Prólogo
03 de março de 1996
O FIM DE TARDE chuvoso trazia uma sensação de melancolia para os habitantes da fatídica cidade de Sunlane.
Correndo pelas sinuosas ruas desniveladas e concluídas apenas pela metade pelo serviço público estadual estava Jackson, um garoto pequeno e bastante magricela para sua idade, os seus cabelos lisos da cor de mel estavam grudados em seu rosto.
Os seus lábios se tornavam cada vez mais secos na medida em que se aproximava cada vez mais do coração do submundo, a comunidade periférica da cidade.
Com demasiada frequência o menino lançava olhares ansiosos por cima de seu ombro, como se estivesse apenas esperando o momento no qual seria pego de surpresa por alguma coisa.
Jackson conhecia o submundo como a palma de sua mão.
Crescido nas ruas o garoto sempre vagou pelos caminhos em que as pessoas de "boa vida" costumavam evitar a todo custo, principalmente para que assim não sujassem os belos e bem-acabados sapatos que gostavam tanto de vestir.
Naquele dia, porém, o garoto se encontrava perdido.
As ruas pareciam ter se transformado em um labirinto, um labirinto no qual a cada segundo que passava o menino sentia no fundo de seu coração que ele não iria conseguir escapar.
A respiração do menino estava ficando tão pesada ao ponto de ele conseguir enxergá-la a olho nu.
A tensão em seu peito também crescia a cada rua repetida em que o garoto caminhava.
Por que tudo estava diferente?
Para onde havia ido os seus amigos?
Onde o menino estava?
Essas e todas as outras perguntas que começaram a corroer a mente do garotinho perderam o seu valor quando uma figura humana se remexeu nas sombras causadas por conta da fachada de uma pequena loja de produtos infantis ali próximos.
Jackson sabia que já havia visitado aquele lugar com o seu grupo de amigos antes, porém naquele dia algo parecia diferente.
Parecia errado.
A figura voltou a se mexer.
"Quem está aí?" perguntou o menino enquanto se aproximava da entrada principal da loja.
O garoto não obteve resposta.
Talvez fosse sua mente assustada com toda aquela situação agindo, mas por um pequeno momento Jackson pôde jurar que viu olhos vermelhos o observarem com bastante desejo por de trás de uma longa vidraça.
A chuva que agora estava ainda mais violenta dificultava e muito a sua visão.
O garotinho cerrou os olhos para conseguir enxergar melhor.
"Quem é que está aí?" repetiu.
Ainda na escuridão a figura sorriu.
Jackson engoliu em seco e gritou de medo quando um sem-teto saiu das sombras com um sorriso amarelo no rosto.
"Está perdido meu filho?" perguntou o homem com uma voz calma.
Jackson levou alguns minutos para conseguir fazer a sua respiração voltar ao seu estado normal.
"Poxa vida senhor, isso não se faz" disse o menino.
Bastante sem jeito o homem se desculpou inúmeras vezes antes que o garoto conseguisse explicar para o sujeito que ele já o havia desculpado.
"Realmente não foi a minha intenção lhe assustar" disse o homem.
"Novamente, aceite as minhas mais sinceras desculpas" pediu.
Jackson ergueu as mãos.
"Sem ressentimentos".
O homem conseguiu abrir um sorriso enquanto se endireitava.
"A tempestade está muito forte" alertou apontando para o céu que agora estava repleto de nuvens escuras e carregadas.
"Um garotinho como você não deveria estar andando sozinho nessa situação" completou.
Uma luz estranha se iluminou nos olhos do sem-teto, o que causou um breve desconforto seguido de um longo arrepio que percorreu toda a extensão do corpo de Jackson.
"Eu sei me virar" disse o garoto rapidamente, tentando manter uma expressão firme.
O homem sorriu.
"Você realmente parece ser um menino muito forte" garantiu.
O garoto mediu o cidadão com os olhos.
Encarar o homem por muito tempo era agonizante.
A postura encurvada misturada com a sujeira que tomava conta de quase toda a veste do sem-teto trazia uma sensação de dar calafrios. Os cabelos grisalhos e totalmente desgrenhados caiam sobre o seu rosto em várias mechas desalinhadas, a sua pele parecia bastante gasta e suas unhas estavam com uma coloração tão escura que gerou um nó na garganta do menino.
O homem finalizou o sorriso e encarou o céu.
"Você tem medo de mim..." disse com uma voz triste e vazia.
Jackson endireitou a postura.
"Eu não tenho medo de você!" se apressou a dizer.
"Eu... eu não tenho medo de nada!" completou.
O sem-teto gargalhou alegremente.
"Todos nós temos medos Jackson, isso faz parte de quem nós somos" respondeu o homem.
Imediatamente o clima pesou.
O garoto não havia se apresentado.
Tentando não deixar claro a genuína sensação de medo em que estava voltando a sentir, o menino se levantou e disse.
"Eu... eu preciso ir agora".
O homem franziu a testa.
"Ir?" perguntou.
"E para onde você vai?".
Jackson caminhou lentamente para trás, seu sapato espalhou água para todos os lados.
"Se morasse comigo..." começou a dizer o sem-teto.
"Já estaria em casa".
A expressão em seu rosto era bizarra. Seus dentes de dupla coloração, preto e amarelo estavam todos a mostra em um sorriso enorme e extremamente desconfortável, sua pupila estava dilatada e com uma cor roxa estranha.
"O que?..." disse o menino.
O coração de Jackson estava quase saindo para fora do peito pela sua garganta, sem nenhuma dificuldade o garoto conseguia sentir a sua palpitação aumentar gradativamente.
Cambaleando o menino se virou bruscamente e tentou partir em direção ao outro lado da rua.
Seu desespero, porém, aumentou quando suas pernas pareciam ter virado geleia fazendo com que todo o seu esforço para tentar escapar fosse totalmente em vão.
Jackson tentou gritar, porém nenhum som saiu de sua boca. Ninguém iria vir lhe ajudar.
Pelo canto do olho o menino viu o pior, lentamente o misterioso homem caminhava até sua direção, o sorriso ainda maior.
"Não..." tentou dizer o garoto, mas nesse momento suas cordas vocais perderam a capacidade de emitir barulho.
O sem-teto seguia decidido até sua vítima.
"Por favor..." implorou Jackson em sua mente.
Talvez alguma força maior tivesse tido pena de sua situação pois naquele exato momento o menino conseguiu recuperar a força em suas pernas e partiu sem pensar em disparada rua acima.
A chuva agora caia maldosamente. Os ventos cortantes se atiravam com violência no rosto da pequena criança.
Ainda ofegante o garoto conseguiu se esconder dentro de uma pequena mercearia local.
O lugar estava completamente imundo. As prateleiras sujas e destruídas se espalhavam por quase toda a extensão do lugar, não havia nenhum sinal de vida em qualquer lado que o menino olhasse.
"É um pesadelo" Jackson começou a dizer para si mesmo.
"Isso não pode estar acontecendo... não comigo".
O garoto começara a chorar.
"Por favor" ele implorou.
Os seus olhos fechados com demasiada força foram obrigados a abrir quando o barulho do sino da fachada da loja soou.
Alguém havia entrado.
O olhar do menino estava paralisado, sua respiração parecia ter dado um pause.
Não faça barulho... Não faça barulho... essas palavras martelavam a mente do garoto com violência.
Um barulho de vidro sendo pisado chamou a atenção de Jackson para a ala sul da mercearia.
Alguém estava pisando nos estilhaços gerados pela destruição da loja.
Reunindo toda a coragem que ainda lhe restava naquela situação o menino esticou silenciosamente a face na direção da geladeira onde os alimentos estavam guardados.
Por uma fração de segundos Jackson conseguiu evitar de tossir. O cheiro era tão horrível que seus olhos começaram a lacrimejar. Todos os alimentos estavam tão podres que pareciam estar abandonados naquele lugar por anos, talvez até décadas pensou o menino.
O menino conseguiu evitar de fazer barulho ao tampar sua boca e nariz com uma das mãos.
Mais barulhos de vidro sendo pisado.
O olhar da criança se arregalou quando pelo reflexo do vidro conseguiu enxergar nitidamente o sem-teto caminhar por entre as prateleiras. O homem parecia quase animalesco. Farejava a sua presa como se fosse um cão de caça.
A ansiedade do menino foi aumentando na medida em que o homem se aproximava rosnando pelo corredor.
Jackson procurou algo no chão próximo que pudesse ser utilizado como defesa pessoal, mas nada parecia bom o suficiente.
E obviamente havia a diferença de estatura. Jackson era apenas um garoto de onze anos, com um físico infantil e que estava totalmente abalado emocionalmente. Não havia chance alguma de conseguir derrotar o homem um duelo justo.
O olhar do garoto correu pelo corredor, a distância um pedaço de vidro de tamanho considerável brilhava no chão sujo com um líquido vermelho vivo. O menino torceu para que se tratasse apenas de uma espécie de vazamento de molho de tomate.
Jackson espiou uma última vez a localização do homem antes de fechar os olhos, respirar fundo e se rastejar na direção do vidro.
O garoto fez mais barulho do que imaginava.
O medo voltou a dominar o rosto da criança quando ele notou o sem-teto se aproximar sedento em sua direção.
"Me deixa em paz!" o menino berrou.
O olhar do rapaz estava mais alucinado do que nunca, a sensação de triunfo já começava a surgir por trás de um sorriso de canto de boca.
O homem abriu a boca, um líquido que parecia saliva misturada com algo a mais começou a escorrer pelo seu queixo.
O olhar de Jackson se arregalou, ele sabia que não iria chegar a tempo.
O garoto apressou o passo, dessa vez sem se preocupar se iria ou não fazer barulho. Com um salto desesperado o menino se jogou na direção do caco de vidro.
Um breve fio de esperança despertou no peito de Jackson quando ele segurou o objeto cortante com força usando a mão direita.
O garoto quase conseguia sentir a respiração do sem-teto se aproximar de seu pescoço. Com toda rapidez que conseguiu o menino se virou para atacar, o pedaço de vidro levantado no alto para um golpe fatal.
Mas não havia nada.
Tudo parecia estar completamente normal.
As prateleiras estavam todas no seu lugar de origem e o chão se encontrava o mais limpo que uma pequena mercearia de apenas 4 funcionários conseguiria manter em um dia de semana.
Ainda com a respiração desregulada Jackson procurou desesperado o paradeiro de seu misterioso agressor.
Sua cabeça girava e seu estomago parecia estar começando a derreter ainda dentro de seu corpo.
O menino encostou na geladeira de alimentos, sua mão direita voou para o seu peito.
Ainda com um pouco de receio ele arriscou uma olhada na direção do interior da geladeira.
Tudo estava completamente normal.
Um sorriso de alívio invadiu o seu rosto. Pela primeira vez desde que o dia havia começado o seu coração estava começando a se acalmar.
"Obrigado" o garoto agradeceu com voz de choro, porém naquele mesmo instante um barulho alto de vidro quebrando o calou.
Para sua infelicidade Jackson se virou a tempo de testemunhar a pior cena de toda a sua curta vida.
Seu desaparecimento foi oficializado cerca de doze horas após o seu sumiço na mercearia "Entre Amigos", localizada no coração do submundo.
Jackson foi a quarta pessoa desaparecida em um intervalo assustador de apenas uma semana e dois dias.
As autoridades lutavam na tentativa de encontrar qualquer pista que levasse ao paradeiro dos indivíduos.
A chuva continuava a cair violentamente sobre a cidade.
O mal continuava a se espalhar.
O tempo continuava a correr.
E é com esse fim dramático que se inicia 03 Dias.
Que fim teve o menino Jackson?
Quais segredos perversos estão se esgueirando pelas ruas de Sunlane nesse exato momento?
Peguem uma bebida, talvez algum lanche e se acomodem...
03 Dias... começa agora.
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