I.


O barulho dos corredores era ensurdecedor. Risos estridentes, lockers batendo, sapatos rangendo contra o chão encerado. A escola de Ely Memorial High pulsava com o caos controlado do início das aulas. Clarence Turner Ellis caminhava por entre a confusão com um desdém mal disfarçado, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco preto surrado.

Adolescentes, esses predadores sociais em miniatura, sempre encontravam maneiras de marcar território. Ali, o campo de batalha era delimitado pelas mochilas de marcas caras, pelos celulares piscando com notificações, pelas conversas abafadas de quem achava que o mundo inteiro girava em torno do baile de formatura ou do próximo jogo de futebol.

Clarence via tudo isso e sentia uma mistura de tédio e repulsa. O reino dos populares governava como sempre, uma tirania boba onde o rímel perfeito e o corte de cabelo do momento decidiam quem era digno de atenção.

"Rainhas e reis de uma sociedade de plástico," ela pensou, os olhos azuis como gelo varrendo os grupos com indiferença. "Tão preocupados com likes que mal percebem que daqui a cinco anos ninguém vai se lembrar de quem eram."

A mochila pendia sobre um ombro só, os cadernos meio amassados visíveis pelo zíper mal fechado. Um pequeno símbolo de resistência contra o conformismo que dominava o ambiente. Nada era mais ameaçador do que alguém que recusava jogar o jogo. Clarence gostava de acreditar que ela não apenas recusava; ela pegava o tabuleiro e o chutava para longe.

Mas o tabuleiro chutado sempre encontrava um jeito de voltar.

— Olha só quem resolveu sair da floresta! — A voz vinha de algum ponto à sua direita, carregada de veneno disfarçado de brincadeira.

Clarence não precisou virar para saber quem era. Um grupo de garotas populares se aproximava. Perfeitas, com cabelos tão bem tratados que pareciam vir direto de comerciais de shampoo. Uma delas, Hailey Baxter, a líder autoimposta, tinha um sorriso pregado no rosto que não chegava aos olhos.

— Gostou do que viu no espelho hoje, Clarence? Ou ainda não encontrou um? — A risada era uma lâmina fina, cortante.

Clarence manteve o rosto impassível, mas sentiu o calor subindo pelo pescoço. Não era a primeira vez, nem seria a última. Ela não precisava olhar para saber que Hailey e as outras estavam avaliando cada detalhe. A calça jeans básica. O casaco com capuz desbotado. A falta de maquiagem que expunha as sardas que pareciam iluminadas sob os corredores excessivamente iluminados da escola.

"Vampiras," pensou. "Sugam qualquer coisa que as faça sentir-se superiores."

Ela puxou as mangas do casaco com um gesto automático, cobrindo as marcas finas e esbranquiçadas nos antebraços. Elas estavam ali, lembranças gravadas em sua pele de momentos em que a dor era a única forma de silenciar a mente. Nunca curadas de verdade, apenas ocultas. Como todo o resto de sua vida.

— Ah, desculpe, falei alto demais? — Hailey continuou, seu tom de falsa inocência era nauseante. — A gente sabe que você prefere silêncio, né? Deve ser difícil conviver com a própria sombra naquele buraco na floresta.

Clarence parou. Não para responder — ela nunca daria a Hailey o prazer de uma reação —, mas porque sentiu um nó se formando na garganta. Era um daqueles momentos em que tudo ao redor parecia desacelerar. Os sons dos risos, dos passos, dos armários, se transformaram num zumbido distante.

"Respira. Só mais um ano. Só mais um ano e você nunca mais vai precisar ver essas pessoas."

Os olhos fixaram num cartaz na parede. Anúncio de um jogo de futebol. Cores vibrantes, um sorriso largo de algum jogador que ela mal sabia o nome. E então, por um instante, ela se viu refletida no vidro do quadro de avisos. Um rosto que era seu, mas que não reconhecia completamente.

Mas o reflexo não estava sozinho.

Atrás dela, como uma aparição, algo escuro. Uma sombra deslocada da realidade. Ela girou o corpo rapidamente, mas o corredor estava vazio, exceto pelas garotas que agora sussurravam entre si, divertidas com o impacto que achavam ter causado.

Clarence piscou, engolindo a sensação de desconforto. Talvez fosse apenas sua mente pregando peças. Ou talvez algo mais. Algo muito mais perigoso.

Ao fundo, o som estridente de uma campainha ecoou. E com ela, um pressentimento que Clarence não conseguia ignorar. Algo estava errado, mas o quê?

Clarence se encaminhou para a sala de literatura, os passos mais rápidos do que de costume. O corredor já estava quase vazio, exceto por alguns atrasados correndo para suas respectivas aulas. Se havia um santuário naquele inferno disfarçado de escola, era a sala da senhora Abernathy.

A porta estava entreaberta, revelando fileiras de carteiras e um quadro-negro que ainda exibia o último vestígio da aula anterior: "Poesia Romântica - Keats e Shelley". Clarence sorriu ao se lembrar da aula, um dos poucos momentos em que a mente se desligava da realidade sufocante de Ely Memorial High.

A senhora Abernathy era uma mulher de uns cinquenta anos, magra e elegante, com óculos de aro fino que deslizavam constantemente pelo nariz. Ela tinha o ar de alguém que preferia estar cercada por livros do que por pessoas, mas, ainda assim, nutria um carinho genuíno por seus alunos — pelo menos por aqueles que demonstravam interesse real.

Clarence entrou silenciosamente, ocupando seu lugar habitual na fileira do meio, perto da janela. A luz do sol atravessava as cortinas parcialmente fechadas, criando padrões irregulares sobre o chão. Abernathy estava organizando papéis em sua mesa, mas ergueu os olhos quando Clarence entrou.

— Ah, Clarence. — O sorriso da professora era caloroso, sem o tom de condescendência que ela tanto odiava ouvir de adultos. — Pontual como sempre.

— Alguma coisa tem que ser. — Clarence soltou, jogando a mochila sobre a mesa com um movimento casual.

Abernathy riu levemente, mas havia algo mais naquele olhar. Uma compreensão silenciosa, uma percepção que Clarence nunca conseguiu entender completamente. Era como se a professora enxergasse mais do que ela deixava transparecer, como se visse as cicatrizes que ninguém deveria ver.

Os outros alunos começaram a entrar, arrastando cadeiras e murmurando conversas que Clarence ignorava. Ela puxou o caderno e uma caneta, mas, em vez de abrir o livro da aula, rabiscou distraidamente na margem. Desenhos, palavras soltas. Qualquer coisa para preencher o vazio.

— Hoje vamos explorar a escrita criativa. — A voz de Abernathy cortou o burburinho da sala, capturando a atenção dos alunos. — Quero que cada um escreva um conto breve. Pode ser sobre o que quiserem: uma memória, uma ideia, algo inventado. Apenas escrevam.

Clarence sentiu o estômago afundar. Não porque não gostasse do exercício — muito pelo contrário. Ela queria escrever, precisava escrever, mas isso significava expor uma parte dela que ninguém tinha o direito de tocar.

O caderno que carregava era um segredo bem guardado. Repleto de contos sombrios, memórias distorcidas, fragmentos de sonhos e pesadelos. Nada que estivesse pronto para ver a luz do dia.

— E não se preocupem com perfeição — acrescentou Abernathy, como se pressentisse o nervosismo de alguns alunos. — Apenas coloquem no papel o que vier à mente.

Os minutos passaram enquanto Clarence encarava a página em branco. A caneta pairava sobre o papel, hesitante. No fundo, risadas e sussurros ecoavam, mas nada penetrava o pequeno mundo que ela criava em volta de si.

Finalmente, começou a escrever. As palavras vieram em torrentes, como se houvesse algo esperando para ser liberado. O conto que surgiu era sombrio, uma história sobre um menino perdido numa floresta, cercado por sombras que sussurravam verdades amargas sobre ele mesmo.

"Ele correu. Não porque acreditava que podia escapar, mas porque era isso que as pessoas faziam quando sentiam medo."

A caneta parou. A frase parecia se erguer do papel como uma acusação, pesada demais para ser ignorada. Clarence fechou o caderno, o peito apertado.

Abernathy se aproximou, passando de mesa em mesa para observar os trabalhos. Quando chegou à mesa de Clarence, inclinou-se ligeiramente.

— Está escrevendo algo novo?

— Não sei se novo é a palavra certa. — Clarence desviou o olhar, o tom casual escondendo o desconforto.

— Você deveria me mostrar um dia. — A professora falou com suavidade, mas havia uma firmeza ali.

— Talvez.

Mas Clarence sabia que nunca o faria. Os segredos presos naquele caderno eram apenas dela.

Clarence abaixou a cabeça e voltou a encarar o papel em branco à sua frente, tentando dissipar o zunido incômodo que agora ecoava em sua mente. As palavras de antes, sobre potencial e histórias que valiam a pena contar, pareciam ridículas à luz da realidade. "Talvez" fosse o tema constante de sua vida — talvez boa o suficiente, talvez diferente demais, talvez destinada ao fracasso. Tentou afastar a melancolia, concentrando-se nas linhas que tinha acabado de escrever, mas algo estava errado. Uma sensação insistente, como se estivesse sendo observada. Seus olhos levantaram, varrendo a sala de literatura mais uma vez. Tudo parecia no lugar. Apenas seus próprios pensamentos fora de controle.

Foi quando notou, quase como um detalhe insignificante no canto da visão, uma bolinha de papel no chão.

Clarence estendeu a mão lentamente, os dedos hesitantes ao pegar a bolinha de papel que parecia ter surgido do nada entre seus tênis. Os olhos percorreram a sala, buscando alguma indicação de quem poderia ter lançado aquilo, mas nada parecia fora do comum. Os colegas estavam imersos em seus próprios mundos — alguns escrevendo, outros rabiscando inutilidades, e outros ainda olhando para o vazio, esperando que o tempo passasse.

Com uma cautela quase cerimonial, desfez as dobras do papel, alisando-o sobre a superfície da mesa. A princípio, parecia apenas um rabisco confuso, linhas disformes feitas com carvão preto sobre o fundo branco. Mas, ao olhar mais de perto, a imagem se revelou. E o que ela viu fez o ar ao seu redor parecer mais pesado.

Era uma cena de pura carnificina, rabiscada com detalhes perturbadores. Uma figura humana, ou o que restava dela, estava suspensa por ganchos cravados na carne das costas. As linhas do carvão delineavam a pele rasgada e os músculos expostos, pingando algo que escorria para o chão. Ao redor, uma dúzia de olhos arregalados surgiam na escuridão, desenhados com precisão grotesca, como se observassem avidamente o sofrimento da vítima.

No chão, uma poça irregular parecia refletir a figura em cima, mas o reflexo era diferente — mostrava um rosto sem olhos, a boca aberta num grito eterno, enquanto as mãos, deformadas e contorcidas, se estendiam para fora da poça como se buscassem liberdade.

As sombras, mais do que simples rabiscos, pareciam vivas. Entre as linhas escuras, Clarence quase podia ouvir sussurros de algo não humano, algo que parecia transbordar daquela folha de papel.

Os detalhes a atingiram como um soco no estômago. As unhas desenhadas, sujas e quebradas. Os dentes da figura no reflexo, tortos e manchados de sangue. O artista — quem quer que fosse — não havia poupado nada para garantir que quem visse aquilo sentisse o peso do horror.

O coração de Clarence disparou. O desenho não era apenas macabro, era familiar. A estética, os detalhes, a intensidade do sofrimento retratado — algo nela sabia que aquele traço não era desconhecido. Um suor frio formou-se na base de sua nuca, enquanto os dedos apertavam o papel com força suficiente para amassá-lo novamente.

Uma frase, quase imperceptível, estava rabiscada num canto do papel em letras pequenas e apressadas. As palavras eram disformes, quase indecifráveis, mas o que dizia congelou o sangue dela:

"Quantos passos no escuro você está disposta a dar?"

A mente rodopiava. Quem havia deixado aquilo? Por quê? E o que significava? A sensação de estar sendo observada tomou conta, como uma presença invisível pressionando contra a nuca. Mas, quando Clarence se virou para olhar novamente ao redor da sala, ninguém a encarava. Tudo parecia... normal.

Mas nada estava normal.

Clarence alisou o papel nas palmas, tentando dar sentido à imagem. As linhas pretas de carvão formavam uma cena grotesca, quase surreal. Um corpo desmembrado jogado em uma floresta, os olhos arrancados do rosto e pendurados em fios grotescamente detalhados. O detalhe mais perturbador estava nas palavras rabiscadas no canto, quase ilegíveis: "Aberrações merecem morrer."

O papel tremia em suas mãos, mas Clarence engoliu a bile que ameaçava subir. Podia sentir a risada silenciosa de quem quer que tivesse enviado aquilo, como se estivessem observando sua reação, esperando algum tipo de colapso público. Eles não a teriam. Amassou o papel de volta em uma bolinha e a lançou na mochila, os dedos frios e tensos. Quando levantou os olhos, percebeu que a sala estava tão indiferente quanto sempre. A Sra. Abernathy seguia explicando simbolismos em A Letra Escarlate, e os alunos ao redor pareciam mais preocupados em cochichar ou fingir atenção.

"Ótimo," pensou, tentando ignorar a náusea. "Mais um dia perfeito na maravilha que é Ely High."

O inferno real começou no refeitório, como sempre. Clarence atravessou o espaço com a bandeja equilibrada, o rosto enfiado no capuz. Ela sabia que não deveria se dar ao trabalho de esperar simpatia. Os olhares sempre vinham — julgadores, enojados, curiosos demais. O murmúrio era constante, mas ela se esforçava para ignorar. Quando chegou à sua mesa habitual no canto mais isolado, sentiu o silêncio se arrastar para algo mais letal.

Não demorou muito para que as hienas atacassem.

— Olha só quem decidiu descer da sua cabana de bruxa. — A voz de Hailey Baxter cortou o barulho, carregada com aquele tom venenoso que ela reservava exclusivamente para Clarence.

— Ouvi dizer que o pai dela era um assassino. Você acha que ele matou gente naquela cabana? — Outra garota, Jess, sussurrou alto o suficiente para garantir que todos ouvissem.

— Ah, claro que sim! E dizem que a mãe dela... Bem, quem sabe com quantos homens ela dormiu pra conseguir esconder isso por tanto tempo, não é? Aberração cria aberração, né? — Hailey soltou uma risada exagerada, que ecoou pelo refeitório.

Clarence encarou a bandeja, os punhos cerrados. A comida parecia tão apetitosa quanto lixo, mas ela sabia o que viria se reagisse. Não adiantava. Não era uma briga que ela podia vencer.

— Ei, você acha que ela vai explodir? Igual o papai? — Um garoto gritou do fundo. Risadas espalharam-se como pólvora.

O pedaço de maçã em sua mão explodiu sob a pressão de seus dedos, o suco escorrendo pela pele. Ela se levantou, ignorando os risos, os sussurros e os olhares. Um passo atrás do outro, rápida, mas sem correr. Não daria a eles o prazer de vê-la fugir.

A caminhada para casa era um alívio necessário, mesmo que Ely fosse um cemitério de fantasmas que ela tentava evitar. As mãos estavam enterradas nos bolsos do casaco, os fones de ouvido despejando um rock pesado no último volume. As letras gritadas no idioma universal da raiva e do abandono embalavam seus pensamentos.

Os primeiros pingos de chuva passaram despercebidos. Sua mente estava presa demais ao peso das palavras no refeitório, ao papel na mochila, ao riso cortante que parecia ecoar em cada canto. Tudo era demais, um peso constante.

Quando a chuva engrossou, as calças jeans começaram a grudar na pele. Clarence finalmente percebeu. A água escorria por seu capuz, gotejava em seus tênis e ensopava a jaqueta. O mundo ao seu redor tornou-se cinza e borrado, e ela parou. Respirou fundo, como se quisesse absorver o mundo molhado e escuro ao seu redor. Era melhor que absorver o ódio.

A rua estava vazia, exceto pelas sombras das árvores que balançavam contra a luz fraca dos postes. Ely tinha aquele jeito de cidade pequena e amaldiçoada, cheia de memórias de que ninguém ousava falar. Clarence chutou uma pedra no asfalto e retomou o caminho, os olhos fixos nos passos à frente, mas os pensamentos em um lugar muito mais escuro.

A casa de Clarence era um relicário de outro tempo, um lugar onde cada canto parecia murmurar histórias antigas. A estrutura de madeira rangia com o vento, os degraus da varanda estavam levemente inclinados, como um sorriso torto. Tinta branca descascava das colunas que sustentavam o telhado, expondo a madeira envelhecida por décadas de tempestades e sóis impiedosos. Vasos rachados com flores moribundas repousavam em um canto, um resquício do cuidado de Dixie, que nunca parecia ter tempo suficiente para revitalizar aquele espaço.

A porta da frente se abriu com um leve gemido. Clarence entrou, empurrando com o ombro. Pingos de chuva escorriam do capuz encharcado para o chão já manchado pelo tempo. Ela deixou as roupas molhadas no tapete próximo à entrada, uma pilha que seria ignorada até que sua mãe a visse mais tarde. A sala de estar era uma colagem de móveis antigos e objetos decorativos que, a julgar pelo desgaste, pertenciam todos à falecida tia Anne. Um sofá estampado com flores desbotadas e almofadas amassadas estava cercado por mesas de madeira escura, uma delas ostentando um relógio de mesa parado há anos.

O cheiro de uma casa vivida – poeira, madeira envelhecida, e algo vagamente doce, talvez do purificador de ar esquecido no corredor – preenchia o espaço. Clarence não perdeu tempo. A geladeira zumbia suavemente na cozinha. Ao abri-la, pegou um pote de vidro com etiqueta escrita à mão por Dixie: "Jantar de terça-feira – frango e legumes." Colocou o pote no micro-ondas e apertou os botões sem entusiasmo, observando o prato começar a girar. Não havia mais ninguém para notar sua presença ou ausência até o fim da tarde. A casa parecia engolir seus movimentos em silêncio.

Subiu as escadas para o banho, deixando pegadas molhadas nos degraus de madeira. O banheiro era pequeno, com azulejos azuis rachados e uma cortina de chuveiro estampada com desenhos de peixes. O vapor começou a embaçar o espelho assim que a água quente começou a cair. Clarence entrou no boxe, a pele reagindo ao calor imediato.

O toque da água era ao mesmo tempo reconfortante e brutal, uma dualidade que ecoava seus próprios pensamentos. Cicatrizes finas traçavam linhas em seus braços e coxas, histórias que ninguém nunca ouviria. Algumas eram mais claras, quase apagadas com o tempo, outras ainda tinham um tom rosado. Cada uma delas parecia carregar um pedaço de confusão, raiva e uma tentativa desesperada de silenciar a dor interna com a física.

Clarence encarou o vidro do boxe. O vapor formava camadas espessas que quase ocultavam o reflexo dela, mas não o suficiente. Um vulto indistinto a encarava de volta, alguém que parecia tão jovem quanto era, mas carregava um olhar que não pertencia a ninguém daquela idade. A mão foi até uma cicatriz específica no antebraço esquerdo, mais longa do que as outras. Ela traçou o contorno com o dedo, tentando lembrar exatamente o que a levara a fazê-la. Não havia uma única razão, apenas um turbilhão.

A água continuava caindo, mas o barulho era abafado pelos pensamentos que vinham em ondas. A escola, os olhares, o papel rabiscado com uma cena grotesca. Era só uma piada? Uma coincidência? A sensação de estar presa em um ciclo interminável de desprezo e vazio tornou-se insuportável.

Ela fechou os olhos, respirando fundo. A pressão da água contra a pele quente fez o peito doer de um jeito estranho, como se os pulmões não conseguissem se expandir completamente. O coração acelerado fazia eco no silêncio, mas antes que pudesse se afogar mais nos próprios pensamentos, um som abrupto a trouxe de volta.

O bipe insistente do micro-ondas vindo lá de baixo cortou o ar, fazendo o peito dela dar um salto. A realidade voltou com força. O jantar estava pronto. Clarence desligou o chuveiro e passou a mão pelo vidro embaçado, revelando parte do rosto no espelho antes de se enrolar na toalha. Os pensamentos, ainda caóticos, seguiram com ela, como fantasmas que nunca partiam completamente.

A névoa no banheiro dissipava lentamente, o vapor dançando no ar frio enquanto Clarence abria a porta com um movimento descuidado. A toalha áspera estava enrolada em torno do corpo esguio, os fios castanhos úmidos escorrendo água pelos ombros e manchando o tecido. Os pés descalços tocavam o piso gelado do corredor, provocando arrepios que subiam pelas pernas até a espinha. Ela esfregou o rosto com as mãos, tentando se livrar da sensação pesada que não conseguia nomear.

O quarto era seu refúgio. Fotografias emolduradas estavam penduradas de forma desordenada nas paredes, junto a pôsteres antigos que ela herdou da adolescência da mãe. Bandas dos anos 2000, rostos desbotados e bordas amassadas contavam histórias de uma era que ela não viveu, mas que parecia mais atraente do que qualquer coisa na atualidade. Clarence escolheu uma camisa de Evanescence, uma daquelas camisetas largas que Dixie adorava, e a vestiu lentamente. O algodão macio roçou a pele enquanto ela passava a cabeça pelo buraco da gola, puxando o tecido para cobrir a calcinha simples de algodão.

Ao se endireitar, parou de repente. O ar ao redor parecia diferente, pesado, carregado de algo que não sabia descrever. Uma sensação rastejou pelo corpo como um animal predador, deixando cada músculo em alerta. A respiração ficou superficial, os ouvidos captando o menor ruído além do zumbido leve da lâmpada do quarto. Algo estava errado.

Os olhos escanearam o ambiente à procura de alguma coisa fora do lugar, mas tudo parecia exatamente como deveria estar. A cama desfeita, um livro esquecido no criado-mudo, o espelho no canto que refletia a si mesma e o quarto vazio atrás dela. Era só uma sensação, insistia a mente, mas o corpo parecia saber mais do que ela.

Clarence caminhou devagar até a janela, os pés afundando no carpete frio. A floresta era um manto negro ao longe, as árvores se movendo em uníssono ao sabor do vento. O céu estava limpo, estrelas piscando contra o azul profundo. Havia algo tranquilizador naquela vastidão, na maneira como os troncos se alinhavam como sentinelas eternos.

Ely dormia cedo, ainda mais depois do...

Massacre. Essa era a palavra que usavam. Uma memória coletiva de sangue e horror que havia engolido a cidade anos atrás. Clarence suspirou, seus olhos fixos no horizonte. Mesmo sem ver o lago, sabia exatamente onde estava a cabana de pesca, sabia o caminho por entre as copas. Aquele pensamento, familiar e reconfortante, quase a fez sorrir.

Mas a serenidade evaporou num instante.

Uma figura encapuzada estava parada bem na orla da floresta. Imóvel. O corpo oculto pelas sombras, mas claramente voltado para ela. O coração disparou enquanto os olhos tentavam captar mais detalhes, mas a distância e a escuridão transformavam o estranho em apenas um contorno ameaçador. Mesmo sem conseguir ver o rosto, Clarence sabia que estava sendo observada. A sensação de ser devorada por um olhar invisível era esmagadora.

Ela estreitou os olhos, forçando-se a focar melhor. Seria algum morador? Alguém conhecido? Ou apenas uma sombra jogando truques em sua mente cansada? Mas assim que se concentrou, o estranho deu um passo para trás, dissolvendo-se na floresta.

Clarence piscou, esfregando as pálpebras com força. Ridículo. Imaginando coisas à toa, pensou. Não havia nada ali, era apenas a escuridão brincando com sua mente. Fechou a cortina num gesto rápido, como se pudesse barrar a ansiedade junto com a visão. Ainda com o coração acelerado, desceu as escadas.

A cozinha estava fria, e o bipe monótono do micro-ondas ecoava na casa silenciosa. Era uma rotina simples, uma distração bem-vinda. Talvez a fome apagasse o eco daquela visão perturbadora. Talvez fosse apenas isso: um eco.

Hughie entrou enquanto Clarence terminava os últimos pedaços de sua comida, o som de suas botas pesadas ecoando no assoalho desgastado. Ele largou a mochila no sofá com um baque abafado, suspirando de alívio ao se livrar do peso. As botas seguiram o mesmo destino, sendo chutadas para um canto da sala antes que ele passasse a mão pelos cachos castanhos de Clarence, bagunçando-os de leve.

— O que tá comendo aí, C? — perguntou ele, abrindo a geladeira e vasculhando o conteúdo com uma familiaridade que dizia muito sobre a dinâmica deles.

— Não tenho certeza, mas parece algo com frango e batatas. — Clarence sorriu de canto, vendo o tio revirar as marmitas etiquetadas com datas e descrições feitas à mão por Dixie.

— Sua mãe e a organização militar dela, hein? Tudo num pote, tudo com um rótulo. — Ele riu, retirando uma marmita e colocando-a no micro-ondas. — Aposto que ela separaria até os átomos da comida, se pudesse.

Clarence riu, balançando a cabeça enquanto mastigava.

— Bem, pelo menos a gente não passa fome, né?

Hughie deu de ombros, apoiando-se no balcão enquanto esperava o bipe do micro-ondas. Quando o aparelho finalmente apitou, ele pegou o prato fumegante e sentou-se à mesa com Clarence, o cheiro da comida enchendo o pequeno espaço. Ele pegou o garfo e começou a mexer no prato, distraidamente, enquanto soltava um comentário que parecia inocente, mas carregava algo mais.

— Seu pai odiaria todo esse plástico embalando a comida dele.

A frase pairou no ar, como uma faísca numa sala cheia de gás. Clarence parou, a curiosidade iluminando seu rosto de repente.

— Sério? Por quê?

Hughie hesitou, percebendo tarde demais que havia dito algo que não deveria. Ele olhou para o prato, tentando disfarçar, mas Clarence já estava inclinada para frente, os olhos azuis faiscando de interesse.

— Vamos lá, Hughie. Você sabe que eu adoro quando vocês falam dele.

Ele suspirou, apoiando os cotovelos na mesa e esfregando o rosto com as mãos.

— Ele tinha um jeito... único de fazer as coisas. Já vi aquele maluco abrir um faisão com as próprias mãos, arrancar as penas, jogar no fogo e servir como se fosse um banquete. Foi a coisa mais nojenta e gostosa que eu já comi.

Clarence riu, a imagem do pai, que nunca conheceu pessoalmente, se tornando mais vívida em sua mente.

— Sério? Você e minha mãe nunca falam dele assim. Normalmente é só "Adam isso" ou "Adam aquilo", como se ele fosse uma lenda proibida.

— Bom, ele era... complicado. — Hughie deu de ombros, comendo mais um pedaço do jantar. — Mas tinha suas habilidades. Se você acha que comer faisão na fogueira era hardcore, você precisava vê-lo despedaçando um veado. A precisão daquele cara com uma faca era algo assustador e... fascinante.

— Eu adoraria ouvir mais histórias assim. — Clarence apoiou o cotovelo na mesa, descansando o queixo na mão.

Antes que Hughie pudesse responder, a porta da frente se abriu. O som do vento carregou o cheiro da floresta para dentro, seguido pela figura de Dixie, que entrou carregando duas sacolas cheias.

— Falando de quem? — Dixie perguntou, o tom calmo, mas os olhos atentos quando viu a expressão dos dois na mesa.

Hughie tossiu, como se estivesse engasgado, e empurrou o prato vazio para o lado. — Nada demais. Só... relembrando os velhos tempos.

Dixie não respondeu de imediato. Ela pousou as sacolas no balcão e olhou para Clarence com cautela.

— Seu pai, certo?

Clarence assentiu, os olhos fixos na mãe. — Ele era tão bom assim?

Dixie suspirou, desviando o olhar por um instante, antes de encarar a filha novamente. — Ele era bom em muitas coisas, Clarence. Algumas que salvaram nossas vidas e outras que... quase as destruíram.

Hughie começou a falar, tentando aliviar o clima, mas Dixie levantou a mão para silenciá-lo.

— Tudo bem, Hughie. — A voz dela saiu firme, mas carregada de cansaço. — Ela tem o direito de saber.

— Então, me conta. — Clarence insistiu, a curiosidade brilhando em seus olhos azuis, tão parecidos com os do pai.

Dixie ficou em silêncio por um momento, as lembranças claramente pesando sobre ela. — Algumas coisas são histórias que você pode ouvir e rir depois. Mas outras... algumas verdades deveriam ficar enterradas na floresta.

Hughie trocou um olhar com Dixie, claramente preocupado. — É, algumas coisas... melhor deixar quieto.

Clarence, porém, não estava satisfeita. — Você acha que eu não aguento ouvir?

Dixie colocou a mão no ombro da filha, apertando levemente. — Eu só não quero que você carregue os mesmos fantasmas que eu, Clarence.

A tensão pairava no ar, mas antes que qualquer um pudesse dizer algo mais, Dixie virou-se para organizar as sacolas, encerrando a conversa abruptamente.

Clarence secava o último prato com movimentos metódicos, o tecido áspero do pano rangendo contra a louça. Hughie estava inclinado sobre a pia, as mangas do casaco arregaçadas enquanto a espuma deslizava por seus antebraços. Nenhuma palavra havia sido trocada nos últimos minutos, mas havia algo reconfortante naquela dinâmica silenciosa, uma espécie de paz que Clarence raramente encontrava fora daquele momento simples e doméstico.

Quando Dixie desceu as escadas, o som de seus passos no assoalho fez Clarence levantar os olhos. Dixie não disse nada de imediato. Na penumbra da cozinha, ela parecia hesitante, como se estivesse carregando algo pesado demais para ser entregue com facilidade.

— Clarence. — Dixie aproximou-se devagar, um embrulho retangular envolto em um tecido escuro entre as mãos. — Eu estava esperando seu aniversário de dezoito anos na semana que vem. Mas, já que você quer tanto se conectar ao seu pai...

Ela estendeu o embrulho, com cuidado, quase reverência. — Isso aqui era uma enorme parte dele.

Clarence pegou o objeto, o peso e a firmeza contra os dedos imediatamente despertando sua curiosidade. Hughie parou o que estava fazendo, observando de canto, mas sem interferir.

Desfazendo o tecido devagar, ela revelou uma faca de caça imponente, a lâmina negra como carvão, refletindo a luz fraca do teto. O cabo era robusto, com padrões intricados gravados na madeira e no metal, como se cada detalhe contasse uma história. A lâmina brilhava com um tom ameaçador, mas havia uma estranha beleza na brutalidade do objeto.

— É linda... — Clarence murmurou, os dedos traçando os entalhes do cabo, absorvendo cada textura, cada marca.

Dixie ficou em silêncio por um momento, a sombra de um sorriso amargo cruzando seu rosto antes de se aproximar. Tocando o rosto da filha, falou com uma suavidade que parecia carregar o peso de anos de dor e amor reprimidos.

— Eu sei que as pessoas falam coisas horríveis sobre ele, sobre nós... — Dixie hesitou, os olhos marejando, mas sua voz não vacilou. — Mas, não duvide por um segundo do quanto ele nos amava e do quanto lutou até o último segundo para nos manter vivas.

Clarence encarou a mãe, sentindo a intensidade das palavras se cravarem em seu coração como o aço daquela lâmina.

— Você foi a última coisa na qual ele pensou antes de fechar os olhos pra sempre.

As lágrimas que Dixie segurava escorreram discretamente quando ela se afastou, os ombros tensos enquanto tentava recuperar a compostura.

Clarence apertou a faca contra o peito por um momento, a reverência no gesto deixando Hughie inquieto. Quando finalmente quebrou o silêncio, sua voz era um sussurro, cheia de algo que ela mesma não sabia nomear.

— Eu espero conhecer um amor assim um dia.

Hughie e Dixie trocaram um olhar. Algo não dito passou entre eles, um entendimento silencioso que Clarence não conseguiu captar.

Dixie sorriu, mas havia dor nas bordas do gesto. — Eu espero que você nunca encontre.

Hughie soltou uma risada baixa, sem humor. — Escuta sua mãe. Ela sabe do que tá falando.

Clarence não respondeu, mas o peso das palavras ficou com ela enquanto olhava para a faca em suas mãos, sentindo que aquele presente não era só um objeto. Era uma herança, uma responsabilidade. Um fragmento de quem Adam Ellis tinha sido e do que ele representava.

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