Capítulo 4 - Estações

Continuamos na caverna até a inundação do setor das árvores secas acabar. Faço um curativo em nossos ferimentos por causa da queda que tivemos fugindo das bolas de fogo. Além de ter ralado os joelhos e cotovelos, tenho arranhões por todo o corpo, sem contar a dor, é claro. Peter sofreu alguns cortes mais profundos que os meus pelos braços e pernas. O local onde rolou continha galhos secos. Ele não deu muita sorte. O kit de primeiros socorros está sendo uma das melhores coisas que eu já consegui na vida. Tem um vidrinho de soro, uma pomada, um pouco de algodão, umas gases, uma agulha com um rolinho de linha e um outro vidrinho com um líquido que eu não sei muito bem o que é.

Esse tempo que passamos aqui na caverna serviu para me fazer conhecer melhor sua vida. Peter me conta sobre seus familiares. Sua mãe, Cíntia, teve três filhos. A mais velha, Clara, foi colhida para os jogos há umas dez edições atrás e morreu no banho de sangue. Quando Peter completou oito anos, começou a trabalhar numa feira da cidade para ajudar sua mãe. Mesmo tendo contas para ajudá-la a pagar em casa, seu maior objetivo era juntar dinheiro. As populações mais favorecidas financeiramente costumam pagar uma taxa para eliminarem da colheita o nome de seus filhos. Essa taxa é extremamente cara e o sonho de meu aliado era conseguir juntar o dinheiro para quando sua irmã mais nova atingisse a idade mínima para os jogos, tivesse seu nome retirado da colheita. No próximo ano ela já poderá ser colhida.

Peter pegou todo o dinheiro que conseguiu acumular nos anos que se passaram e entregou a sua mãe no dia que foi selecionado como tributo. Parecia que havia pressentido o que o destino lhe preparara e queria confortar a progenitora. Perder um terceiro filho para os jogos seria extremamente doloroso. Claro que não conseguiu juntar uma quantia que livrasse a pequena Lorelay desse espetáculo sanguinário até que atinja os dezoito anos. Mesmo assim, pelo menos enquanto for novinha não precisará passar por isso. Talvez a garotinha faça como seu irmão fez um dia e consiga juntar dinheiro para lhe assegurar mais alguns anos, porém isso não é fácil. Ele se empenhou por toda a juventude. Não tinha uma vida social comum como os jovens de sua idade; sua vida se resumia ao trabalho. Isso me tocou profundamente, pois é uma atitude que eu nunca havia visto antes.

— Meu sonho era poupá-las.

— Não fale assim — o repreendo. — Não fale meu sonho "era". Você ainda está vivo e é um puta sonho!

— Pelo menos por enquanto, não é?! — Abaixa a cabeça e faz como se estivesse desenhando algo imaginário no chão antes de voltar a falar. — Eu dediquei minha vida para conseguir ajudar Lorelay e pretendia continuar fazendo isso até que ela estivesse completamente livre. Mas eu fui colhido e não poderei cumprir.

— Pelo menos você fez sua parte, Peter! Não se culpe por isso.

— Claro, mas era algo que eu havia prometido pra mim mesmo quando era criança. Com oito anos eu comecei a trabalhar na feira como disse e conforme fui crescendo, procurei todo tipo de trabalho possível. — Sua voz é embargada por uma crise de choro. — Eu fiz de tudo nessa vida; coisas que você não poderia imaginar. — Ele fixa o olhar em alguma coisa. — Enfim, espero que tenha valido a pena sacrificar amizades, amores, noites de sono e até mesmo minha saúde.

Fico um pouco preocupado com esse "eu fiz de tudo nessa vida; coisas que você não poderia imaginar".

— E sua mãe permitia isso? Você era muito novo.

—Tinha seu trabalho e levava Lorelay. Só voltavam à noite. Enquanto isso eu dava o meu jeito de conseguir dinheiro.

Apoio uma mão em seu ombro esquerdo como se dissesse que estou aqui, que estamos juntos nessa.

— Não sei o que seria se eu não tivesse encontrado você, cara! — Ele diz enxugando as lágrimas.

Não sei o que responder.

Ficamos em silêncio por um tempo.


Com as águas retornando ao lago no outro setor, a lava do chão fora da caverna também começa a desaparecer. No lugar do líquido vermelho flamejante, novamente está uma crosta acinzentada. Como havia pensado, a floresta está devastada e isso torna nossa caminhada ainda mais difícil, pois tem árvores caídas pra tudo que é lado.

— Deve faltar algum tempo ainda até o horário normal de almoço, não acha?

Minha barriga ronca com sua questão.

— Precisava mesmo falar sobre comida agora? Eu tô com uma puta fome!

A última refeição que tive foi alguns minutos antes do voo para a arena. No dia da colheita, apesar de não estar literalmente com medo, estava um pouco tenso e, ao contrário de muitos, eu não como quando estou tenso. Por falar em dia de colheita... Que inferno esses dias. Todo ano a mesma coisa: nos encaminhamos até a praça, horas em filas, colocamos nosso sangue em uma maquininha que capta todos os nossos dados e por último a cerimônia de chatice:

Os dias escuros, o acordo dos jogos vorazes com a derrota dos distritos contra a capital, as setenta e cinco edições, o recesso de um século dos jogos por conta de governantes "ignorantes" (nesse período, a revolução dos distritos contra a capital por conta de uma atitude de Katniss Everdeen é ignorada durante o discurso) e, por último, o triunfal retorno dos Jogos Vorazes.

Todo ano a mesma puta chatice, com o mesmo puta discurso do prefeito de cada distrito, com o mesmo puta vídeo mostrando os dias escuros e blábláblá. Todo ano tinha vontade de dar um tiro na minha própria cabeça! Queria ser do Distrito Treze nessas horas, pois não precisam enviar tributo algum. Sorte deles que fizeram esse acordo com a capital, afinal, a capital não seria burra de ir novamente contra eles, seu armamento pesado e sua fama por incitar uma rebelião!

Depois de me despedir de minha mãe e do meu amigo, entrei no avião rumo a capital. Ao chegar, fui levado para um quarto, onde fiquei por um bom tempo. Só conheci os tributos do meu distrito por que os vi na colheita. Nesse confinamento pré jogo até que serviam bastante alimento — claro, é a capital com suas comidas exuberantes —, mas eu preferi não me empanturrar por que sabia que ficaria em "dieta" aqui na arena. Não queria sofrer de abstinência alimentar! Tem um lado positivo nisso: minha família nunca teve mesas fartas, então, estou acostumado a racionar comida. Isso não é um problema aqui.

O dia hoje está bastante quente. Isso nos faz pensar mais ainda em beber água com consciência. Nossa garrafa está quase ficando pela metade. Não podemos evitar alguns goles porque com essa temperatura desidrataríamos rapidamente.

— Quando eu vi o lago do setor das árvores secas, eu logo pensei que não teríamos problemas com sede. Não acho que tá muito limpa depois de inundar duas vezes a floresta! — Faço cara de nojo ao falar.

— Se você não estiver preocupado com pegar umas doenças, vai com tudo! — Ele sorri. — Afinal, temos mortes mais importantes pra considerar.

Nesse ponto ele tem razão. Não sei nem como estamos conseguindo ter uma conversa descontraída sabendo que tem várias pessoas caçando a gente. Acredito que estou mais tranquilo por que na minha cabeça a maioria dos tributos está no setor da mata fechada. Posso estar fodidamente errado, mas fazer o que!

— Seria bom ter mais um aliado, sabia? Iria dar uma confiança maior em relação a nos defender.

Ele concorda comigo e argumenta:

— O único problema é confiar nas pessoas dessa arena. Com a gente foi diferente por que você já chegou me largando uma facada e aí, pelo menos no meu caso, era confiar em você ou morrer. Eu preferi confiar! — Ele mantém o olhar em nosso caminho enquanto fala. — Depois que você teve todo o trabalho para fechar o ferimento, me ajudou a fugir da lava e a me defender daqueles dois caras, foi inevitável. — Agora seu olhar me fita. — Pode não ser recíproco, cara, mas eu confio em você.

Confesso que é como se eu levasse um soco no estômago agora.

Puta merda!

Eu sou programado para desconfiar, só que, realmente, confio nesse cara e isso é um problema. Eu sei que ele que deveria ter um pé atrás comigo, já que eu o esfaqueei, mas acontece o contrário e essa é a maior prova de que ele não é o inimigo aqui.

— Eu também confio em você, porra!

Damos uma batida de mão. Acho que agora posso chamá-lo de amigo, além de aliado!


Chegamos na divisa dos setores e eu fico boquiaberto com o limite entre um setor e outro. É como se houvesse uma linha imaginária dividindo essas duas áreas. O discreto mato que se estende por toda montanha vulcânica se encontra com as folhas secas caídas ao chão, fazendo um limite perfeito. Essas duas partes não se misturam.

Andamos para a nossa esquerda até chegar na parte onde os quatro setores se encontram. Há uma rocha arredondada bem no centro da arena e cada parte de sua circunferência passa por um setor. Percebo limite entre onde estamos e a área da neve. Nem mesmo um floco de neve cai no nosso lado. É como se tivesse uma cortina transparente entre essas duas áreas. É magnífico.

Estico um braço, fazendo com que minha mão ultrapasse o limite do setor. Um floco de neve cai na palma da minha mão e eu posso sentir sua maciez.

É realmente neve.

Nesse exato momento eu estou com o corpo completamente suado por conta do calor desse lugar e uma das mãos segurando um floco de neve.

Surpreendente!

Mesmo acostumado com o clima mais frio, meu braço parece que vai congelar. O recolho, fazendo meu membro superior esquentar rapidamente.

Circulamos a rocha central da arena, passando pelo setor das árvores secas até chegarmos na mata fechada. É, agora estamos realmente em perigo. A maioria dos outros tributos provavelmente está aqui.

Ou seja, fodeu bem fodido!

— Peter, é o seguinte — sussurro. — Presta atenção em tudo, até mesmo no topo das árvores.

— Certo. Sinceramente, eu tô mais focado em encontrar comida agora.

— Comida? Você tá me sacaneando? A gente tem outras prioridades agora, caralho!

— Meu estômago diz o contrário... Você tá ouvindo?

— O que? — esbugalho os olhos e giro o pescoço procurando algum inimigo.

— Minha barriga roncando!

— Ahh, vai se foder, Peter! — Dou um soco em seu ombro.

— Cara, deve já ser meio dia.

Tanto aliado pra eu encontrar e olha só... Me aliei a um mais fodido que eu! E o pior é que ele é muito barulhento, por isso preciso estar sempre o alertando sobre amaciar os passos ou não esbarrar em alguma árvore, ou se assustar com algum barulho suspeito...

Avisto uma árvore de amoras.

Amoras...

Uma das frutas mais perigosas que conheço. Além de ter uma frutinha venenosa muito parecida, foi com esse pequeno alimento que Katniss Everdeen acendeu uma chama de revolução na população que levou a uma guerra a qual matou milhares de pessoas.

E tudo foi em vão!

Estou eu aqui em uma outra arena, em uma outra edição, em um outro espetáculo sanguinário...

O jogo não acabou.

O jogo nunca acaba!

— Vamos logo encontrar alguma fruta e água para podermos nos esconder.

Ele concorda comigo.

Parece que o destino nos ajudou um pouco, pois avisto uma bananeira. Dessa vez Peter também avista o fruto porque me cutuca e aponta para o local. Andamos de forma cautelosa, prestando atenção a cada passo para não fazer barulho com absolutamente nada.

O canhão dispara e toda vez que essa porra toca eu dou um pulo.

Nos aproximamos da bananeira. Como umas cinco bananas quase que de uma vez só. Não posso dizer o mesmo de meu aliado porque ele come quase que um cacho inteiro!

— Você vai passar mal, doido — digo de boca cheia.

Corto uma dúzia de bananas do cacho e guardo na mochila. Precisamos achar água, pois a nossa garrafa acabou de esvaziar nesse nosso "almoço". Não tinha como racionar mais do que havíamos feito porque o setor que estávamos era absurdamente quente. Na verdade, é possível que nós dois tenhamos desidratado um pouco.

Aqui até que o clima é mais agradável!

Que paradoxo esses setores.

— Caralho, Peter. Como a gente não se ligou nisso antes?

— No que?

— Na arena.

— Como assim? — questiona jogando uma casca de banana no chão.

— Tava pensando aqui, aí de repente me deu um puta estalo na mente.

— Fala logo. Para de enrolar!

— Então, se liga: um setor frio; um quente; um onde as folhas das árvores caíram e o clima é mais agradável; e outro com árvores frutíferas, flores, clima meio quente também... Percebeu?

— Porra nenhuma!

Sua cara de paisagem parece me perguntar: "que merda é essa que você tá falando"?

— É uma referência às quatro estações do ano! — o interrompo. — O setor do verão com o vulcão; inverno com a montanha de gelo; outono com as árvores secas e primavera com essa mata frutífera.

— Caramba! — Ele arregala os olhos e sua boca forma um "o" demonstrando surpresa. — Então o jogo pode ter começado com um grupo em cada setor, não acha?

Sua questão é válida, já que havia poucos tributos no vulcão.

— Pensando bem, é possível que tenham começado somente nos setores: verão, inverno e outono — completo. — Porque só esses setores tinham armadilhas. Assim eles obrigam todos a virem para o setor primavera. Faz sentido, não faz?

— Claro que faz. Acho que é isso mesmo. — Peter sussurra movimentando os dedos das mãos. Parece estar fazendo alguma conta. — Pensa comigo: São trinta e seis tributos ao total. — Confirmo seu comentário. — Então, cada um desses três setores – sem contar com o primavera – pode ter iniciado com doze tributos.

— Exatamente. Contei mais ou menos doze mesmo na cornucópia. — De repente sinto como se acendesse uma luz em minha mente. Visualizo a cena do presidente Flúlvio discursando sobre o Massacre Quaternário em minha televisão. — Peter? — Ele arqueia as sobrancelhas como se dissesse para eu continuar. — Lembra do discurso do presidente?

— Obviamente não. Quem presta atenção naquilo? — Ri ao comentar.

— Teve uma hora que ele comentou sobre épocas do ano. Sempre tem referências do jogo nos discursos, mas não havia me atentado a essa parte, enfim, você devia se atentar a isso também.

— Eu tinha coisas mais importantes para me atentar além dos discursos chatos da capital. E, agora, talvez nem precise me atentar a mais nada. Não sei se sairemos vivos daqui!

Infelizmente tenho que concordar. Precisamos achar água para podermos nos esconder em uma das árvores até todos se matarem aqui em baixo.

— Para, para... — Coloco a mão a frente de Peter para ele não se deslocar mais. — Ouvi alguma coisa e acredito que não foi seu estômago dessa vez.

Ele engole a seco.

Abaixamos para evitar que sejamos vistos, nos arrastamos até uma moita e nos encolhemos em baixo das folhas. O barulho de passos aumenta e é quando alguém cai de cara no chão em frente a moita a qual estamos. Outros vêm atrás dele.

— Você não vai conseguir fugir de nós — diz uma moça enquanto seu companheiro ri de forma escandalosa.

O garoto se prepara pra levantar, mas uma lança atravessa sua perna. Ele grita, agonizando e nós assistimos tudo silenciosamente. Infelizmente não podemos ajudá-lo. Peter aperta as mãos sobre a própria boca com medo de soltar algum grunhido de desespero. Ainda com a lança em sua perna, ele gira o corpo para visualizar seus inimigos. É quando seu olhar encontra o nosso através de um espaço entre as folhas.

Ele estica as mãos em nossa direção, prestes a suplicar por ajuda. Sua voz falha e os dois tributos continuam tirando sarro da agonia de sua caça. O garoto tenta novamente falar algo, mas é impedido por dois facões que o ruivo alto crava em seu pescoço em forma de "x". A garota, também ruiva, se aproxima do companheiro e o beija ao som do "boom" do canhão. Após isso cada um segura em uma das pernas do tributo morto, puxando com força até que sua cabeça seja arrancada de seu pescoço por conta das lâminas que rasgam sua garganta.

A cabeça do tributo continua ali, parada, nos encarando... Encarando nossa covardia em não lhe ajudar enquanto sangue jorra de seu pescoço.

A cena foi brutal. Eu nunca havia visto algo tão animalesco e cruel em toda a minha vida. Uma lágrima percorre meu rosto e Peter paralisa totalmente.

— Vocês já podem sair. O show acabou.

A ruiva diz e o garoto complementa:

— Eu acho que está apenas começando, maninha!

Os dois soltam uma risada intimidadora.

Puta que pariu! Fomos vistos...

Iaí, tributos!

Confesso que fiquei preocupado com o final desse capítulo! Mais alguém? kk

Espero que estejam curtindo o livro. Estamos caminhando para o final da primeira parte. Estou bastante animado com a história e espero que também estejam!

Preparados pra mais sangue? Devo adiantar que o próximo capítulo é tenso e um pouco pesado. 

Preparados! hehe

Não esqueçam o voto amigo!

Nos vemos no próximo capítulo...

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