhars perto daquela gente preconceituosa?
— Nem eu sei o porquê, na verdade — ela respondeu, pensativa —, mas acredito que esse poder que nós temos deve ser usado para algo maior que nós mesmos, então não podia ficar escondida nessa floresta. Os humanos não merecem, mas eles são fracos e falhos, então é comum cometerem tantos erros. Mas dentre eles existem os que são bons também e, esses, são os que eu quero ajudar com os meus dons.
— Eu te entendo — a mais jovem disse sorrindo — e quero ser como você. Eu não sei como funcionam as minhas visões e sonhos, mas se são mesmo um dom, eu quero usá-los para ajudar os mais fracos.
— O que foi, Lyanna? — Sylv continuou, vendo que a companheira tinha se levantado e estava em posição de luta, mas recebeu de volta apenas um sinal para que ficasse em silêncio e se colocasse atrás dela.
— Estamos sendo observadas — a deva sussurrou, enquanto jogava terra na fogueira, a fim de apagá-la —, junte as suas coisas rápido, vai ser mais difícil nos enxergar no escuro.
— A menos que o observador seja um animal com hábitos noturnos — uma voz calma e cadenciada disse, vindo das árvores —, nesse caso, apagar o fogo só melhoraria a sua visão.
Olhando para onde Alísio estava, elas viram uma figura negra semelhante a um pássaro, que voou e pousou sobre o lombo do garanhão. O fato do cavalo não mostrar resistência, deixou Lyanna mais tranquila quanto às intenções do recém chegado, mas ainda assim, manteve a postura e esperou que ela falasse outra vez.
— Ainda assim — continuou o estranho, que depois de olharem bem, viram se tratar de um corvo —, apagar a fogueira é a decisão mais acertada, até porque vocês precisam seguir viagem imediatamente.
— E porque ouviríamos conselhos de um estranho — Lyanna perguntou, sem relaxar a postura e colocando-se à frente de Sylv como proteção.
— Porque vocês não tem escolha! — o corvo respondeu e voou para mais perto delas, pousando agora sobre um tronco que estava iluminado pelo luar — O meu nome é Randolph, mestre dos corvos mensageiros e…
— O quê é isso no seu bico? — Sylv perguntou, interrompendo-o — É engraçado.
— Parecem dois olhos de vidro — Lyanna comentou, abafando um riso.
— Ah, mas eu mereço! — resmungou o corvo, revirando os olhos — Até aqui tenho que ouvir a piada do Corvo de quatro olhos!
— Como eu dizia — ele continuou, tentando ignorar as risadas abafadas das duas —, sou mestre dos corvos mensageiros e o mestre Voughan me pediu para ficar de olho em vocês, mas como eu era o corvo falante mais próximo daqui, tive que vir pessoalmente avisá-las.
— Você então deve saber o que aconteceu com ele — Sylv disse, deixando cair o semblante ao se lembrar de Voughan —, já que é tão bem informado.
— Deve estar falando da explosão do Javali Dourado — Randolph respondeu orgulhoso —, eu sempre fico sabendo de tudo o que acontece nesses reinos, pois tenho muitos olhos por aí.
— Tá bom, eu concordo que dei a brecha para a piada ao falar dos muitos olhos — ele disse, levando uma das asas até a testa, enquanto as duas riam, agora sem abafar —, mas não temos tempo para isso…
— Merda! — ele exclamou interrompeu a si mesmo ao ouvirem um uivo assustador não muito longe de onde estavam — Isso é um chamado dos Madhai.
— O que é um Madhai? — Sylv perguntou para Lyanna, vendo que a deva também ficou apreensiva.
— São feras terríveis e caçadores implacáveis — Lyanna respondeu, se apressando em juntar as suas coisas —, temos que nos apressar. Vai ser difícil conseguir despistá-los.
— Precisamos chegar à passagem de Os-Nàdarrach — Randolph disse, enquanto elas montavam os cavalos —, ela não fica longe daqui se seguirem para oeste e, a magia de proteção que existe lá, não permite que seres malignos passem pela ponte.
— Se seguirmos diretamente para oeste, nós passaremos por um grande descampado e lá seremos alvos fáceis para os Madhai — Lyanna falou, enquanto ajudava Sylv a recolher as coisas.
— Não existe outra opção — o corvo exclamou — Quaisquer outros caminhos que tomarem só irá atrasá-las.
— Se ao menos tivesse um jeito de passarmos por um dos flancos da floresta — Sylv resmungou baixinho, como se não tivesse certeza das próprias palavras.
— Perfeito, Sylv — Lyana exclamou confiante, como se as palavras da jovem tivessem lhe lembrado de algo —, isso pode dar certo!
— Poderia dar certo se tivessem a bênção da senhora da floresta, ou da Deva primordial — Randolph disse, com o ar acadêmico de quem tinha um vasto banco mental de conhecimento —, mas não parece ser o caso.
— Ainda não — Lyana ajudou Sylv a montar em pérola e as guiou até perto das árvores, sendo seguida por Alísio e Scarlett que carregavam as bagagens. Randolph voou até lá e poucos novamente em Alísio, já que nem ele ousava tocar nas árvores de Diomhair —, mas eu posso dar um jeito!
Lyanna olhou para Sylv e Pérola com a determinação de quem sabia o que deveria ser feito e, mergulhando em suas memórias, buscou uma oração que ouviu a sua mãe recitar várias vezes. Ela ainda era apenas uma criança, mas sabia que aquelas palavras eram usadas para conjurar a bênção da Senhora da Floresta. Com gestos fluidos e palavras sussurradas em uma língua antiga, ela lançou um feitiço sobre a jovem e sobre Pérola, envolvendo-as em uma aura verdejante. A energia da floresta pulsava ao redor delas, e as árvores pareciam inclinar-se em reverência à magia que estava sendo tecida.
Com a benção lançada, Lyanna ordenou que Sylv e Pérola fossem em direção à floresta e se aproximassem ainda mais das árvores. Randolph voava sobre eles, observando atentamente cada movimento dos Madhai que se aproximavam rapidamente, protegidos pelas trevas da noite e viu quando as árvores se afastaram para abrirem caminho para as duas, que foram seguidas pelos outros após Lyana montar em Scarlett. Um corredor de árvores se abriu, indicando um caminho único que seguia cheio de curvas para oeste.
Assim que entraram na espessa vegetação da floresta de Diomhair, uma sensação de proteção os envolveu. O ar estava impregnado com o cheiro de musgo e folhas úmidas, e os sons da floresta sussurravam ao redor deles, como se os próprios espíritos das árvores estivessem os protegendo. No entanto, a ameaça dos Madhai não desapareceu. Os rugidos distantes das feras ecoavam entre as árvores, enquanto eles avançavam rapidamente pela floresta. Sylv sentia o coração bater descompassado no peito, a adrenalina pulsando em suas veias enquanto ela se agarrava firmemente à crina de Pérola.
Lyanna liderava o grupo com destreza, montada em Scarlett, que desviava habilmente dos obstáculos naturais e dos ramos baixos que se projetavam em seu caminho. Pérola a seguia de perto, seus cascos batendo no chão com determinação enquanto ela corria pela mata transportando Sylv, que se segurava firmemente para não se desequilibrar e cair e Alísio vinha logo atrás, não que fosse mais lento, muito pelo contrário, ele era o mais veloz dentre os presentes, mas por cavalheirismo, deixava as damas irem na frente, enquanto protegia a retaguarda.
Os Madhai estavam cada vez mais próximos, suas formas sinistras movendo-se entre o vão das árvores, criando sombras fantasmagóricas e intimidadoras. Sylv podia ouvir o som de suas garras raspando contra as árvores, o cheiro acre de sua saliva envenenada pairando no ar, carregado pelo vento.
A corrida pela vida se desenrolava em meio à escuridão da floresta, com cada momento trazendo uma nova onda de medo e tensão. Mas, mesmo diante da ameaça iminente, o grupo continuava sua fuga implacável em direção à segurança da passagem de Os-Nàdarrach, com a esperança de que a magia da floresta os protegesse até lá.
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